¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, setembro 13, 2012
 
ATEU QUE SE PREZA
NÃO PEDE QUARTEL



"Eu não conheço ateu no leito de morte" – teria dito um cardiologista gaúcho, o dr. Lucchese, em um debate televisivo em Porto Alegre. Dei uma googlada no nome do médico e vi que se trata de autor de best-sellers, com mais de meio milhão de livros vendidos. O que, para mim, já depõe contra o dr. Lucchese. Best-sellers são livros elaborados conforme os baixos instintos do grande público. Mas deixo de lado a fortuna literária do doutor e me atenho à sua afirmação.

Pretende o doutor que, na hora da morte, até ateus passem a crer em Deus. É o que deduzo de sua afirmação. Vou traduzir o crer em Deus por crer em uma vida após a morte. Pois para quem morre, o que interessa não é Deus, e sim a transcendência que sua existência implica. Daí aquele equívoco sobre Dostoievski, mil vezes repetido. Atribue-se a ele a frase: "Se Deus não existe, tudo é permitido".

Ora Dostoievski jamais escreveu isso. Foi Sartre quem lhe atribuiu a frase. O mais próximo que o escritor católico russo escreveu foi a pergunta que Mitia faz para Aliocha, em Os Irmãos Karamazov: “Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito?”

O que está em jogo é, pois, a imortalidade. Não fosse a venda casada deus/vida eterna, os crentes dariam a Deus a mesma importância que a um mendigo. Deduzo que o dr. Lucchese jamais viu um ateu em leito de morte. Porque quando não cremos de fato em Deus, de nada nos adianta fazer qualquer apelo ao que não existe. Mesmo que tal deus existisse, de pouco valeria ao moribundo se não lhe garantisse a salvação eterna. Esse foi o grande achado de Paulo.

Que aliás coincide com Dostoievski. Depois da morte do Cristo, Paulo se jacta: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” O fanático judeu sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé”. Não fosse o golpe de marketing da ressurreição, Cristo seria apenas mais um mártir judeu a sofrer morte infamante nas mãos dos romanos.

Dr. Lucchese, antes de médico, revelou-se um católico fanático. Daqueles que não admitem que alguém possa viver bem – e morrer bem – sem acreditar em deus. Mais ainda, sem esperar nada no Além. Se alguém vive bem e morre sem pedir água, toda a fé do Dr. Lucchesi é vã. Ele precisa justificar sua muleta e então diz uma bobagem dessas. A afirmação nada tem de original. É lugar-comum recorrente de todo papista que quer defender sua fé. Mas que é ressuscitar para Paulo? Em 1 Tessalonicenses, escreve o apóstolo:

“Porque, se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, assim também aos que dormem, Deus, mediante Jesus, os tornará a trazer juntamente com ele. Dizemo-vos, pois, isto pela palavra do Senhor: que nós, os que ficarmos vivos para a vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que já dormem.

“Porque o Senhor mesmo descerá do céu com grande brado, à voz do arcanjo, ao som da trombeta de Deus, e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. “Depois nós, os que ficarmos vivos seremos arrebatados juntamente com eles, nas nuvens, ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor. Portanto, consolai-vos uns aos outros com estas palavras”.

Comentando este trecho da epístola, escreve Bart Ehrman, em Pedro, Paulo e Maria Madalena: Paulo “não ensina que quando a gente morrer a nossa alma vai para o céu, onde se leva uma existência desencarnada por toda a eternidade. Haverá uma futura ressurreição da carne, na qual o corpo físico das pessoas será reconstituído, mas dessa vez para viver para sempre”.

Paulo sequer imaginava – e com isto o Dr. Lucchese há de convir – os futuros avanços da medicina. Dentro desta concepção de ressurreição, a vida eterna seria um eterno conflito. Não faltaria quem reclamasse: ei cara, me devolve esse coração, eu só te doei porque não fui muito bem informado sobre as condições da ressurreição. Você aí, companheiro, poderia me devolver um desses rins? Como doei os dois, preciso de pelo menos um.

Tendo os rins sido doados, ou ficado na terra, como o prepúcio de Cristo, quem não tiver vicariante de estepe estará mal servido no Além. Os transplantes inviabilizaram a idéia de ressurreição segundo Paulo. Vamos à outra hipótese, hoje aceita pela Igreja, a ressurreição da alma. Digamos que, tendo passado a acreditar em Deus in extremis, eu tenha feito jus ao tal de céu. Sobe então até lá minha meiga alminha. Para encontrar o quê? Já comentei em meu último livro, Sobre os Prazeres da Teologia.

Bom, e daí? Seria eu uma consciência pura vagando pelo espaço, uma espécie de fumacinha, zanzando em meio ao nada, conversando com outras fumacinhas?

Reencontraria eu lá os bares que tanto amei? Na hipótese de ir para o paraíso – porque também existe a outra hipótese – estariam lá me esperando o Le Procope, la Petite Périgourdine, o Rélais de l’Ódeon, Aux Charpentier, Bofinger, Tire-Bouchon? El Oriente, Gijón, o Sobrino de Botín, El Espejo, o Venencia, a Cerveceria Alemana? O Sept Portes, Los Caracoles, Mi Burrito y Yo, o Salamanca? A Tasca do Chico, o Berlenga, o Tavares, o João-do-Grão? El Greco ou Florian? Lá tem Leffe, Grimbergen, Guinness, Delirium Tremens? Kirschwasser, akvavit, metaxas, calvados, orujo, queimada? Terá Riojas, Neros d’Avola, Cahors, Malbecs ou Carménères? Camembert, bouillabaisses, foie gras, boudins, andouilletes? Cochinillos, corderos lechales y pata negra?

Nunca ouvi falar de restaurantes, cervejarias ou vinícolas lá no Além. Então não quero. Hemingway dizia que os americanos bons, quando morrem, vão para Paris. Muito melhor. Outra pergunta: reencontrarei meus amigos e minhas amadas nas paragens do Além? Aliás, aqui fica mais uma indagação. Um homem – ou uma mulher – que tenha tido vários parceiros em sua vida, reencontrará todos lá em cima? E como fica? Reinstaura-se a poliandria? Ou um cristão terá de adotar a poligamia muçulmana? Seria muito bom reencontrar minhas amadas. Mas irão para lá também os chatos que procuro evitar na vida terrena? Pois é de supor-se que chatos também tenham direito à vida eterna. Só o que faltava tropeçar nalguma esquina do Além com alguma das figurinhas que não suporto nem ver nos botecos da Paulicéia.

Por outro lado, sem corpo não há prazeres. Não há sexo, não há palato, não há música nem odores. Falar nisso, teria eu óperas ou música erudita? Ou o paraíso já estaria globalizado, contaminado pelo rock? A lembrança de um filme de 1966, Modesty Blaise, me aterroriza. Nele, Dirk Bogarde sofre uma tortura atroz. É amarrado entre estacas no deserto. Com um radinho de pilhas no ouvido, tocando música dos Beatles. Você imaginou isto para toda a eternidade? Prefiro as chamas do inferno, o choro e ranger de dentes. Ou, melhor ainda, o nada.

A afirmação do Dr. Lucchese tem algo de ofensivo. No fundo, ele está afirmando que todo ateu é um covarde, que na hora do vamos ver apela a Deus. Não é bem assim. Isso é coisa de religioso que não acredita – nem admite – que alguém possa viver bem sem esperanças de vida além da morte.

Não, Dr. Lucchese, nós ateus não temos razão alguma para almejar vida eterna. Uma só vida já está de bom tamanho. Nos leitos de suas cirurgias, o dr. terá encontrado simulacros de ateu, que sequer sabem o que seja descrer.

Ateu que se preza não pede quartel.