¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, agosto 09, 2012
 
IRACEMA FAZ NOVE PERGUNTAS


De Iracema Pamplona Genecco, jornalista e boa amiga, recebo:

Muito bom teu texto, como usual. Quanto às deficiências do ensino, lamentavelmente concordo. Já com relação à PEC do diploma de jornalismo, discordo particularmente dos seguintes pontos:

1) as mais diversas atividades e profissões são regulamentadas no país. Alguma razão para deixar o jornalismo de fora?


- A razão específica é que jornalismo sempre esteve de fora. Até 69, não se exigia diploma de ninguém no Brasil. E não se cometiam esses descalabros que hoje vemos nos jornais. Os jornalistas eram recrutados entre os que sabiam escrever e não entre diplomados, o que é muito diferente.

2) Ao contrário do que dizes, o jornalismo não será a única profissão a constar da CF. Vide art. 5, parágrafo XIII: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

- Que a lei estabelecer. Não a Constituição.

3) Há dezenas de profissões regulamentadas no Brasil. Entre elas, a de Enólogo (e não é só provocação, Lei 11476/2007; Guardador e Lavador Autônomo de Veículo, Lei 6.242/75; Mãe-Social (o que quer que isto seja, Lei 7.644/87); Repentista (Lei 12.198). Várias delas exigem diploma. Por que o jornalismo não deveria pleitear formação específica?

- A mania de regulamentação de profissões é mais uma excrescência nacional. Até a profissão de ascensorista está regulamentada. A lei os chama de cabineiros. Até flanelinha precisa ter registro no Ministério do Trabalho para trabalhar como guardador ou lavador de carro, como se isso exigisse habilitação especial. Há projetos regulamentando as profissões de astrólogo, filósofo e há até mesmo quem pretenda regulamentar a profissão de escritor. Voltando à questão anterior: se as mais diversas atividades e profissões são regulamentadas no país, por que não seria a de escritor?

4) Pela legislação do país, o registro nas entidades de classe é condição para o exercício das profissões. Cada qual define as atividades, procedimentos éticos e técnicos de sua área de atuação, fiscaliza, propõe melhorias, discute, defende direitos. Por que o jornalismo seria diferente?

- Porque jornalismo é diferente. Se não se exige diploma em todos os países do Ocidente, porque se exigiria no Brasil? Falo do Ocidente, porque desconheço a realidade fora do Ocidente. Não me espantaria que tampouco houvesse exigência de diploma.

5) Cada profissão tem suas exigências quanto à formação, o diploma é uma delas. Para exercer a profissão de advogado no Brasil precisa mais: aprovação num exame da OAB. Porque o jornalismo seria diferente?

- Isso da OAB é coisa de guilda. Mais ainda, o exame tem sido contestado nos tribunais. Pergunto: se o candidato passa no exame da OAB, seria necessário o curso de Direito? Conheço um monte de gente advogando com competência sem o curso de Direito. Mas não podem assinar petições.

Minha mulher passou boa parte de sua vida elaborando pareceres jurídicos, sem jamais ter feito Direito. Uma vez aposentada, passou a trabalhar no Conselho de Contribuintes em Brasília, última instância de julgamento de processos fiscais. Seus pareceres passaram a constituir jurisprudência. Passou também a assessorar uma importante banca de advocacia em São Paulo, na qual coordenava o setor tributário.

Já entrada nos 50, achou que precisava fazer um curso de Direito, para poder assinar petições. Alertei-a: não vais agüentar cinco anos. Ela insistiu em seu propósito e fez vestibular na prestigiosa Mackenzie. Não agüentou três dias. Na primeira aula de Direito Constitucional, um decrépito professor perguntava a seus alunos:
- O direito é uma emanação da so.. da so...?
Ninguém conseguia terminar a frase.
- Da socie... da socie...?
Os alunos, demonstrando invulgar inteligência, responderam em coro:
- Da sociedade!!!
- Muito bem - disse o professor, com um sorriso beatífico. - Ao direito dos costumes, costumamos chamar de Direito con... Direito con...?
Silêncio total.
- Direito consue...? Consue...?
Silêncio ainda mais espesso.
- Consuetu...? Consuetu...?
Nada feito.
- Consuetudi...? Consuetudi...?
Muito menos. O brilhante professor exclamou então com um sorriso sapiente na face, sorriso de quem detém o saber:
- Consuetudináááááário!!!
Foi seu terceiro e último dia de curso. Preferiu continuar elaborando pareceres e dando consultoria sem diploma algum. Como ela, milhares de outros auditores fiscais trabalham com Direito na Receita Federal, embora oriundos de profissões que com Direito nada têm a ver.

6) Dominar o vernáculo e escrever “bem” deveria ser obrigação para qualquer profissão, isso jamais vai tornar alguém um “bom” jornalista. Salas de aulas, mestres, fundamentações teóricas, críticas, ensaios, discussões, leituras, entre outras iniciativas a ser praticadas coletivamente, fazem isso melhor que o corre-corre de uma redação, com pautas, prazos, fechamentos. Por acaso nas redações sobra tempo para leituras? Uma olhada mesmo rápida no que vai pela imprensa internacional? Pesquisa? Debate? Claro que a universidade não é garantia de nada, maus profissionais continuarão existindo e não apenas egressos das faculdades de jornalismo. Mas ali continua sendo o “espaço do saber” com todas suas deficiências. Aproveita quem quer e pode.

- Nas redações sempre sobra tempo para leitura. Em meus dias de jornal, sempre levei um livro comigo para ler nos espaços vagos. Os jornalistas é que não são chegados a ler livros. Em geral, só lêem jornais. Raros são os jornalistas que alimentam uma biblioteca. Mesmo assim, as leituras (isto é, a formação) devem ser feitas antes de se entrar na redação. Como alguém vai escrever sobre economia ou medicina sem nada conhecer de economia? O curso de jornalismo seria até viável (mas não necessário) se fosse um curso de pós-graduação, no qual o candidato ao ofício aperfeiçoaria sua capacidade de comunicação, caso não a possua. Quanto à universidade ser o “espaço do saber”, esta não foi minha experiência. Do que me foi ministrado na Filosofia, fora Platão não sobrou quase nada. Toda a cultura literária e filosófica que me foi útil na vida, eu a adquiri em leituras vadias, bares e conversas com pessoas que liam.

7) No tempo das guildas e das hansas, um aprendiz ficava no mínimo dez anos exercendo um ofício até ser reconhecido. Tudo muda, hoje cada um é livre para exercer a profissão que bem entender. Mesmo para alguém com diploma de médico ou advogado (como citaste), que escolha jogar fora seu diploma para ser jornalista, continua não existindo óbice, desde que busque nova formação específica.

- No caso de jornalismo, se não buscar a formação específica, continua sendo óbice. Eu joguei meus diplomas fora. Mas só pude exercer o jornalismo por ter começado a trabalhar antes de 69. Fui convidado pelo Diário de Notícias porque, além de escrever bem, tinha boa formação filosófica e literária. Porto Alegre teve um comentarista político, o Carlos Fehlberg, que jogou fora seu diploma de médico para ser jornalista. Jamais lhe ocorreu passar por um curso de jornalismo.

8) Vejo como natural essa tendência pela regulamentação, na medidas em que as profissões vão surgindo e se especializando. “Aptidão para o ofício” não cabe nos dias atuais para quase nada, por que achas que continuaria servindo para o jornalismo?

- Não existe aptidão para o ofício a partir do nada. É claro que todo jornalista tem uma formação anterior, ainda que seja autodidata. O que afirmo é que nunca foi necessário passar por cursos de jornalismo para ter tal formação. Diga-se o mesmo dos cursos de Letras ou Filosofia. Ninguém precisa passar por universidade para entender de Letras ou Filosofia.

9) Ah, sustentar que a exigência de diploma de jornalista atenta contra a “liberdade de expressão” faz-me rir. Tu, que já trabalhaste em grandes jornais, diz aí, alguma vez conseguiste “expressar tua opinião”? Como repórter, redator ou editor, óbvio, não sendo colunista. Da experiência que tenho, só quem expressa opinião são os donos dos jornais, rádios, TVs, etc... Mas eles já pertencem a outra categoria.

- Para começar, repórter ou redator não podem opinar. Aí estariam misturando informação com opinião, como aliás muitos fazem. Alguma liberdade de expressão sempre há, ou os jornalistas não estariam denunciando o mensalão e outras falcatruas. Verdade que não pude exercer plenamente essa liberdade nos jornais em que trabalhei, mesmo em artigos assinados. Não me queixo. Jornal é empresa e toda empresa tem seus interesses. Como dizia o Chaeaubriand, se você quer dizer o que pensa, crie o seu jornal. Liberdade de expressão mesmo só surge com a Internet. Neste blog, digo o que penso, sem ser pautado ou censurado.

Diante dos motivos acima elencados, não precisaria salientar, mas o faço: não considero a exigência do diploma apenas uma “questão de corporativismo”, embora este até talvez funcionasse como antídoto contra o poder dos que detém os chamados meios de comunicação, que decidem sobre contratação – e pagamento – dos jornalistas. Eles são os verdadeiros “formadores de opinião”, com todo o direito à livre expressão do pensamento. Para ser vereador, deputado, ministro ou presidente não existe regulamentação. Vê no que dá.

Concluindo: vereadores, deputados, ministros e presidentes deveriam ter noções básicas de Direito. Pelo menos para saber que lei menor não derruba lei maior.