¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, agosto 31, 2012
 
CORRUPTOR NÃO QUER NEM
OUVIR FALAR DE CORRUPÇÃO



Há bem mais de década venho denunciando a indústria estatal do livro, que chamei de indústria textil – assim mesmo, sem acento. Ou seja, a indústria do texto. Aquela mesma indústria que empurra goela abaixo para a juventude as produções intelectuais dos amigos do Rei. Como o Rei é de esquerda, leia-se as produções intelectuais das viúvas do Kremlin. Que há muito mamam nas tetas do Estado.

Em outubro de 1997 – há quinze anos, portanto – eu já denunciava esta farra obscena com o dinheiro do contribuinte, nas Jornadas Literárias de Passo Fundo. Em comunicado intitulado justamente de “A Indústria Textil”, dediquei um item aos amigos do Rei. Na época, Rubem Fonseca, Patrícia Mello, João Gilberto Noll e Chico Buarque desembarcaram em Londres, onde fizeram leituras públicas de suas obras e lançaram livros não só na capital britânica, como também na Escócia e no País de Gales.

Em um primeiro momento, poderíamos pensar: que maravilha, o Reino Unido se interessa por nossa literatura. Nada disso. É o Ministério da Cultura brasileiro que promove tais turismos e financia as traduções dos autores brasileiros.

Uma vez amigo do Rei, para sempre amigo do Rei. Em maio passado, comentei a notícia de que Chico Buarque iria receber financiamento da Biblioteca Nacional para a tradução de seu livro Leite Derramado para o coreano. Mais uma ajuda financeira indireta do Ministério da Cultura, comandado pela mana Ana. Chico quer empurrar sua “obra” ao mercado asiático. Quem a paga a tradução da obra do vate na Coréia? Você, leitor, que é coagido a pagar e cinicamente chamado de contribuinte.

Há décadas venho também comentando duas corrupções muito nossas, a universitária e a literária, que geralmente estão entrelaçadas. Escritor que de fato é amigo do Rei tem sua obra lançada e imposta aos circuitos escolares e universitários. Mas para isso precisa ser amigo do Rei. Nada de críticas ao governo ou ao PT. Se você, escritor, ousa criticar a realeza, você comete suicídio literário.

O grande instrumento de corrupção na área da cultura e das artes é a famigerada Lei Rouanet, assim chamada por ter sido obra do diplomata, “filósofo” e membro da Academia Brasileira de Letras Sergio Paulo Rouanet.

Ainda há pouco, comentei a fundação da editora Barléu, pelo o atual dono da Francisco Alves, Carlos Leal, especializada na edição de livros de arte, todos patrocinados por meio da Lei Rouanet. Ou seja, uma editora – empresa privada – só consegue sobreviver com auxílio estatal. Então que feche as portas, ora bolas.

Nas quebradas do século passado, tive notícias de um livreiro de Porto Alegre que, ante a perspectiva de falência, salvou-se graças à Lei Rouanet. Que história é essa? Se empresa privada só consegue sobreviver com auxílio estatal, então não é empresa privada, mas empresa estatal.

Em 2007, o governo federal autorizou a organização da Oktoberfest, festa do chope no Rio Grande do Sul, a captar R$ 1,182 milhão, via Lei Rouanet. Justificativa: o projeto "mantém e potencializa a cultura local, essencialmente germânica, contemplando a música instrumental".

Pergunta ao contribuinte que gosta de chope: se você já financiou a festa, por que terá pagar de novo pelo chope? A Lei Rouanet tem-se revelado um excelente instrumento de corrupção. Melhor ainda: corrupção perfeitamente legal.

Cinema e teatro há muito vivem do dinheiro do contribuinte. Esta farra com o bolso alheio teve seu ápice quando o Cirque du Soleil, companhia circense do Canadá, apresentou-se em São Paulo subsidiado pela famigerada lei. E deu-se ainda ao luxo de cobrar ingressos caríssimos dos contribuintes que financiavam seu espetáculo. De minha parte, não vou a espetáculo algum que seja patrocinado pela lei Rouanet. Mesmo que o espetáculo me interesse, se já paguei não vou pagar de novo. Se vierem me buscar de limusine, talvez. E mesmo assim, olhe lá!

Criou-se no Brasil, desde há muito, a cultura do livro estatal. Autores que há muito estariam mortos são ressuscitados com o empenho de instituições que as empurram aos jovens goela abaixo. O número de livros distribuídos gratuitamente aumenta cada vez mais. São editados via Lei Rouanet e não há quem os compre. No final do ano passado, a Folha de São Paulo noticiava:

“Já virou tradição de Natal: no fim de ano, grandes bancos presenteiam seus clientes com sofisticados livros de arte, viabilizados por meio da Lei Rouanet - que permite abatimentos no imposto de renda dos patrocinadores que invistam em cultura”.

O repórter pergunta-se, retoricamente: isso significaria, então, que os brindes de Natal desses bancos estariam sendo pagos pelo contribuinte? E responde, falaciosamente: sim, mas somente em parte. Mais exatamente, de acordo com a lei, o patrocinador recebe 10% da tiragem do livro, para seu uso - e, no caso, essa é a parcela destinada aos clientes.

Pode ser. Mas os outros 90% da tiragem também foram financiados pelo contribuinte. A Lei Rouanet – isto é, você - está financiando livros que ninguém compra, que são doados ao azar para quem não lê.

Não acredito nisso de distribuir livros de graça, ao azar. Até pode ser que algum encontre o leitor que dele precisa, mas esta hipótese é das mais aleatórias. Os passageiros de ônibus de São Paulo provavelmente se sentiriam mais gratificados com as memórias de Bruna Surfistinha. Que, diga-se de passagem, teve uma renúncia fiscal de dois milhões de reais aprovada pelo Ministério da Cultura para a produção da peça de teatro Doce Veneno, inspirada em sua vida exemplar de prostituta.

Como a dita vida fácil andava muito difícil, Bruna Surfistinha preferiu optar por ofício similar e mais confortável, a literatura. E acabou estreando no teatro, graças às mordomias da Lei Rouanet.

Segunda-feira passada, o criador renegou a criatura. Em entrevista à Folha de São Paulo, Rouanet diz que a lei por ele é uma "página virada", e que ter sido secretário da Cultura do governo Collor (1990-92), durante o qual formatou a lei, foi um "equívoco".

"Do ponto de vista dos meus interesses e da minha personalidade, foi um equívoco. Não era isso que eu queria fazer. Eu aceitei o convite para o cargo. Achei que poderia dar uma contribuição, mas não sou um homem da política, e sim um homem da reflexão".

O homem da reflexão diz não gostar de ser associado a sua principal criação e rejeita entrevistas sobre o tema. Em janeiro, ao ser procurado pela Folha em razão dos 20 anos da lei, disse que falaria sobre "qualquer coisa, mas sobre a Lei Rouanet não falo, nem adianta insistir".

Depois de ter corrompido as letras, o teatro e o cinema nacional, depois de ter reduzido escritores e cineastas a esmoleiros de um governo corrupto, Rouanet diz que tudo foi um equívoco e não quer falar mais sobre o assunto. O corruptor não quer nem ouvir falar de corrupção.

Então tá! Enquanto isso, a imprensa nacional dedica exclusivamente suas páginas à corrupção no Congresso. Na do Rouanet não vai nada.

PS - Leia A indústria textil em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/textil.html

quinta-feira, agosto 30, 2012
 
UM NOVO IANOBLEFE?


No dia 19 de agosto de 1993, uma manchete invadiu as páginas de todos os jornais do país:

IANOMÂMIS SÃO CHACINADOS EM RORAIMA

Falou-se inicialmente em 19 mortos. Dia seguinte, eram 40. Logo depois, chegaram a 73. Os assassinos, é claro, eram os garimpeiros. No decorrer dos dias, como nenhum cadáver havia sido achado, o número de chacinados foi diminuindo. Foi fixado finalmente em 16. A única prova da chacina foi... um dente, encontrado pela Polícia Federal e exibido em grandes fotos pela imprensa, na ponta do dedo de um policial. Em verdade, não foi encontrado um só cadáver.

No dia seguinte ao "massacre", ficou clara a intenção da farsa: "O presidente Itamar Franco anunciou ontem a decisão do governo em homologar a demarcação de uma área de 4.900 hectares no sul do Pará, habitada por 600 índios caiapós, em duas aldeias. O anúncio foi feito pouco mais de 24 horas após a divulgação da chacina dos ianomâmis em Roraima".

Relato toda essa farsa em Ianoblefe - o jornalismo como ficção. O livro foi recusado por cerca de vinte editoras. "Não podemos nos indispor contra todos os jornais do país", resumiu um editor. Mas foi aceito pela Ebooksbrasil, tocada por Teotonio Simões: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ianoblefe.html. Recomendo.

Dia 19 de dezembro de 1996, o juiz federal Itagiba Catta Preta, de Boa Vista, Roraima, fechou com chave de ouro a ficção alimentada durante três anos pela imprensa: condenou a vinte anos de prisão cinco garimpeiros, por genocídio praticado contra ianomâmis em 93. Dois garimpeiros responderam o processo em liberdade e três à revelia.

Cadáveres, nenhum. Mas o juiz Catta Preta não tem dúvidas de que houve o massacre. Como prova do crime, aceitou laudos de antropólogos sobre os hábitos culturais dos ianomâmis — a história das cinzas, formulada pelo antropólogo Bruce Albert —, além do depoimento de sobreviventes. “Pelos depoimentos colhidos, não tenho dúvida de que pelo menos doze índios foram mortos”.

Sem cadáver não há crime, diz a boa doutrina jurídica. Os garimpeiros foram condenados por um crime que não houve. Pior ainda, pelo assassinato de índios de uma tribo que não existe. Naquele dia, em Roraima, foi atada com nó de tope a maior farsa jornalística, política e jurídica jamais ocorrida no Brasil, com sérias conseqüências para a integridade territorial do país.

A imprensa registrou alguns sinais de violência na aldeia - venezuelana - onde teria ocorrido o massacre, várias panelas perfuradas por tiros. E só. Teríamos então um panelocídio, figura que jamais foi contemplada por qualquer código penal. Fui o único jornalista no Brasil a denunciar a farsa. Sete entidades ligadas a indígenas, em representação ao MPF, pediram cinco anos de prisão para este que vos escreve. Claro que não levaram.

Os ianomâmis brasileiros são uma criação de Cláudia Andujar – fotógrafa que ora é suíça, ora é romena. Se o antropólogo Napoleon Chagnon constatou a existência de uma tribo de ianomâmis na Venezuela, a extensão desta etnia a territórios brasileiros está longe de ser uma evidência. O blefe do massacre de ianomâmis em 93 repousa sobre um blefe anterior, ou seja, a existência de uma tribo ianomâmi no Brasil. Quem faz esta denúncia é o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, em A Farsa Ianomâmi (Rio, Biblioteca do Exército Editora, 1995). Em função de seu ofício, o militar gaúcho trabalhou em Roraima desde 1969, onde teve estreito contato com a população da região e jamais ouviu falar em ianomâmis, palavra que invade a imprensa brasileira e internacional somente a partir de 1973.

Segundo Menna Barreto, Manoel da Gama Lobo D’Almada, Alexandre Rodrigues Ferreira, os irmãos Richard e Robert Schomburgk, Philip von Martius, Alexander von Humboldt, João Barbosa Rodrigues, Henri Coudreau, Jahn Chaffanjon, Francisco Xavier de Araújo, Walter Brett, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Jacques Ourique, Cândido Rondon e milhares de exploradores anônimos que cruzaram, antes disso, os vales do Uraricoera e do Orenoco, jamais identificaram quaisquer índios com esse nome”.

Tampouco o leitor que hoje tenha 40 ou 50 anos jamais terá ouvido falar, em seus bancos escolares, da tal de tribo, que recebeu um território equivalente a três Bélgicas, como sendo suas “terras imemoriais”. Imemoriais desde quando? Desde há quatro décadas?

Claudia Andujar, em verdade, ianomamizou uma babel de tribos que pouco ou nada tinham a ver entre si. A ficção tomou força na imprensa internacional e os “ianomâmis” passaram a “existir”. Quando Brasília se deu conta de que o reconhecimento de grupos indígenas requeria capacitação em Antropologia, o mal já estava feito: a fotógrafa havia criado uma nação. Cabe lembrar que a profissão de antropólogo, como a de prostituta ou psicanalista, não estão regulamentadas por lei no Brasil.

Mesmo assim, em 1992, por um punhado de linhas na mídia internacional, o então presidente Fernando Collor de Mello avalizou a ficção de Andujar, entregando três Bélgicas a dez mil índios (ou talvez menos da metade disso), que só passaram a ser ianomâmis a partir de 1973. Milagre do jornalismo eletrônico: jamais se construiu uma nação em tão pouco tempo.

Li ontem no jornalismo on line despacho da AFP, segundo o qual a Horonami Organización Yanomami (HOY), organização que reúne indígenas ianomâmi, denunciou a matança em julho passado de cerca de 80 membros desta etnia pelas mãos de mineiros ilegais brasileiros em uma zona florestal do sul da Venezuela. Quem informa é Luis Ahiwei, secretário-executivo da ONG.

"No dia 5 de julho, os garimpeiros queimaram o shabono (cabana) onde aproximadamente 80 pessoas moravam", contou Ahiwei. Segundo o ativista, com um helicóptero os mineiros "de repente se posicionaram em cima do shabono e soaram disparos e ocorreram explosões por toda a comunidade" Irotatheri, localizada no afastado setor Momoi do Estado Amazonas, fronteiriço com o Brasil.

"A comunidade foi massacrada e apenas três indígenas sobreviveram, que encontraram os corpos depois de voltarem de uma excursão de caça, afirmou. "O conflito se originou dias antes, quando os mineiros levaram uma mulher (ianomâmi) e os indígenas a resgataram. Por isso os mineiros se armaram", afirmou Ahiwei.

Curioso que, tendo o massacre ocorrido há quase dois meses, só agora foi anunciado. Segundo a denúncia do ativista, os oitenta ianomâmis foram queimados. Muito bem. Onde estão os oitenta cadáveres, ou pelo menos as fotos dos oitenta cadáveres? Os ianomâmis massacrados em 93 – que eram 19, se transformaram em 40 e chegaram a 73, para logo voltar a serem 19, sem que nenhum cadáver fosse descoberto – também foram queimados.

Para explicar a inexistência de cadáveres no "masssacre" de 93, foi chamado de Paris o antropólogo Bruce Albert, que defendeu tese sobre os ianomâmis na universidade de Nanterre, intitulada Temps de sang, temps de cendres. Ou seja: tempo de sangue, tempo de cinzas. Para o antropólogo, não existiam vestígios do massacre porque os ianomâmis costumavam queimar seus mortos e suas crianças comiam as cinzas com mingau de banana:

"Nas grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das crianças serão tomadas com mingau de banana. Nessa ocasião, as cabaças, cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão queimados ou destruídos.

"A destruição dos pertences dos mortos, obliteração de seus nomes pessoais e o enterramento ou ingestão de suas cinzas nos rituais funerários dos ianomâmis têm por objetivo garantir que o espectro possa viajar definitivamente para o mundo dos mortos "nas costas do Céu" sem a possibilidade de voltar e atormentar os vivos. Para que isto aconteça, é necessário que estes comemorem os seus mortos até que todas as cinzas acabem, durante sucessivas cerimônias mortuárias.

"É por isso que o povo de Haximu teve que resgatar os despojos de seus mortos, mesmo sob a forte ameaça de ataques garimpeiros. Não fazê-lo seria condenar os espectros a errar entre dois mundos, assombrando os vivos com uma interminável melancolia pior que a própria morte.

"O seu luto durará até as cinzas terminarem, quando então voltarão à normalidade. Mesmo assim, nunca esquecerão que os brancos são capazes de esquartejar mulheres e crianças, "como espíritos comedores de gente".

O fecho de ouro do soneto bem poderia terminar com aquele C.Q.D. — Como Queríamos Demonstrar — que dava um nó de tope nas demonstrações de teoremas na escola dos anos 60. Não há cadáveres porque foram reduzidos a cinzas. As cinzas não podem ser examinadas porque são destruídas em ritos funerários. E os assassinos — ou seja, os garimpeiros em geral — devem ser impedidos de entrar em "território ianomâmi", aquelas três Bélgicas inteiras entregues a dez mil bugres por força de pressões internacionais.

O denunciante do massacre em Irotatheri ainda não exibiu cadáveres. A história soa inverossímil. Por que garimpeiros matariam oitenta índios, quando tal morticínio seria uma óbvia condenação a todos eles? Onde estão os cadáveres? O massacre ocorreu há quase dois meses, tempo mais que suficiente para produzir fotos.

Quero cadáveres. Sem cadáveres, me reservo o direito à dúvida. Ou os ianomâmis dos shabonos de Irotatheri também costumam comer as cinzas de seus ancestrais com mingau de banana?

quarta-feira, agosto 29, 2012
 
DEUS ÚNICO? ONDE?


Escreve-me Franciene: “sinto muito que você tenha deixado de crer em Deus por causa da falibilidade humana... Preferível se tivesse deixado de crer na humanidade”. Engana-se a leitora. Deixei de crer em Deus por causa da falibilidade divina.

Em qual deus você gostaria que eu acreditasse, Franciene? Naquele deus dos judeus que manda massacrar, arrasar, degolar, destruir cidades, matar tudo que respire? Ou no deus dos cristãos, que promete o fogo eterno a quem não estiver com ele?

Cá entre nós, nenhum desses deuses me serve. Por outro lado, leio a Bíblia não como manifestação da palavra divina, mas como obra literária. Um deus não seria tão incoerente. Incoerência é coisa humana.

Prossegue a leitora: “Bem, pensei que falávamos do único Deus que existe, o Deus da Bíblia, o Deus dos Judeus, o Deus dos Cristãos...”

Bem se vê que a leitora jamais leu a Bíblia atentamente. Não há um só deus no Antigo Testamento:

Diz Labão a Jacó: “Mas ainda que quiseste ir embora, porquanto tinhas saudades da casa de teu pai, por que furtaste os meus deuses?”
Diz Jacó à sua família: “Lançai fora os deuses estranhos que há no meio de vós, e purificai-vos e mudai as vossas vestes”.
Diz Jeová aos hebreus: “Porque naquela noite passarei pela terra do Egito, e ferirei todos os primogênitos na terra do Egito, tanto dos homens como dos animais; e sobre todos os deuses do Egito executarei juízos; eu sou o Senhor”.
Canta Moisés este cântico a Jeová: “Quem entre os deuses é como tu, ó Senhor? a quem é como tu poderoso em santidade, admirável em louvores, operando maravilhas?”
Disse Jetro, o sogro de Moisés: “Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses; até naquilo em que se houveram arrogantemente contra o povo”.

O Pentateuco está repleto de deuses. Astarote, Baal, Dagom e por aí vai. Em momento algum Moisés afirma ser Jeová o único deus. Aliás, até o próprio Jeová reconhece a existência de seus pares, quando determina: “Não terás outros deuses diante de mim”. Os deuses eram muitos na época do Pentateuco. Jeová é apenas um entre eles, o deus de uma tribo, a de Israel. Em La Loi de Moïse, escreve Jean Soler: “Ora, nem Moisés nem seu povo durante cerca de um milênio depois dele – os autores da Torá incluídos – não acreditavam em Deus, o Único. Nem no Diabo”.

A idéia de um deus único só vai surgir mais adiante, no dito Segundo Isaías. Reiteradas vezes escreve o profeta:

Assim diz o Senhor, Rei de Israel, seu Redentor, o Senhor dos exércitos: Eu sou o primeiro, e eu sou o último, e fora de mim não há Deus.

Num acesso de egocentrismo, Jeová se proclama o único:

Quem há como eu? Que o proclame e o exponha perante mim! Quem tem anunciado desde os tempos antigos as coisas vindouras? Que nos anuncie as que ainda hão de vir. Não vos assombreis, nem temais; porventura não vo-lo declarei há muito tempo, e não vo-lo anunciei? Vós sois as minhas testemunhas! Acaso há outro Deus além de mim?

Ou ainda:

Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cinjo, ainda que tu não me conheças. (...) Porventura não sou eu, o Senhor? Pois não há outro Deus senão eu; Deus justo e Salvador não há além de mim.

Só aí, e tardiamente, surge na Bíblia a idéia de um só Deus. Jean Soler nota uma safadeza nas traduções contemporâneas da Bíblia: Jeová está sumindo. Fala-se em Deus ou Senhor, em Eterno ou Altíssimo. Como Jeová é apenas o deus de Israel, melhor esquecer o deus tribal. Ao que tudo indica, alguns tradutores fazem um esforço para transformar um livro politeísta em monoteísta. Substituiu-se a monolatria - culto de um só deus nacional - pelo monoteísmo, culto de um deus único.

Mas a leitora não desiste: “ler a bíblia como uma obra literária é uma opção. A bíblia é o único livro que pode ser lido junto com o seu Autor”.

Quanto a ser Deus o autor da Bíblia, todas as igrejas cristãs admitem a autoria humana, a tal ponto que até hoje não se sabe muito bem quem escreveu o quê. Sem ir muito longe, fica claro que Moisés não escreveu o Pentateuco, já que nele narra sua própria morte. Das treze cartas atribuídas a Paulo no NT – segundo o teólogo Bart Erhman, em Pedro, Paulo e Maria Madalena - sabe-se que apenas sete são incontestavelmente dele. Seis das cartas diferem em vocabulário e estilo literário utilizado, pontos de vista teológicos representados e o contexto histórico das epístolas: algumas das cartas pressupõem uma situação que surgiu bem depois da morte de Paulo. Um deus onisciente não cometeria tais lapsos.

Franciene volta à carga: “Bem, pensei que falávamos do ÚNICO DEUS que existe, o Deus da Bíblia, o Deus dos Judeus, o Deus dos Cristãos...”

A idéia do deus único emerge lentamente do seio de uma cultura onde havia vários deuses. Quando Paulo vai a Atenas pregar a nova doutrina, alguns filósofos epicuristas e estóicos se perguntavam quem seria aquele conversador. Levando-o ao Areópago, quiseram saber: “Poderemos nós saber que nova doutrina é essa de que falas? Pois tu nos trazes aos ouvidos coisas estranhas; portanto queremos saber o que vem a ser isto”.

Os atenienses, muito cautos em relação aos deuses, haviam erguido inclusive um altar ao Deus desconhecido. (Nunca se sabe...). Paulo pega a deixa e deita verbo:

“Passando eu e observando os objetos do vosso culto, encontrei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Esse, pois, que vós honrais sem o conhecer, é o que vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens”.

Os atenienses não entendem o novo deus. Entendiam os deuses de cada nação. Havia os deuses gregos, romanos, egípcios, persas. Que deus era esse que não pertencia a nação nenhuma? Ora, não pertencendo a nação nenhuma, disto decorria uma consequência inevitável: era o deus de todos os homens. Quando ouviram falar em ressurreição de mortos, gozaram com a cara do apóstolo: “Acerca disso te ouviremos ainda outra vez”.

Isso sem falar que o deus dos judeus nada tem a ver com o deus dos cristãos. Para Arnold Toynbee, foi o cristianismo paulino que transformou Jesus em um deus encarnado. Em vida, Cristo não poderia ter aceitado essa condição, pois era judeu. Segundo as escrituras cristãs, por pelo menos duas vezes Jesus repudia a sugestão de que fosse divino. Pode ter se denominado Filho de Deus, mas isto não era algo aplicado somente a Jesus. Para Bart Erhman, a idéia de que Jesus era divino foi uma invenção ainda posterior, encontrada apenas no evangelho de João.

Para Erhman, ser o Filho de Deus não significava ser divino. “No Antigo Testamento, Filho de Deus pode se referir a vários indivíduos diferentes. O rei muito humano de Israel era chamado de Filho de Deus e a nação de Israel era vista como filho de Deus. Ser o Filho de Deus costumava ser o intermediário humano de Deus na Terra. O Filho de Deus tinha uma relação especial com Deus, como aquele que Deus escolhera para fazer sua vontade. Em Marcos, Jesus é o Filho de Deus porque é aquele que Deus escolheu como Messias, que deve morrer na cruz para fazer a expiação como um sacrifício humano. Mas não há uma única palavra nesse Evangelho sobre Jesus ser realmente Deus”.

Com o surgimento do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a nova seita foi lentamente voltando ao politeísmo. É por pressão do imperador Constantino (306-337) – escrevi há pouco - que se cria nessa época o dogma da Santíssima Trindade. Constantino precisava de um deus forte para seu império e adotou a nascente religião. Ao ver que o cristianismo estava resvalando rumo ao politeísmo, o imperador manipulou as discordâncias teológicas existentes entre Arius (Cristo é um ser criado) e Atanásio (Cristo é igual e eterno como seu Pai) e coagiu os bispos do império a assumir a doutrina de Atanásio. “Adoramos um só Deus em Trindade… O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e contudo eles não são três deuses, mas um só Deus”. O que deve ter dado origem, séculos depois, àquele aparelho de som da Gradiente, o três-em-um. O aparelho da Gradiente sumiu do mercado. O três-em-um do Atanásio continua tendo muita demanda. Mas isto já é outra história.

Resta ainda uma perguntinha. Se o Filho era tão eterno quanto o Pai, por que o Pai esperou tantos séculos para apresentá-lo a seu povo, os judeus? Ao entregar as tábuas da Lei a Moisés no monte Sinai, bem que Jeová podia ter avisado: "a propósito, eu tenho um filho. É rebelde e contestador, acho até que vou fazer um novo testamento".

Espero em algo ter contribuído para o conhecimento do Livro a Franciene.

terça-feira, agosto 28, 2012
 
AGÊNCIAS DE TURISMO
A SERVIÇO DO COMUNISMO



Pelo que leio, os velhos comunistas foram se refugiar... nas agências de turismo. Segundo Michael Moynihan, da revista americana Foreign Policy, guias turísticos tratam países com governos esquerdistas autoritários como vítimas que devem ter sua pureza visitada. E como crentes é o que não falta para fazer turismo, desde Lourdes a Havana, este ramo do turismo vai de vento em popa.

Já visitei alguns desses países, antes da queda do Muro. Não por propaganda de agência de turismo. Mas por vontade própria e, no caso da Romênia, a convite de uma amiga que me levou como guia. Não deixa de ser uma experiência. Voltamos com vontade de beijar o bom solo capitalista. Estive em Berlim Oriental, onde levei umas quatro horas para almoçar em um restaurante quase vazio, onde havia um farto cardápio, mas um só prato, o do dia.

Andei também por Hungria e Tchecoslováquia, quando a Tchecoslováquia existia. Mas estes países já estavam fugindo à economia soviética. A vida é como uma viagem aos países do Leste – disse-me certa vez um jornalista espanhol – curta e cheia de aborrecimentos. Sim, havia ainda uma certa burocracia estúpida em Praga e Budapeste. Mas a viagem não chegava a ser aborrecida. Aborrecida mesmo foi a viagem a Rússia, dez anos após a queda do Muro. Os tovaritchi talvez tenham sido os que mais custaram a se desprender do socialismo.

Mas a pior das viagens – e a melhor , ao mesmo tempo – foi a viagem à Mangália, na Romênia, às margens do Mar Negro. Pior por ter sido a mais precária, desconfortável e controlada. Melhor por ter dado uma boa idéia do que era o socialismo. Já contei, mas só para relembrar. Na cidade toda, que era um balneário, só havia dois maiôs, um verde e outro azul. E isso em pleno verão. Os bares à beira da praia abriam, mas nada tinham para vender. Nem bebida nem comida. O distribuidor não viera.

Tenho um amigo que há horas me convida para visitar Cuba. Quer que eu vá para ver o socialismo de perto. Antes que acabe. Bom, já o vi de perto. E não tenho estímulo algum para voltar a vê-lo. Segundo Moynihan, as agências de viagem tentam vender regimes totalitários como paradigmas de sociedades justas. Para verificar a qualidade da educação política que oferecem a uma nova geração de viajantes, é útil começar passando os olhos sobre seus guias de viagem para países não democráticos como Cuba, Irã, Coréia do Norte e Síria.

“Há uma fórmula nesse caso: um reconhecimento pro forma da falta de democracia e liberdade naquele país, acompanhado por exercícios de equivalência moral, várias tentativas para contextualizar o autoritarismo ou atrocidades, e ataques mordazes à política externa americana que precipitou aquelas ações desesperadas e defensivas. De um modo geral, há um slogan coerente de que o atraso econômico deve ser encarado como autenticidade cultural e também uma forte rejeição da globalização e da hegemonia americana”.

O jornalista cita o guia Lonely Planet Líbia - publicado antes dos desagradáveis fatos ocorridos no país – cujos leitores são informados de que o ditador líbio, Muamar Kadafi, provavelmente foi acusado injustamente do atentado a bomba que derrubou o avião da Pan Am.

“Na verdade, segundo o guia, uma das teorias mais confiáveis é a de que o atentado foi ordenado pelo Irã em represália à derrubada de um Air Bus iraniano por um navio de guerra americano no Golfo Pérsico, em 3 de julho de 1988. Kadafi é retratado como uma figura mal compreendida (um tema recorrente durante todo o seu governo é o seu desejo, em vão, de uma união com outros Estados), injustamente caluniado pelos governos ocidentais os cidadãos líbios sofreram e o mundo rejeitou as propostas líbias para entregar para julgamento os suspeitos pelo atentado de Lockerbie) e vítima da injustiça da mídia (os jornalistas ocidentais, ávidos por qualquer oportunidade de banalizar as trivialidades da Líbia governada por Kadafi, chamavam suas guarda-costas de amazonas)”.

Já o guia Lonely Planet Afeganistão explica que "a burca pode ser vista como um instrumento para aumentar a mobilidade e a segurança, uma nuance com frequência esquecida na imagem que esta vestimenta tem no exterior. Supor que uma mulher vestindo uma burca não tem autonomia e precisa ser libertada é muita ingenuidade".

Para Cuba, todas as honras:

“Aparentemente, estamos completamente errados quanto aos famosos Comitês para a Defesa da Revolução (CDR), rede de informantes similar à Stasi que monitoram e denunciam dissidentes incômodos como Yoani Sánchez. O Lonely Planet Cuba garante aos turistas que esse grupo é na verdade uma organização cívica benigna: os CDR são "órgãos de vigilância dos bairros criados em 1960 para consolidar o apoio popular à revolução e hoje têm um papel decisivo no campo social, da saúde, na educação e em campanhas de trabalho voluntário e de reciclagem".

“Para o redator do guia, como também para os viajantes maravilhados que os compram, não existe uma característica mais desejável numa viagem ao exterior do que a "autenticidade" - lugares não corrompidos pela propaganda corporativa ocidental e as marcas globais - e muitos desses Estados-pária são os únicos que oferecem isso. O Lonely Planet exalta que Cuba é um país desprovido de propaganda de mau gosto, possuindo uma singularidade, uma commodity que está desaparecendo num mundo cada vez mais globalizado".

Cuba é ilha cheia de miragens, tanto que já enganou Colombo, que ao bordejá-la estava certo de ter chegado ao Japão, para espanto dos acadêmicos de Espanha que negavam tal feito. Colombo ria dos acadêmicos, afinal eram teóricos e não navegantes, enquanto ele, o nauta, lá havia estado. O que mais uma vez nos confirma que muitas vezes o homem ignora completamente as circunstâncias que o envolvem.

Consta que Colombo, em sua viagem, buscava nada menos que o paraíso, como pelo paraíso pensam ter passado fanáticos deslumbrados que cantam as virtudes de um sistema social no qual não suportariam viver um mês na condição, não de turistas, mas de cidadãos comuns.

Em Paris, conheci uma francesa que, ao ler em um ônibus a inscrição PAREDÓN PARA LOS TERRORISTAS, interpretou a coisa segundo sua fé. "Pardon pour les terroristes? Oh, ils sont gentils, les Cubains!" Terroristas, é claro, é quem exige eleições livres, alternância de poder, pluripartidarismo, economia de mercado e liberdade de expressão. Mas isto o turista ideológico não quer ver. Os cubanos são gentis.

Seguido tropeço com moças que acreditam nestas potocas, em geral petistas e assistentes sociais, o que é um truísmo. Apesar da comida racionada, dos prédios caindo em pedaços, dos carros dos anos 50 em pandarecos, voltam louvando as virtudes da ilha. “Ah, lá são todos alfabetizados”. Como se fosse proeza alfabetizar uma ilha de 10 milhões de habitantes, metade da população de São Paulo. E alfabetizados para quê? Para ler uma imprensa dominada pela ditadura?

“Ah, mas lá todos têm saúde”. Saúde como, se não têm nem comida? Ano passado, o repórter americano Patrick Symmes escreveu sobre como viver 30 dias na ilha com o salário de um jornalista cubano, isto é, 15 dólares. Sem falar que deixou de lado as despesas de aluguel de um imóvel vagabundo.

Segundo Symmes, a ração padronizada de produtos básicos consiste, por pessoa, em dois quilos de açúcar refinado, meio quilo de açúcar bruto, meio quilo de grãos, um pedaço de peixe, três pãezinhos.

Riram muito quando perguntei se recebiam carne de vaca. "Frango", disse a mulher, mas isso provocou uivos de protesto: "Qual foi a última vez que recebemos frango?", o marido questionou. "Pois então, é verdade", ela disse. "Já faz alguns meses". A ração de proteína é distribuída a cada 15 dias e consiste numa carne moída de misteriosa composição, que inclui uma bela proporção de pasta de soja (se a carne for suína, a mistura recebe o falso nome de "picadillo"; se for frango, é conhecida como "pollo con suerte", ou frango com sorte). A ração basta para o equivalente a quatro hambúrgueres. Por mês, mas até aquele momento, em janeiro de 2010, cada um só havia recebido um peixe - em geral, uma cavala seca e oleosa. E há os ovos. A mais confiável das fontes de proteínas, eles são conhecidos como "salva-vidas".

Antigamente, a ração era de um ovo por dia; depois, um ovo a cada dois dias; agora, é de um ovo a cada três dias. Eu teria dez deles como ração para o mês seguinte. A opinião geral é de que a ração mensal hoje só dá para 12 dias de comida. A minha viagem serviria para que eu fizesse o meu próprio cálculo: como alguém pode sobreviver durante um mês com comida para apenas 12 dias?


Resumindo: em um mês, Symmes perdeu quatro quilos.

Eu havia perdido primeiro dois, depois três, por fim quatro quilos. Mas estômago e mente se ajustaram com facilidade assustadora. Meus gastos totais com comida foram de US$15,08 ao longo do mês. (...) Minha última manhã: sem desjejum, para complementar o jantar que não tive na noite anterior. Usei a moeda que ganhei de uma prostituta para apanhar um ônibus até perto do aeroporto. Tive de caminhar os 45 minutos finais até o terminal; quase desmaiei no caminho.

No entanto, se um dia você conversar com uma assistente social petista – com perdão pelo pleonasmo – ela vai jurar de mãos juntas que em Cuba ninguém passa fome e todos gozam de excelente saúde. Ora, desde quando pode existir população saudável em um país em que o salário de um jornalista pode comprar, em um mês, o suficiente para viver doze dias?

Mas isto não entra no bestunto de quem quer crer. Além de gentis, os cubanos são saudáveis e sensuais, segundo os guias produzidos pelas agências:

Escrevendo na revista britânica The Ecologist, Brendan Sainsbury, co-autor de Lonely Planet Cuba, sustenta que há uma pureza na penúria cubana: "caminhando lado a lado com presunçosos ocidentais pálidos, gordos e sem coordenação, que estão passando duas semanas de férias longe do Prozac e da 'junk food', os cubanos não andam apenas - eles deslizam, caminhando ritmicamente pelas ruas como dançarinos balançando os quadris na batida sincopada da rumba. Talvez o segredo esteja no racionamento de comida."

Como crentes é o que não falta entre as viúvas, a Disneylândia das esquerdas ainda goza da fama de paraíso do Caribe.

segunda-feira, agosto 27, 2012
 
ARGENTINA APOSENTA ESCREVINHADORES


Segundo Simon Romero, do The New York Times, os escritores têm uma razão a mais para viver em Buenos Aires: pensões. A cidade está concedendo pensões a escritores publicados num programa que procura fortalecer a "coluna vertebral da sociedade", como os formuladores da lei descreveram seu objetivo. Desde sua aprovação recente, mais de 80 autores foram agraciados com pensões, que podem atingir quase US$ 900 mensais, suplementando a renda magra das aposentadorias.

Para começar, me parece um tanto fora de propósito definir os escritores como coluna vertebral da sociedade. Antes de escritores, um país precisa de médicos, engenheiros, comerciantes, funcionários, produtores de bens, de tecnologia, de moradias, de comida e até mesmo de lazer. Só depois, e bem depois, vem a literatura. Pode um país viver sem literatura? Poder, pode. Tanto que muitos vivem sem praticamente nenhuma expressão literária. Primum vivere, deinde philosophari, diziam os romanos. Primeiro viver, depois filosofar. Da antiga Roma para cá, a ordem de prioridades não mudou.

Verdade que uma elevada literatura enobrece um país e civiliza seus cidadãos. A Espanha muito deve ao Quixote, assim como a Argentina ao Martín Fierro. Mas nenhum destes países pagou pensão a seus escritores. A propósito, Cervantes escreveu boa parte de sua obra nas masmorras de Oran, na Argélia, e no cárcere de Argamasilla del Alba, o qual evoca na primeira frase do Quixote:

“En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor”.

O resto conhecemos, há mais de quatro séculos. Segundo os historiadores, ao sair do cárcere e provar sua inocência, Cervantes não encontrou editor para seu livro e em vão se dirigiu aos grandes senhores da Corte para que custeassem os gastos de edição. Que acabou sendo financiada pelo Duque de Béjar, em cujo palácio, ante um público seleto, Cervantes leu um capítulo de seu livro, “causando tão grande entusiasmo que o auditório não o deixou acabar até a leitura do último”.

Cervantes chegou à velhice pobre e só, sem pensão alguma, e recebeu enterro tão humilde quanto foi sua vida. Quanto a Fierro – essa extensão do Quixote no Plata, como pretendem alguns – foi iniciado no exílio, em Santana do Livramento. José Hernández, fazendeiro e senador da República, nunca precisou de favores do Estado para escrever sua obra-prima. Realizou o sonho de todo escritor: seu personagem matou o autor. Milhares de argentinos conhecem Fierro, sem ter idéia do autor. Quando Hernández morreu, um jornal argentino noticiou:

SE MURIÓ EL SENADOR MARTÍN FIERRO

Se a Espanha não tivesse o Quixote nem a Argentina o Martín Fierro, certamente não seriam o que são hoje. Mas, cá entre nós, não deixariam de existir. O Brasil, sem ter produzido nada semelhante, aí está.

Domingos Faustino Sarmiento, o autor de outro livro culminante da literatura argentina, autor de Facundo ou Civilização e Barbárie – livro também escrito no exílio, no Chile - foi um autodidata sem educação formal, nascido de família pobre. Eleito presidente da República em 1868, duplicou o número de escolas públicas na Argentina e construiu por volta de 100 bibliotecas públicas. Nunca recebeu esmola do Estado.

"O programa é magnífico, proporciona um pouco de dignidade aos que, como nós, batalharam a vida inteira pela literatura", disse Alberto Laiseca, de 71 anos, um dos contemplados por uma pensão estatal, que escreveu mais de uma dezena de livros de ficção de horror, incluindo O Jardim das Máquinas Falantes e As Aventuras do Professor Eusebio Filigranati.

Alguém, entre nós, ouviu um dia falar das ficções de horror de Laiseca? De seu jardim das máquinas falantes ou de suas aventuras do professor Eusebio Filigranati? Eu, que sempre me interessei pelas letras de nuestros vecinos – e que traduzi Roberto Arlt, Sábato, Borges e Bioy Casares – jamais ouvi falar. Suponho que os que me lêem muito menos. E me parece que a Argentina continuaria existindo mesmo sem essa coluna vertebral chamada Laiseca. Como escritores de vulto são raros mesmo no espaço de um século, é mais provável que a Argentina aposente escrevinhadores.

Os requisitos para obter a pensão são rígidos e ela está disponível somente para argentinos com pelo menos 15 anos de residência na cidade de Buenos Aires – escreve o repórter do NYT -. É preciso ter pelo menos 60 anos e no mínimo cinco livros publicados por editoras conhecidas, o que deixa de fora os que editam as próprias obras. O benefício é limitado aos escritores de ficção, poesia, ensaios literários e peças de teatro. "Preferimos não chamar isso de pensão, mas de um subsídio em reconhecimento da atividade literária", garantiu Graciela Aráoz, poeta que preside a Sociedade de Escritores Argentinos, com mais de 800 membros.

Para início de conversa, o programa ignora os dias de hoje, em que um escritor pode dispensar perfeitamente uma editora e editorar – e publicar – sua própria obra. Os brilhantes autores do projeto parecem jamais ter ouvido falar em ebooks. Continuando, contempla apenas os residentes na capital. Azar de quem nasceu na província. E exige a publicação de cinco livros, sem sequer definir o que entenda por livro. Plaquete de trinta páginas é livro? Se os cinco livros publicados ao longo de toda uma vida somarem 150 páginas, o autor destas 150 páginas pode ser considerado escritor? Se um jornalista reúne uns dez ou vinte ensaios literários – coisa banal na vida de um jornalista - e os encaderna em forma de livro, passa a ser considerado escritor?

Resta outra pergunta: em um país onde a imprensa é esmagada se não se serve ao governo, quais critérios definirão os pensionistas? É preciso apoiar o cristinismo? Opositor faz jus a bolsa?

No Brasil – cujos escritores há muito renunciaram à condição de coluna vertebral e se contentam com a de parasitas da sociedade – a pensão estatal foi disfarçada com outros benefícios, tais como leitura obrigatória nos currículos escolares e universitários – o que se traduz em gordos direitos autorais -, subsídios para traduções no Exterior – mais direitos autorais - e turismo literário para os amigos do Rei pelas prestigiosas capitais do Ocidente. Em vez de remunerar a submissão ao poder em final de vida, o Brasil sustenta os escritores corruptos desde a idade madura.

Comentei o assunto ano passado. De lá para cá, nada tenho a acrescentar.

ESCRITORES QUEREM
VIDA MANSA ÀS CUSTAS
DO CONTRIBUINTE *


Leio na Folha de São Paulo, em reportagem de Lucas Ferraz, que a Argentina quer instituir uma pensão social para escritores. A idéia, inspirada em leis aprovadas na França e na Espanha, é defendida há anos por um grupo de escritores do país. "Com a barriga vazia, o escritor não escreve", diz o poeta Miroslav Scheuba, coordenador da Sociedade Argentina de Escritores. "Como escritores são boêmios, não economizam e acabam sem nada", completa.

A entidade já conseguiu aprovar o projeto em Buenos Aires, em 2009. São 100 escritores beneficiados, que recebem por mês 2.650 pesos - cerca de R$ 1.080. A prefeitura da cidade analisa atualmente o pedido de pensão de outros 30 autores. Pelos cálculos do governo, no âmbito federal, seriam quase mil beneficiados.

Os requisitos para o autor postular à pensão é não ter fonte de renda - ou tê-la menor que o valor da bolsa-escritor. É necessário ter mais de 60 anos, ter se dedicado mais de 20 anos à atividade literária ou publicado mais de cinco livros. Outro quesito essencial é morar há pelo menos quinze anos na Argentina.

Trocando em miúdos: os escritores argentinos querem delegar ao contribuinte seu sustento e os gastos de suas boêmias. Se não conseguem viver de direitos de autor, passam a conta aos leitores. Ou nem mesmo a eles, já que quem não os lê também vai marchar. O escritor passa a ser uma espécie de incapaz do ponto de vista econômica, a ser sustentado por esmola estatal.

Ainda segundo o jornal, uma voz isolada levantou-se contra o projeto, o escritor Cesar Aira: "Faz tempo que se discute isso por aqui. Sou contra". Aira comenta o caso do México, onde uma lei garante a qualquer pessoa maior de 18 anos, após escrever um livro, pensão vitalícia do Estado. "Não acredito que isso seja bom para a literatura."

A brilhante idéia já surgiu em Pindorama. Mais precisamente em 2002 quando Mário Prata, medíocre cronista do Estadão, pediu ao presidente da república o reconhecimento da profissão de escritor: "O que eu quero, meu presidente, é que antes de o senhor deixar o governo, me reconheça como escritor". Claro que não era apenas a oficialização de uma profissão que estava em jogo. Mas o financiamento público da guilda.

Esquecendo que existe um Congresso neste país, o cronista pedia ao presidente a elaboração de uma lei. Mais ainda. Citava a Inglaterra como exemplo de país onde o escritor é reconhecido. Lá, segundo o cronista, toda editora que publicar um livro, tinha que mandar um exemplar para cada biblioteca pública do país. "Claro que os 40 mil exemplares são comprados pelo governo. Quem ganha? Em primeiro lugar o público. Ganha a editora, ganha o escritor. Ganha o País. Ganha a profissão".

E quem perde? - seria de perguntar-se. A resposta é simples: como o governo não paga de seu bolso coisa alguma, perde o contribuinte, que com os impostos tem de sustentar autores até mesmo sem público. É o que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento: a indústria do texto. É uma indústria divina: você pode não ter nem um mísero leitor e vender 40 mil exemplares.

Como vão viver os escritores? – perguntava-me então um leitor. Que vivam de profissões honestas, como os demais homens. Literatura é profissão? Em um livro que causou algum escândalo na Paris dos anos 70 - Le Bazar des Lettres - Roger Gouze contestou com energia o caráter profissional do ofício. "O estatuto oficial do escritor me parece tão absurdo quanto o das prostitutas que também reivindicam o seu: não se pode ao mesmo tempo desafiar o poder, a polícia, as leis (por hipócritas que sejam) da sociedade e pedir-lhes uma proteção". Se a literatura é uma arte - argumenta Gouze - o escritor deve, como todo mundo, ter uma profissão que o sustente, ao lado da arte que ele alimenta com o melhor de si mesmo. "Não uma segunda profissão, pois a literatura não é uma".

Como viverá então o escritor se a obra não lhe rende nada? "Como todo mundo" - responde Gouze. Claro que Gouze falava de uma época em que literatura era vista como contestação. Hoje, os autores estão se profissionalizando. O editor pesquisa o paladar do público e encomenda um produto de moda. O escritor, como carneirinho dócil, escreve o que o público pede e o editor ordena.

O personagem mais venal que conheço é o escritor profissional. Ele segue os baixos instintos de sua clientela. O público quer medo? Ele oferece medo. O público quer lágrimas? Ele vende lágrimas. O público quer auto-ajuda? Ele a fornece. É preciso salvar o famoso leite das criancinhas.

No fundo, saudades da finada União Soviética, onde os escritores eram pagos pelo Estado comunista para louvar o Estado comunista. Sobrou até mesmo para a prostituta-mor das letras brasileiras. Em 1950, o ex-nazista e militante comunista Jorge Amado passou a residir no Castelo da União dos Escritores, em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreveu O Mundo da Paz, uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro foi publicado, recebeu em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias.

Escritor financiado pelo Estado é escritor que vendeu sua alma ao poder. É o que acontece quando literatura vira profissão. Alguns se rendem ao que pede o grande público e fazem fortuna considerável. Uma minoria consegue exercer honestamente a literatura e manter a cabeça acima da linha d’água.

Uma imensa maioria, que não consegue ganhar a vida nem honesta nem desonestamente, apela à cornucópia mais ao alcance de suas mãos, o bolso do contribuinte.

* 19/05/2011

 
RELAXA E GOZA NÃO QUER NADA
COM ESTUPRA MAS NÃO MATA


Leio no Estadão que a senadora Marta Suplicy (PT-SP) concordará em gravar mensagem de apoio ao candidato do PT à Prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, no horário eleitoral, mas não quer aparecer em nenhum ato ao lado do deputado Paulo Maluf (PP), que aderiu à campanha petista. A decisão de Marta será comunicada nesta segunda-feira ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com quem ela vai almoçar.

Relaxa e goza não quer nada com estupra mas não mata. É um estranho caso de extremos que não se tocam.

domingo, agosto 26, 2012
 
LONGO É O CAMINHO DE UM
RIBAMAR ATÉ O ENTENDIMENTO



Leio na Folha de São Paulo de hoje:

Sabe a razão pela qual a empresa estatal dificilmente alcança alto rendimento? Porque o dono dela -que é o povo- está ausente, não manda nela, não decide nada. Claro que não pode dar certo.

Já a empresa privada, não. Quem manda nela é o dono, quem decide o que deve ser feito -quais salários pagar, que preço dar pela matéria-prima, por quanto vender o que produz-, tudo é decidido pelo dono.

E mais que isso: é a grana dele que está investida ali. Se a empresa der lucro, ele ganha, fica mais rico e a amplia; se der prejuízo, ele perde, pode até ir à falência. Por tudo isso e por muitas outras razões mais, a empresa privada tem muito maior chance de dar certo do que uma empresa dirigida por alguém que nada (ou quase nada) ganhará se ela der lucro, e nada (ou quase nada) perderá se ela der prejuízo.


Só pode ter sido obra de um antigo porco capitalista – dirá o leitor tradicional da Folha, ao deparar-se com esta desabrida ode ao capitalismo. Ou, para usar uma nomenclatura contemporânea, obra de um pérfido neoliberal. Nada disso, ingênuo leitor. O texto tem a lavra de um velho e empedernido poeta comunista, que nasceu em 1930 e só agora, 82 anos depois, parece ter descoberto a América.

O poeta é José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar, nome que adotou para diferenciar-se dos tantos Ribamares do Maranhão. Filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro no dia 1º de abril de 1964, 28 anos após a denúncia das primeiras purgas de Stalin em 1936, quinze anos após a denúncia dos gulags por Viktor Kravchenko em Paris, em 1949, nove anos após a denúncia dos crimes de Stalin por Nikita Kruschev, em 1956, no XX Congresso do PCUS. Isto é, o Ribamar atroz aderiu ao partido quando a nenhum cidadão honesto era mais permissível ignorar os crimes do regime soviético.

Em 1971, partiu para o exílio e foi acolhido de braços abertos por Moscou, a nova Jerusalém das esquerdas. Mas logo preferiu viver no bom mundo capitalista, passando a residir em Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires.

Em 1982 - 47 anos após a denúncia das primeiras purgas de Stalin em 1936, 33 anos após a denúncia dos gulags por Viktor Kravchenko em Paris em 1949, mais de um quarto de sécuo após a denúncia dos crimes de Stalin por Nikita Kruschev em 1956, no XX Congresso do PCUS – escreve o "poema" abaixo, em homenagem aos 60 anos do PCB:

Eles eram poucos
e nem puderam cantar muito alto
a Internacional
naquela casa de Niterói, em 1922.
Mas cantaram e fundaram o Partido.

Eles eram apenas nove.
O jornalista Astrojildo, o contador Cristiano, o gráfico Pimenta,
o sapateiro José Elias, o vassoureiro Luís Peres,
os alfaiates Cedon e Barbosa, o ferroviário Hermogênio
e ainda o barbeiro Nequete, que citava Lenin a três por dois.

Em todo o país eles não eram mais de setenta.
Sabiam pouco de marxismo
mas tinham sede de justiça
e estavam dispostos a lutar por ela.

Faz algum tempo que isso aconteceu.
O PCB não se tornou o maior partido do ocidente,
nem mesmo do Brasil.
Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis
tem que falar dele.
Ou estará mentindo.


De fato, quem quiser contar a história do país, terá de falar do partido. Mas não de heróis, que heróis o PCB não teve. Teve apenas assassinos, celerados e cúmplices de um dos maiores assassinos do século.

O Ribamar precisou de quase meio século para render-se à evidência histórica. Tempo mais que suficiente para a prostituta maranhense construir uma carreira literária, abiscoitar aqueles prêmios que a burritsia nacional reserva para os fiéis cultores do obscurantismo e pretender-se inclusive nobelizável. Para quem vive em torre de marfim, seguido ocorre a tentação da mosca azul. Recém em fevereiro deste ano, Gullar ousou criticar a Disneylândia das esquerdas:

Nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem permissão. É com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez – a 19ª – o governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país.

A dificuldade advém da relação afetiva e ideológica que me prende à Revolução Cubana, desde sua origem em 1959. Para todos nós, então jovens e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande transformação social da América Latina. Essa certeza incendiava nossa imaginação e nos impelia ao trabalho revolucionário.

Nos primeiros dias de novo regime, muitos foram fuzilados no célebre “paredón”, em Havana. Não nos perguntamos se eram inocentes, se haviam sido submetidos a um processo justo, com direito de defesa. Para nós, a justiça revolucionária não podia ser questionada: se os condenara, eles eram culpados.

E nossas certezas ganharam ainda maior consistência, em face das medidas que favoreciam aos mais pobres, dando-lhes enfim o direito a estudar, a se alimentar e a ter atendimento médico de qualidade. É verdade que muitos haviam fugido para Miami, mas era certamente gente reacionária, em geral cheia da grana, que não gozaria mais dos mesmos privilégios na nova Cuba revolucionária.


Gullar precisou de mais de meio século – 53 anos – para descobrir que um país comandado por 47 anos pelo mesmo homem era uma ditadura. Longo é o caminho de um bolchevique até o entendimento.

Sabíamos todos – continua o vate - que, além do açúcar e do tabaco, o país não dispunha de muitos outros recursos para construir uma sociedade em que todos tivessem suas necessidades plenamente atendidas. Mas ali estava a União Soviética para ajudá-lo e isso nos parecia mais que natural, mesmo quando pôs na ilha foguetes capazes de portar bombas atômicas e jogá-las sobre Washington e Nova York. A crise provocada por esses foguetes pôs o mundo à beira de uma catástrofe nuclear.

Mas nós culpávamos os norte-americanos, porque eles encarnavam o Mal, e os soviéticos, o Bem. Só me dei conta de que havia algo de errado em tudo isso quando visitei Cuba, muitos anos depois, e levei um susto: Havana me pareceu decadente, com gente malvestida, ônibus e automóveis obsoletos.


Como se precisasse visitar Cuba para saber que os cubanos viviam na miséria. Como se precisasse visitar a ilha para saber que os cubanos optavam por morrer nas águas do Caribe a continuar vivendo sob o regime de Cuba. O pronunciamento do poeta ocorreu por ocasião da visita de Dilma Roussef a Cuba, que manteve silencioso obsequioso em relação aos atentados aos direitos humanos na ilha dos irmãos Castro:

Do contrário, como entender a atitude da presidente Dilma Rousseff que, em recente visita a Cuba, forçada a pronunciar-se sobre a violação dos direitos humanos, preferiu criticar a manutenção pelos americanos de prisioneiros na base aérea de Guantánamo, o que me fez lembrar o seguinte: um norte-americano, em visita ao metrô de Moscou, que, segundo os soviéticos, não atrasava nunca nem um segundo sequer, observou que o trem estava atrasado mais de três minutos. O guia retrucou: “E vocês, que perseguem os negros!”.

A verdade é que nem eu nem a Dilma nem nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem a permissão do governo.


Ora, o Ribamar viveu sem tugir nem mugir em regime de onde não se podia sair sem a permissão do governo e manteve o mesmo silêncio obsequioso da guerrilheira marxista. E agora, do dia para a noite, canta as glórias do capitalismo.

Curta é a memória das gentes. Após ter feito sua fortuna literária defendendo o comunismo, Gullar agora quer faturar mais uns trocados atendendo do outro lado do balcão. Mais alguns meses, e a macróbia messalina maranhense estará sendo celebrada como um campeão da luta pela liberdade no Ocidente.

sábado, agosto 25, 2012
 
POLIAMOR SOA MELHOR


Leio no UOL que uma união conjugal entre três pessoas foi lavrada em um cartório em Tupã, interior de São Paulo. Segundo Claudia Domingues do Nascimento, tabeliã do cartório e redatora do texto, a escritura estabelece regras relativas aos bens dos parceiros, na hipótese de algum deles adoecer, morrer ou mesmo desistir da relação. “É como um contrato particular de compra e venda.”

A tabeliã afirmou que o trio tentou, sem sucesso, formalizar a escritura de união estável em outros cartórios. “Aí eles descobriram que minha tese de doutorado é sobre união poliafetiva [entre mais de duas pessoas] e me procuraram”, disse. Se antes era o Legislativo que determinava o regime legal do casamento, ao que tudo indica hoje tese de doutorado produz legislação. Segundo o UOL, o documento lavrado “pode ser a primeira escritura de união conjugal entre três pessoas no país”.

Pelo jeito, os neojornalistas perderam a memória. Ou têm preguiça de pesquisar. Há quatro anos, em Porto Velho, Rondônia, uma mulher obteve na Justiça o direito de receber parte dos bens do amante com quem conviveu durante quase 30 anos. Ele era casado e morreu em 2007, aos 71 anos. O juiz Adolfo Naujorks, que concedeu à moça o direito de herança, baseou-se em artigo publicado num site jurídico segundo o qual uma teoria psicológica, denominada "poliamorismo", admitia a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta.

Ou seja, a teoria não surgiu ontem. E sites jurídicos não só estão substituindo o Legislativo, como modificando o regime de transmissão de bens entre herdeiros. Mais ainda, estão legitimando a poligamia. Nada contra. Estou apenas constatando.

Já escrevi sobre o tal de poliamor. Apesar de ter vivido muito mais de duas relações paralelas, confesso desconhecer tal teoria. Em meus dias de jovem, chamava-se isto amasiamento, adultério, infidelidade. Ou ainda, vendo a coisa por outro ângulo, de donjuanismo. Ou casanovismo.

Mais adiante, anos 70 para cá, começou-se a falar em relação aberta. Tudo dependia do consenso do casal. Conheci casais que viveram unidos a vida toda, mantendo este tipo de relação. Era um relacionamento honesto, sem mentiras. Mas o Direito jamais reconheceu direito à herança por parte de quem não fosse a mulher legítima. Neste sentido, o matrimônio funcionava como proteção. O marido podia ser infiel à vontade, sem precisar dividir seus bens com a Outra, como se dizia então.

Poliamorismo soa mais elegante. Procurei a palavrinha nos dicionários. Não encontrei. Nem meu processador de texto reconhece a palavra, sempre a sublinha em vermelho. Fui ao Google. Já está lá. Escreve um jurista: “As relações interpessoais de cunho amoroso, por vezes destoam do padrão habitual da monogamia entre os casais formados por pessoas de sexos diferentes. Assim, encontramos relacionamentos afetivos que envolvem um casal, vale dizer um dos cônjuges e um parceiro ou parceira, os quais se desenvolvem simultaneamente. Ditas relações são denominadas de poliamorismo ou poliamor, e se constituem na coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas ao matrimônio”.

Ah! As palavras... Eu conhecia poligamia, poliandria, até mesmo policromia. Mas o tal de poliamorismo é para mim novidade. Quem diria? Cheguei aos sessenta e ainda descubro palavrinhas exóticas. Me restam no entanto algumas dúvidas. Já que a palavrinha amor é parte constitutiva do novo palavrão, me pergunto: é preciso que exista o tal de amor? Ou sexo puro também serve? O conceito é extensivo a todas as profissionais que curtimos em nossas vidas, ou profissional não vale? Aquela distante namorada, que encontramos de ano em ano, é poliamor? Ou um amorzinho mixuruca, sem direito à herança?

Os muçulmanos são mais práticos. Todo crente tem direito a quatro mulheres e estamos conversados. Não se fala em amor nem poliamor. Mas não precisamos ir até o Islã. No livro que embasa a cultura ocidental, temos o rei Salomão. “Tinha ele setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o coração”, lemos no I Reis. Poliamantíssimo, o sábio rei. Bem que gostaria de ter meu meigo coração assim pervertido.

Após a morte do empresário de Rondônia, a amante, que por lei não teria direito à partilha de bens, entrou na Justiça com uma ação declaratória de união estável, dizendo que dependia financeiramente dele e que compartilhou com ele esforço comum na formação do patrimônio. O pedido foi contestado pelos dois filhos do casamento, que pediram a condenação dela por má-fé e argumentaram que a lei nacional baseia-se no relacionamento monogâmico. Segundo trecho do artigo usado na sentença, "as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo".

Alvíssaras! Novidade na cultura ocidental. Finalmente o Direito reconhece que o tal de amor não precisa ser monogâmico. Mas minhas dúvidas permanecem. A sentença não estabelece quantas pessoas se pode amar ao mesmo tempo. Só duas? Ou vinte também vale? E o harém do rei Salomão? Pode? Tampouco esclarece se uma mulher pode amar dois ou mais homens. Pelo que se deduz da questão, quando um homem ama duas mulheres é poliamor. Já uma mulher amando dois ou mais homens, vai ver que é puta mesmo.

Segundo a tabeliã de Tupã, o trio é formado por um homem e duas mulheres, todos profissionais liberais, sem filhos, solteiros e residentes no Rio de Janeiro. “Eles se conhecem há muito tempo, e, desde 2009, passaram a viver uma relação estável.”

A tabeliã disse que existem muitas pessoas que vivem nessa situação, mas que não sabem que é possível formalizá-la em documento. “Eu estou surpresa com a repercussão desse fato. Estou sendo procurada por pessoas que vivem em condições semelhantes.” É o milagre dos neologismos. Se amasiamento, adultério ou infidelidade soavam mal, poliamor é louvável, digno e justo. O mesmo aconteceu com homossexualismo. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, homossexuais não mais existem. Agora são todos homoafetivos.

Comentei há pouco. Em defesa da nova terminologia, o ministro disse que o vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra União Homossexual, o Preconceito e a Justiça, de autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem:

“Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais”.

Pena que o neologismo está errado. Há horas venho afirmando – e parece que sou o único alfabetizado a perceber isto – que o homo, de homossexual, é palavra grega que quer dizer mesmo. Homossexual, mesmo sexo. A palavra homoafetivo, se formos fiéis ao étimo, quer dizer mesmo afeto. Ora, mesmo afeto não quer dizer nada específico. Quer dizer apenas que você tem o mesmo afeto que outra pessoa tem por você. Mas homoafetivo, segundo a desembargadora desocupada, seria um eufemismo para homossexual. Não é. É palavra que foi construída errada.

Independentemente de ser uma construção errada, o novo conceito trará insuspeitadas conseqüências jurídicas. Homoafetivos já podem casar. Homoafetividade exclui o tal de poliamor? Obviamente não. Se um homem pode amar duas mulheres, por que não poderia amar dois homens? Nada impede. Se obedecermos à boa lógica, em breve teremos três ou mais homens (ou mulheres, por que não?) registrando suas relações estáveis em cartório. O velho casamento católico vai virar partouse. De novo, nada contra. Apenas constato.

Segundo o tabelião Angelo Faleiros Macedo, do 5º Cartório de Notas de Ribeirão Preto, “a legislação ainda não prevê isso, mas as relações poliafetivas precisam ser protegidas. Elas existem de fato. No começo vai haver alguma dificuldade na elaboração do documento, pela novidade, mas depois será algo corriqueiro.” Segundo ele, a escritura feita em Tupã deverá provocar um aumento na procura aos cartórios para o registro de relações poliafetivas.

E ainda há astrólogos que crêem ser o comunismo o grande inimigo da família ocidental e cristã.

sexta-feira, agosto 24, 2012
 
SOBRE A HUMANA MESQUINHARIA,
A GRATIDÃO E A GENEROSIDADE



Ainda não morreu o dia e está provocando intensa celeuma no Facebook a revelação feita hoje por Mônica Bérgamo, na Folha de São Paulo, da linha dura do ministro Ricardo Lewandowski, do STF, em julgamentos recentes. Anteontem, numa das turmas do STF, o ministro negou habeas corpus para um carcereiro acusado de peculato em Tatuí, em São Paulo, condenado por furtar o farol de milha de uma moto. O valor, apurado em perícia: R$ 13.

Em outro julgamento, contra um pescador que fisgou ilegalmente doze camarões em Santa Catarina, o ministro foi voto vencido: Gilmar Mendes e Cesar Peluzo, da mesma turma, defenderam o trancamento das ações. Em um terceiro julgamento, sobre o furto de uma bermuda, acompanharam Lewandowski: o réu tinha antecedentes criminais.

Lewandowski, se alguém ainda lembra da primeira sessão de julgamento do mensalão – ou Ação Penal 470, como preferem os petistas – é aquele ministro que deu seqüência à manobra protelatória do renomado defensor de um dos mensaleiros, Márcio Thomaz Bastos, ao reivindicar o desmembramento dos processos, alegando que um juiz de primeira julgaria mais rapidamente que o STF. Sua intenção era que o tribunal julgasse apenas três dos réus, que têm foro privilegiado, encaminhando os outros 35 para a primeira instância.

Nesta sua chicana – pois de chicana se trata - teve como cúmplice Lewandowski, o ministro revisor do processo, que puxou do bolso um improviso de setenta páginas, cuja leitura durou 80 minutos. Para debater uma questão já julgada – e negada – pelo tribunal, o desmembramento do processo.

O ministro trazia seu voto pronto. Sabia que o chicaneiro-mor do mensalão alegaria a necessidade do desmembramento. Isto é, o ministro julgador agiu em concerto com a defesa dos réus. Que vote pela absolvição dos réus é direito seu – escrevi na ocasião. Que participe de uma manobra espúria para absolvê-los, isto se chama cumplicidade.

A celeuma ora provocada se deve ao fato de Lewandowski ter absolvido, ontem, o deputado federal João Paulo Cunha (PT-SP), da acusação de beneficiar a agência de publicidade de Marcos Valério com um contrato na Câmara em troca de R$ 50 mil. O ministro também votou pela absolvição do empresário – que em 2003 distribuiu milhões de reais a políticos do PT e outros partidos que apoiavam o governo Lula no Congresso - e de dois ex-sócios acusados de participar dos mesmos crimes atribuídos a João Paulo.

A indignação dos leitores, em primeiro lugar, não procede. Se um homem vai ser julgado, isto significa que pode ser absolvido ou condenado. Considerar que todo juiz está obrigado a condená-lo é o mesmo que instaurar um tribunal de execuções. Lewandowski tem o sagrado direito de absolver ladrões de milhões e condenar ladrões de merrecas e de uma dúzia de camarões. Para isso foi togado. Mas não é isto que está em jogo, e sim a visão abrangente do ministro.

Um homem que furta um farol de milha de uma moto ou fisga doze camarões ao arrepio da lei merece mesmo ser condenado. Que mais não seja por sua curta visão, ao arriscar a liberdade por centavos. É um mesquinho, de cérebro de minhoca. Outra coisa é pensar mais alto. Quem rouba 50 mil é pessoa que tem projetos, ambições.

Treze merrecas mal dá para comer um sanduíche. Cinqüenta mil reais já têm funções mais nobres: conforto da família, uma viagem à Europa, um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Roubar farol de milha é muita tacanhice. Já formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta é pensar grande.

Uma coisa é apropriar-se de 13 reais. Isto até desmerece o Brasil no concerto das nações. Que país emergente é esse em que um cidadão arrisca sua liberdade por dois dólares? Merece cadeia mesmo. Outra coisa é uma generosa distribuição de renda entre os denodados políticos quem têm por missão administrar o país.

"Eu acho que o juiz não deve ter medo das críticas, porque o juiz vota ou julga com sua consciência e de acordo com as leis, não pode se pautar pela opinião pública", declarou hoje Lewandowski, após participar de uma audiência pública no STF. Não pode mesmo. O ministro é um homem corajoso. Apadrinhado pela mulher do capo di tutti i capi, ao medo sobrepõe a gratidão. Como dizia Hernández, nos conselhos do Viejo Vizcacha:

Lo que más precisa el hombre
tener, según yo discurro,
es la memoria del burro,
que nunca olvida ande come.


Como o burro de Fierro, Lewandowski não esquece onde come. No julgamento dos próximos réus, todos eles homens de larga visão e ligados ao partido do governo, terá inúmeras ocasiões de manifestar sua gratidão.

Ainda ontem, a Advocacia-Geral da União (AGU) informou que fez acordo com o Grupo OK, do senador cassado Luiz Estevão, para o repasse à vista de R$ 80 milhões aos cofres públicos pelo desvio de recursos das obras do prédio do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP). Há 12 anos, Estevão foi acusado de fazer parte de uma rede de corrupção que entre 1994 e 1999 se apropriou de R$ 169 milhões destinados à construção de uma nova sede do Tribunal Regional de Trabalho de São Paulo. O valor total do acordo chega a R$ 468 milhões. Anunciado com estardalhaço como o "maior valor em casos de corrupção do Brasil e talvez do mundo", o dinheiro do acordo, no entanto, está longe de compensar o prejuízo de R$ 169 milhões - valor estimado nos anos 1990. Com correções, esse rombo seria de quase R$ 1 bilhão.

O ex-senador não está preso nem precisa de habeas corpus. Com a nonchalance de um balconista que errou no troco, afirma que pagará os R$ 468 milhões à União. "Por incrível que pareça, embora eu negue o crime, é melhor eu pagar e tirar esse aprisionamento. Tem o ditado 'devo, não nego e pago quando puder'. Eu sou contrário: não devo, nego e pago sob coação".

Generoso, o Estevão. Pelo acordo, o ex-senador – cujo patrimônio ele próprio estima em R$ 20 bilhões - dará uma entrada de R$ 80 milhões e outras 96 parcelas de R$ 4 milhões. Argent de poche. Em troca, terá o processo que corre na Justiça suspenso e parte dos mais de 1.200 imóveis em seu nome serão liberados. E estamos conversados. Não se fala mais sobre o assunto. Ministro algum lembrou de exigir dos outros réus a devolução do farol de milha ou dos doze camarões.

Seja generoso como o ex-senador. Para não se incomodar com picuinhas, paga meio bilhão de reais. Mas não ouse roubar um farol de milha, furtar uma bermuda ou pescar uma dúzia de camarões ao arrepio da lei.

Ministro que se preze pensa grande, abomina tais mesquinharias e as pune com todo o rigor da lei.

 
SOBRE OXFORD


Leio na Folha de São Paulo que a Universidade de Oxford vai destinar treze bolsas integrais por ano a brasileiros. Pelo menos é o que diz a manchete:

Oxford terá 13 bolsas integrais por ano para brasileiros

O vice-reitor da instituição, Andrew Hamilton, anunciou ontem um acordo com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação pelo qual dez estudantes de pós-graduação e três de graduação poderão estudar em Oxford a cada ano, com bolsa integral. As bolsas, pagas pelo governo brasileiro, são para medicina, física, matemática e ciências biológicas.


Pergunta que se impõe: se o governo brasileiro paga as bolsas, quem é mesmo que oferece as bolsas?

quinta-feira, agosto 23, 2012
 
RECÓRTER TUCANOPAPISTA
HIDRÓFOBO ADERE AO MAU



Pelo menos até as 11h07min de hoje, constava da coluna do recórter tucanopapista hidrófobo da Veja:

Dado o desastre geral, menos mau que assim seja. Quanto ao Enem ser “a regra republicana”, aí estamos só no terreno do proselitismo tonto.

 
QUEM VOTA MERECE


Quem me lê sabe que faz mais de vinte anos que não voto. Meu último voto, confesso sem pejo algum, eu o dei a Collor. Não por seus belos olhos. Mas porque o outro candidato era Lula. Hoje, se ainda votasse, entre Lula e Maluf, votaria no “esforçado filho do imigrante árabe”, como já foi chamado. No que, suponho, não seria reprovado por nenhum petista. Afinal, Maluf hoje é unha e carne com Lula.

Político, escrevia eu há pouco, é um homem que mente. As regras do jogo o impelem necessariamente a mentir. O que importa é arrebanhar votos. Político diz o que cada platéia pede. E omite tudo o que cada platéia rejeita. Se não mente por intenção, mente por omissão. Se não mente hoje, mentirá amanhã. Políticos pertencem a partidos. Precisam seguir a política de seus partidos, mesmo que dela discordem. Se o partido decide fazer coligação com um canalha, o candidato tem de aderir ao canalha. Se for preciso bajular grupos religiosos que não passam de operosos caça-níqueis, bajulados sejam.

O último Censo trouxe dados significativos sobre a expansão de igrejas de uma forma ou outra ligadas ao cristianismo no país. O segmento que mais cresceu foi o dos evangélicos, passando de 15% em 2000 para 22%, um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas (de 26 milhões para 42 milhões).

A religião evangélica que mais cresceu entre 2000 e 2010 foi a Assembléia de Deus, passando de 8,4 milhões para 12,3 milhões. Já a Igreja Universal do Reino de Deus perdeu quase 300 mil adeptos, passando de 2,102 milhões para 1,873 milhões. Os católicos foram comidos pela concorrência, passando de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010, uma redução de 12,2%. Em 20 anos, a queda foi de 22,4%.

Junto ao crescimento dos evangélicos, houve uma pulverização sem precedente dos mesmos na última década, na cidade de São Paulo. É o que leio no Estadão. Segundo os novos dados do Censo, o número de evangélicos sem laços com uma igreja determinada aumentou mais de quatro vezes entre 2000 e 2010, enquanto a quantidade de fiéis que frequentam templos menores cresceu 62% nesse período. Juntos, esses dois grupos foram responsáveis por 96% do crescimento do rebanho evangélico da capital em uma década, de 825 mil fiéis.

Ainda segundo o jornal, o crescimento dos evangélicos não determinados em São Paulo foi tão grande que eles hoje representam a terceira maior corrente religiosa da cidade – perdem para os católicos e os sem religião, mas ultrapassaram a Assembléia de Deus, denominação evangélica que tem o terceiro maior rebanho do País.

Segundo o antropólogo Ronaldo de Almeida, "há uma diversificação e uma maior infidelidade a uma instituição específica. O sujeito ainda se identifica principalmente como evangélico, mas hoje ele molda sua experiência religiosa. Quando quer ouvir um louvor com mais música, vai a uma igreja, quando quer cura, vai a outra, quando busca mensagem espiritual mais forte, busca outras."

A antropóloga Diana Nogueira, por sua vez, faz um paralelo com pessoas que querem perder peso e vão migrando de médico em médico. "A religião fortalece e ajuda as pessoas, mas não resolve muitos dos desafios que uma vida de periferia urbana lhes impõe. Com isso, algumas dessas pessoas vão de igreja em igreja, buscando soluções".

É o que chamo de fé à la carte. São igrejas voltadas a nichos específicos. Se este deus não me serve, busco outro. Aqui perto de onde moro há uma Igreja da Comunidade Metropolitana, voltada para o público homossexual, dirigida por uma pastora lésbica. Tampouco faltam igrejas ao gosto de roqueiros adeptos do thrash metal ou surfistas. Pagando bem, que mal tem?

É óbvio que candidato algum seria insensível a tal clientela. José Serra, por exemplo, tem tentado atrair o apoio de líderes evangélicos na cidade. Para tanto, o tucano criou um comitê evangélico na campanha. Como este apoio aos operadores de caça-níqueis não cai bem junto a outros setores do eleitorado, os encontros com líderes religiosos não são divulgados em sua agenda pública, mas têm ocorrido desde abril. Algumas igrejas, como a Convenção Geral das Assembléias de Deus e a Igreja Mundial, já declararam apoio a Serra.

A Igreja Mundial, para quem não sabe, é aquela fundada pelo apóstolo milionário Valdemiro Santiago, que usa o dinheiro da igreja para comprar bens pessoais, como fazendas no Pantanal e cabeças de gado. Somando tudo, gado, terras e benfeitorias, o investimento total de Valdemiro chega a R$ 50 milhões em dinheiro vivo, mais do que a maioria dos prêmios da Mega-Sena acumulada. É um eleitor de vulto.

O outro candidato mais cotado à Prefeitura de São Paulo, Celso Russomanno, foi mais ecumênico. Disse ontem que, se for eleito, gostaria de uma igreja em cada quarteirão. "Vou preservar todas as igrejas, regularizando a situação delas, e gostaria que em cada quarteirão houvesse uma igreja pregando o amor ao próximo".

Hábil, não manifestou preferência por esta ou aquela igreja. Quer um caça-níqueis em cada quarteirão, seja lá qual fé professar. Segundo o candidato, a linha religiosa das pessoas evita mortes e crimes. "As pessoas não matam ou roubam porque a lei proíbe, mas porque têm uma linha religiosa. Existe igreja porque a população é temente a Deus, porque a população acredita".

Nunca deve ter dado pelo menos uma trecheada na Bíblia, livro em que o bom deus dos judeus ordena matanças e saques a todas as tribos que não o cultuam. Parece tampouco conhecer a sociedade em que vive, onde as pessoas matam e roubam, apesar de a lei proibir matar e roubar.

Os tais de evangélicos, que tanto crescem, têm feito em tempo recorde a fortuna de pastores que há muito deviam estar na cadeia. E só não estão devido a uma estúpida legislação que releva exploração da fé pública, extorsão e lavagem de dinheiro em nome de uma suposta liberdade de crença. A estes vigaristas, os candidatos oferecem apoio e pedem apoio.

E não poderia ser diferente. Os evangélicos são legião e são eleitores. Os candidatos precisam de votos. Compactuar com a vigarice se impõe.

Quem neles vota, bem que os merece.

quarta-feira, agosto 22, 2012
 
Kashrut, a cozinha que divide:
UMA CULINÁRIA RACISTA
E RESERVA DE MERCADO



Por que tantas e tais prescrições? – pergunta-me um leitor. Para começar, Javé é um deus tribal. Protege os seus e não admite que estes se relacionem com membros de outra raça, que cultuam um outro deus. Está lá, no Pentateuco. Javé, deus ciumento, fere com uma praga os filhos de Israel por se relacionarem com mulheres que cultuam não ele, mas um outro deus, Baal de Fegor. Finéias, filho de Eleazar, traspassa com uma lança, de um golpe só, o israelita e a midianita que mantiam relações em uma tenda.

Números 25, 3: Estando Israel assim ligado com o Baal de Fegor, a ira de Javé se inflamou contra Israel. Javé disse a Moisés: toma todos os chefes do povo. Empala-os em face do sol, para Javé: então a ira ardente de Javé se afastará de Israel. Moisés disse aos juízes de Israel: mate cada um aquele dos seus homens que se ligaram a Baal de Fegor. Eis que veio um homem dos filhos de Israel, trazendo para junto de seus irmãos uma midianita, sob os próprios olhos de Moisés e de toda a comunidade dos filhos de Israel, que choravam à entrada da Tenda da Reunião. Vendo isso, Finéias, filho de Eleazar, filho do sacerdote Arão, levantou-se do meio da congregação, tomou na mão uma lança, seguiu o filho de Israel até a alcova e lá o transpassou, juntamente com a mulher. E a praga que feria os filhos de Israel cessou.

Fica bastante claro, no livro do bom rabino, que as interdições alimentares visam criar uma cerca que proteja os judeus de casar-se com não-judeus, em obediência ao bíblico racismo. Como o cozinhar ou comer juntos pode levar à confraternização – como de fato leva -, é bom que seja evitado. Judeu não pode casar-se com não-judia. Pode uma judia casar-se com não-judeu? Até que pode. Neste sentido, os rabinos são tolerantes. Pois inverteram a ordem de descendência. Se na Bíblia a descendência se transmite de pai para filho, conforme atestam as genealogias do Antigo Testamento, no judaísmo rabínico é de mãe para filho. Judeu é quem é filho de mãe judia, ao arrepio do Livro. Então pode.

Entre 9 de fevereiro e 9 de março de 1807, Napoleão Bonaparte constituiu na França um sinédrio – conselho judeu de 71 membros – que sucedeu à Assembléia de Notáveis, que tinha por função oficializar as medidas de secularização em matéria de decisões doutrinárias, do ponto de vista da lei judaica. Ao sinédrio e aos notáveis, o imperador fez doze perguntas. Entre elas, esta: uma judia pode casar-se com um cristão e uma cristã com um judeu? Ou a lei pretende que os judeus se casem apenas entre eles?

Está faltando um Napoleão em nossos trópicos, para bem dividir as águas. Os judeus com cidadania brasileira precisam decidir se respeitam as regras do país onde escolheram viver ou se preferem seguir regras escritas na Judéia há cinco mil anos. Para o rabino Ezra Dayan, a pergunta napoleônica não tem sentido algum. É melhor que judeus não comam com não-judeus, porque esta confraternização arrisca resultar em casamento. Estamos ante algo insólito, uma culinária racista. O comer, em vez de unir, divide.

Esta prática endogâmica cobra seu preço, a doença de Tay-Sachs. Segundo os médicos, é uma desordem neurodegenerativa, presente principalmente em crianças, decorrente de uma atividade deficiente de uma enzima específica, a lisossomal hexosaminidase A, que produz um acúmulo intracelular de substratos e um progressivo déficit neurológico.

Esta síndrome apresenta uma freqüência elevada em determinados grupos étnicos, sobretudo nos judeus ashkenazi. Não por acaso, muitos judeus procuram hoje católicas para casar-se. E por que católicas? Bom, elas já conhecem – ou deveriam conhecer – a parte judaica do Livro. Meio caminho andado para a ortodoxia.

Em segundo lugar, uma óbvia reserva de mercado. Se em cidades onde os judeus são gatos pingados não há sentido em comida casher, o caso muda de figura em grandes centros como São Paulo, Buenos Aires, Paris, Londres, Nova York, onde as comunidades judias constituem um mercado a não se deixar de lado. Judeu só pode comer o que judeus produzem, só pode comprar o pão de padeiro judeu, só pode beber o vinho que judeus confeccionam. Sobra até para os cães. Cachorro de judeu deve comer o que judeus produzem para que seus cachorros comam. Isto abarca até mesmo a restauração, pois uma garrafa de vinho aberta não pode ser chacoalhada por um garçom idólatra.

Para que serve um rabino, além de cortar pintos e benzer carnes? Para produzir teologia. Precisam então merecer seus salários. Constróem então uma culinária dogmática, que raia a insanidade. Ao longo da história, os judeus se queixam de serem reduzidos a guetos. Ora, quem constrói tais guetos, senão eles mesmos?

Estamos diante de um caso raro, em que a culinária, que normalmente une povos, serve para dividir.

terça-feira, agosto 21, 2012
 
REMEMBER INGERSOLL


Dos States, recebo mensagem de Jeffrey Schmidt:

Splendid view. Your suggestions for one to read is narrow-minded. Where is your liberal recommendations for someone who reasons the , "freedom of religion is completely contingent on freedom from religion"?

I know I know, your intellectual interest is so much higher then so call Christians. You spend hours and hours reading the Bible, to clone German Baron d'Holbach: "It is only by dispelling the clouds and phantoms of Religion, that we shall discover Truth, Reason, and Morality".

A cada oportunidade q Vc tem, you’re demanding that others, adhere to your sense of esthetics, forcing your ideologies. Compreendo your lack of belief in gods, not having a sacred scripture, atheist Priest or Pope.

That's your belief, I respect that. The guy that embraces the Bible no sovaco, nao vai tentar fazer Vc trocar de camiseta. You should respect that. Mencionando o sovaco, sua intencao foi clara, derogatory statement.

Please, I know you're smarter then that. Humility is the paradox.

See ya, Jeff

Bom, meu caro Jeff, não vou recomendar obras que dizem ser a Bíblia um livro eivado de amor, escrita por um deus amoroso. Não vou recomendá-los por serem mentirosos. Esses livros existem aos montes, apesar das evidências de que a Bíblia é um livro cheio de ódio, discriminação, sangue, massacres, genocídios. Fico pasmo quando vejo leitores do Livro que nele não vêem as matanças ordenadas por Jeová. Ora, direis, Cristo veio para suavizar o texto brutal do Antigo Testamento. Suavizar umas ovas. Que promete Cristo para quem com ele não está? A danação eterna. Hitler pelo menos condenava os judeus apenas aos fornos crematórios e deixava a vida post-mortem ao critério de cada um.

Os livros que recomendo são todos calcados nos textos bíblicos. Nada a ver com o catecismo católico, que deturpa até mesmo os Mandamentos – e inclusive omite alguns – para adaptar a Bíblia à doutrina da Igreja. Se a Bíblia é um amontoado de textos incongruentes, isto não é problema dos autores que recomendo, mas dos escribas e editores bíblicos.

Sim, sou leitor da Bíblia, mas não despendo horas para lê-la. É o livro que mais consulto, é verdade, já que costumo escrever sobre temas religiosos. A partir de um certo momento de minha vida, apaixonei-me pelo estudo da história das religiões. É muito melhor que essa literatura que anda por aí. Pois a literatura não chega a propor uma ética, não impõe crenças nem padrões de comportamento. Enquanto que os costumes todos do Ocidente, bem ou mal, estão eivados de cristianismo. Lendo história das religiões, entendo melhor minha época. Obviamente, vou privilegiar a história do cristianismo, que é a religião predominante na geografia em que habito. Vivesse no Oriente Médio, estaria estudando o Corão.

Em minha biblioteca, tenho mais de dez bíblias, sendo duas no computador. E cerca de uns quinhentos livros sobre cristianismo, judaísmo e islamismo. Mais alguns poucos sobre budismo e hinduísmo. Não é muito. Representam apenas uns dez por cento de minha biblioteca. O setor de literatura marxista e história do comunismo é bem maior. Mas esta religião teve vida curta e já morreu. Continuo estudando a que permanece viva.

Os barões d’Holbach foram muitos na História. Entre eles, Voltaire, Jean Meslier, Nietzsche, Bertrand Russel. Nos Estados Unidos tivemos Robert Green Ingersoll (1833-1899), livre-pensador norte-americano, hoje pouco conhecido, mas grande orador e líder político norte-americano em sua época, notável por sua cultura e defesa do agnosticismo.

- Alguém tinha de dizer a verdade sobre a Bíblia – diz Ingersoll -. Os padres não ousariam, porque seriam expulsos de seus púlpitos. Professores nas escolas não ousariam porque assim, perderiam seus salários. Políticos não ousariam. Eles seriam derrotados. Editores não ousariam. Perderiam seus leitores. Comerciantes não ousariam. Perderiam seus clientes. Homens da alta sociedade não ousariam. Perderiam prestígio. Nem balconistas ousariam. Eles seriam dispensados. Então, decidi eu mesmo fazer isto.

- Há milhões de pessoas que acreditam que a Bíblia é a palavra inspirada de Deus - milhões que crêem que este livro é um cajado e uma guia, conselheiro e consolador, que ele preenche o presente com paz e o futuro com esperança - milhões crêem que ele é a fonte da lei, da justiça e piedade, e que através de seus sábios e benignos ensinamentos o mundo conquistou sua liberdade, riqueza e civilidade - milhões que imaginam que este livro é uma revelação da sabedoria e amor de Deus na mente e coração do homem - milhões que têm neste livro como uma tocha que conquista a escuridão da morte e que derrama seu brilho numa outra vida - uma vida sem lágrimas.

- Eles esquecem sua ignorância e selvageria, seu ódio à liberdade, sua perseguição religiosa; eles lembram do céu mas esquecem as masmorras do sofrimento eterno. Eles esquecem que este livro aprisiona a mente e corrompe o coração. Esquecem que ele é inimigo da liberdade de pensamento.

Remember Ingersoll, um dos esquecidos precursores de Bart Ehrman e da recente safra de neoateus como Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris, Daniel Dennet. Estes autores, na verdade, estão apenas ampliando a trilha aberta pelo orador americano e o mais das vezes o repetem. O que hoje é quase unanimidade entre os estudiosos contemporâneos da Bíblia, foi aventado há mais de século por Ingersoll.

Você afirma: “The guy that embraces the Bible no sovaco, nao vai tentar fazer Vc trocar de camiseta”. Pelo jeito você nunca os viu. Nada conhecem do livro que portam sob o sovaco, mas pretendem-se os donos da verdade. Olham para ateus e demais crentes com comiseração. E fazem proselitismo 24 horas por dia. Até criancinhas se pretendem apóstolos. Certa vez, ao sair de um bar que ficava ao lado de uma igreja evangélica, fui cercado por um bando de criancinhas de Bíblia em punho. Queriam catequizar-me, os pivetes. Para eles, quem não trocar de camiseta está condenado ao fogo dos infernos.

Não sou proselitista, meu caro Jeff. Não peço a ninguém que adira às minhas convicções. Não forço a ideologia de ninguém. Ser ateu não é para qualquer um. Enfrentar o que chamo de a intempérie metafísica exige uma fortaleza de espírito que nem todo mortal possui. Ateísmo é postura de fortes, de homens que não choramingam como carpideiras diante da morte. Espíritos frágeis, melhor se abster.

Nunca pretendi roubar a fé de quem dela precisa para viver. Mas me reservo o direito de dizer o que penso sobre a cultura que me cerca.

 
A ORIGEM DA BÍBLIA
SEGUNDO INGERSOLL



Algumas famílias de viajantes - pobres, esfarrapados, sem educação, arte ou poder; descendentes daqueles que foram escravizados por centenas de anos; ignorantes como os habitantes da África Central e recém-fugidos dos seus senhores no deserto de Sinai. Seu comandante era Moisés, um homem que havia sido educado pela família do faraó e havia aprendido a mitologia e as leis do Egito.

Com o propósito de controlar seus seguidores ele fingiu que fora instruído e assistido por Jeová, o deus dos fugitivos. Tudo o que acontecia era atribuído à interferência do seu Deus. Moisés dizia que encontrara esse Deus cara a cara; que no topo do Monte Sinai ele recebera as tábuas de pedra nas quais, pelos dedos de Deus, os dez mandamentos haviam sido escritos, e que Jeová havia dito quais os sacrifícios e cerimônias que o agradavam e quais as leis que deveriam governar esse povo.

Deste modo a religião judaica e o código de leis foram estabelecidos. Não foi dito que esta religião e esse código de leis se estenderiam a toda a humanidade.

Naquela época esses andarilhos não tinham qualquer relacionamento com outros povos. Não havia linguagem escrita, eles não sabiam ler ou escrever. Não havia meios de trazer essas mensagens a outros povos, de modo que elas ficaram enterradas no linguajar dessas tribos ignorantes, miseráveis e desconhecidas por mais de dois mil anos.

Muitos séculos depois de Moisés, o líder, estar morto, muitos séculos depois que todos os seus seguidores já não mais existissem, o Pentateuco foi escrito, o trabalho de muitos escribas, e para dar força e autoridade, disseram que Moisés fora o autor.

Sabemos hoje que o Pentateuco não foi escrito por Moisés. Cidades são mencionadas que não existiam na época em que Moisés viveu. Dinheiro, cunhado séculos após sua morte, é citado.

Então, muitas regras não se aplicavam a viajantes do deserto - leis sobre agricultura, sobre o sacrifício de bois, ovelhas e bezerro, sobre tecelagem de roupas, sobre colheitas, sobre o preparo de sementes, sobre casas e templos, sobre cidades e refúgios, e sobre muitos outros assuntos que nada diziam respeito a migrantes famintos do deserto e das pedras.

Hoje admitem os Teólogos inteligentes e honestos que Moisés não foi o autor do Pentateuco, mas todos admitem que ninguém sabe quem eram os autores, quem escreveu qual daqueles livros, este ou aquele capítulo e linha. Sabemos que os livros não foram sequer escritos numa mesma geração. Que não foram escritos por uma só pessoa. Que está repleto de erros e contradições. Sabe-se que Josué não escreveu o livro que leva seu nome porque trata de eventos que ocorreram muito tempo após sua morte.

Ninguém conhece ou finge conhecer o autor dos julgamentos; o que sabemos é que foi escrito séculos após os julgamentos deixarem de existir. Ninguém conhece o autor de Ruth, nem o primeiro e segundo de Samuel; o que sabemos é que Samuel não escreveu os livros que levam seu nome. No 25º capítulo do primeiro Samuel é citada a criação de Samuel pela bruxa de Endora.

Ninguém sabe quem foi o autor do primeiro e segundo livro dos Reis ou o primeiro e segundo livro das Crônicas; tudo o que sabemos é que esses livros são de nenhum valor.

Sabemos que os Salmos não foram escritos por David. Nos Salmos a escravidão é citada, e isto não aconteceu até quinhentos anos após David ter ido dormir com seus pais.

Sabemos que Salomão não escreveu os livros dos Provérbios ou as Canções; que Isaías não foi o autor do livro que leva seu nome; que ninguém sabe o autor de Eclesiastes, Jó, Ester, ou qualquer outro livro do Velho Testamento, com exceção de Ezra.

Sabemos que Deus não é mencionado ou de qualquer outra maneira citado no livro de Ester. Sabemos também que o livro é cruel, absurdo e impossível.

Deus não é mencionado no salmo de Salomão, o melhor livro do Velho Testamento. E sabemos que Eclesiastes foi escrito por um não-crente.

Sabemos que os judeus não decidiram qual dos livros eram inspirados – autênticos - até o segundo século depois de Cristo.

Sabemos que a idéia da inspiração teve um crescimento gradual, e que a inspiração havia sido determinada por aqueles que tinham certos fins a atingir.


segunda-feira, agosto 20, 2012
 
AZALÉIAS DE AGOSTO *


Era agosto. Elas se abriam em meu jardim com essa obscenidade com que sempre se abrem as flores, cumprindo sua missão natural de flores. Quanto mais floresciam, mais fenecias. Todos as manhãs eu atravessava aquele festival orgíaco de vermelho, rosa, branco e roxo, rumo ao amarelo ictérico que começava a envelopar tua pele, essa pele que por tantas décadas acarinhei.

"Onde estiver, vou sentir tua falta" - me disseste, com voz que jamais senti tão grave. Querendo afagar-me, suspeitando que pela última vez, te enganavas. Não estarás em parte alguma. Partiste para o grande nada, onde nada existe e ninguém sente falta de ninguém.

Quem vai sentir tua falta, todos os dias até o último deles, é este que fica e que em algum lugar sempre estará. Pelo menos até o dia em que não mais estiver. Quem parte descansa. Sofre quem fica. O que até me consola um pouco. Quem está sofrendo, pelo menos não és tu.

De novo é agosto e elas retomaram seu ritual exibicionista. Paranóicas, escondem-se nas primaveras e agora torturam meus invernos. Não apenas os meus, mas os de tantos outros cujos seres amados escolheram agosto para partir. Certa noite de setembro, eu conversava com jovens já contaminados pela resfeber, enfermidade nórdica que significa febre de viagens. Sedentos de vida, perguntaram a este ser tantas vezes acometido pela doença: qual é a mulher mais linda do mundo? Em que geografias pode ser encontrada?

Caí em prantos. A mulher mais linda do mundo, eu a conheci. E a tive. E agora não mais a tinha. Não a encontrara em distantes longitudes nem em países exóticos. Encontrei-a a meu lado, neste prosaico país, e nunca mais a abandonei. Quis a vida - ou talvez tenha quisto eu - que tivesse centenas de mulheres, algumas muitas queridas, outras nem tanto mas também desejadas, mais uma multidão de rostos mais ou menos anônimos, corpos sempre lembrados. Mentira da vida, mentira minha. Em verdade, tive só uma. Tu, que partiste no auge das azaléias.

"Eu não tenho medo da morte" - me disseste ainda, um pouco antes da passagem rumo ao nada. Mesmo desbotada pelo palor da vida que foge, estavas linda como nunca estiveste. Em tuas quase seis décadas, conservavas ainda aquele eterno rostinho de criança, que a passagem dos anos jamais conseguiu te roubar.

Sedada, já no torpor da morte, chamaste tuas últimas energias, te ergueste no leito. Levantando o dedinho, didática qual professora falando a seus pupilos, sussurraste com o que te restava de voz: "E se fizéssemos assim: eu assino um documento: eu, TKM, em pleno uso de minhas faculdades mentais, declaro que quero ter meus restos cremados no cemitério da Vila Alpina". Reuni minhas forças e consegui balbuciar: não te preocupa, Baixinha adorada, isto há muito está combinado, verme algum sentirá o gosto de tuas carnes. Tuas cinzas, vou jogá-las de alguma ponte em Paris, uma daquelas pontes que tanto amaste, para que saias navegando mares afora.

Passada a mensagem, te reclinaste em paz. Mas descumpri o trato. Não as joguei em Paris. Ficarias muito longe de mim, navegarias talvez por mares gelados e hostis, encalharias em geleiras e te perderias em fiordes, longe de meu calor. Com carinho, te plantei entre os rododendros e todas as manhãs passo entre ti e murmuro: adorada. É bom te cumprimentar. Mas como dói.

A vida nos foi pródiga, e isso é talvez o que mais machuque. Nestes últimos meses, tenho sentido uma secreta inveja de homens que casam com megeras horrendas. Quando elas partem, começa a felicidade. Se morrer feliz é o almejo de todo homem, esta graça não mais está reservada a quem um dia foi feliz. É duro conjugar certos verbos no passado. Dizia Pessoa:

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...


Bobagens de poeta, que tanto influenciaram meus dias de jovem. Verdade que sem ti correrá tudo sem ti. Mas isto vale para as azaléias - seres insensíveis que sequer perceberam a ausência de quem as adorava tanto - e para o resto da humanidade. Para quem perdeu o ser mais lindo da vida, é mero jogo de palavras.

As azaléias em breve irão perdendo seu sorriso orgíaco, suas cores fenecerão e agosto que vem estarão de novo florescendo, despudoradas. Tuas cores feneceram agosto passado e pelo resto de meus agostos não mais te verei florir.

* in memoriam 20 de agosto de 2003