¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 31, 2012
 
RAÇA INFAME DE ANTROPÓLOGOS *


Se tem algo em minha vida de que não posso falar, é de minha primeira namorada. Pois comecei minha vida afetiva com duas. Uma, foi a que me acompanhou durante quatro décadas e que a vida houve por bem roubar-me há cinco anos. Mas o que importa agora é a outra.

Era um bugra linda guarani, com uma voz um pouco grave que ainda sonho ouvir alguma vez de novo antes do final de meus dias. Índia do Mato Grosso, nada tinha a ver com essas selvagens que andam de tanga nas florestas. Seu pai era guarda aduaneiro e assim ela foi cair em Dom Pedrito. Trabalhava como locutora na Rádio Upacaraí, o que lhe dava uma certa onipresença na cidade. Minha paixão por ela surgiu aos poucos, subrepticiamente. Fui estudar em Santa Maria, depois em Porto Alegre. Até que um dia fui tomado por uma necessidade imperiosa de revê-la e decidi: vou até Dom Pedrito. Vou lá buscar o que é meu.

Nesse meio tempo, eu já havia achado a Baixinha. Mas... que fazer? Era algo mais forte que minha vontade. Resumindo: vivemos dias de muito carinho, durante uns bons dois ou três anos. Ela vivia enrolada em problemas familiares, o que nos fez decidir por dar um fim àquela relação. Em nossa última noite, choramos até o amanhecer. Saí a viajar, troquei de cidades e ela também. De nossa história, resultou minha expulsão da cidade. Com a promessa de ser castrado com brasas, se voltasse. Mais tarde, soube vagamente que casou, terá tido filhos e creio que mantém uma pousada em Santa Catarina. E mais não sei.

Índia, integrou-se perfeitamente à vida urbana. Para isso, teve um dia de sair de sua aldeia, abandonar sua tribo, desfazer-se de seu passado. Tivesse ficado no meio do mato, seria provavelmente uma mulher analfabeta, viveria sendo espancada por um bruto, talvez tivesse tido filhos que ou logo morreriam ou viveriam doentes e mal-nutridos, sem acesso à educação e aos confortos do mundo contemporâneo. Em suma, não teria vivido como gente.

Corto para outra boa amiga de meus dias de Santa Maria. Foi em função dela que fiz meu curso de Direito. Eu vivia em Porto Alegre, ela em Santa Maria. Cursar Direito lá era para mim um pretexto para visitá-la pelo menos seis vezes ao ano. Daí minha rápida passagem pelas ditas Letras Jurídicas. Bom, viajamos, cada um para seu lado. Musicista, ela casou com um alemão e foi viver em Berlim. Hoje vive em Florianópolis. Sem filhos, adotou duas adoráveis bugrinhas caingangues. As indiazinhas vivem hoje em uma casa de sonho, em um ambiente de muito carinho, de muita música e cultura e têm pela frente um mar de rosas. Não é difícil imaginar o que seria delas se não saíssem da tribo.

Por estas razões – e também por outras – é que leio com pasmo a denúncia da Fundação Nacional do Índio (Funai) de que crianças e adolescentes indígenas em Dourados (MS) têm sido retirados das famílias e colocados para adoção sem nenhum critério que respeite suas diferenças culturais. “Índio fora da tribo sofre muito mais, principalmente preconceitos. Tem comportamento diferente dos não-índios, portanto precisa viver com suas raízes, sua gente”, diz a administradora da fundação na cidade, Margarida Nicolletti.

Segundo esta senhora, a procuradoria da Funai já entrou com ação, com base no Estatuto do Índio, para cancelar processos de adoções por famílias não-índias que estejam em andamento ou já concluídos. Quando vítimas de maus tratos de pais ou familiares, as crianças são recolhidas pelo Conselho Tutelar de Dourados e levadas aos quatro abrigos de menores da cidade. Depois de 60 dias, tornam-se responsabilidade da Vara da Infância e Adolescência, que as põe na lista de adoção.

Segundo o juiz Zaloar Murat Martins, “menores de idade são menores, não importa a raça. Qualquer um que esteja sofrendo maus tratos tem que ser assistido. A destituição do vínculo familiar e a seguida adoção são medidas perfeitamente legais. Procuro todos os meios possíveis de evitar esse caminho, mas existem situações que não deixam alternativas.”

O mesmo já não pensa o antropólogo Rubem Thomaz de Almeida. “É um horror” – disse. “Os juízes estão agindo movidos por preconceitos, a partir de estigmas, sem conhecimento da realidade indígena.” Para Almeida, é um erro aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente nas comunidades guaranis, sem respeitar seus traços culturais: “No fundo, o que prevalece nas decisões é o estigma de que todos os índios são coitadinhos e alcoólatras e por isso sua cultura deve ser eliminada".

O que só confirma minha tese de que os antropólogos querem preservar os indígenas em jaulas atemporais, numa espécie de zoológico para contemplação dos homens do futuro. Se você quiser adotar um menino africano, vietnamita ou cambojano, não há problema algum. Mas ai de você se quiser adotar um indiozinho de seu país, que está condenado a uma vida econômica e culturalmente miserável se permanecer em sua aldeia. Você é visto como uma espécie de criminoso, de exterminador de culturas.

Ora, ninguém está pretendendo exterminar culturas indígenas. Culturas que, com o avanço da civilização mato adentro, com a expansão dos meios de comunicação e das escolas, inexoravelmente serão extintas. Como um dia foi extinta a cultura de caldeus e assírios, de guanches e godos, de mujiques e etruscos. Os indígenas brasileiros sequer chegaram a construir um alfabeto. Culturas ágrafas estão condenadas ao desaparecimento. Sem escrita a memória é curta, não há História. Quando um índio aprende a ler e escrever, sua cultura já está morrendo. Quando um indiozinho vai à escola, já está deixando de ser índio. O que os antropólogos querem preservar é uma crosta de rituais e crendices, que só serve para manter os índios presos a um passado paupérrimo e desconfortável.

Ninguém quer matar culturas. Que, aliás, estão condenadas a morrer. O que se quer é salvar uma criança da miséria. Digamos que uma família índia, que tomou consciência de que na aldeia não há futuro, queira entregar seus filhos a casais brancos. Quer entregá-los para dar-lhes educação, melhores condições de vida, enfim, um futuro decente. Não pode. A Funai não deixa. Para a Funai, é melhor que a criança morra por desnutrição ou doenças da pobreza. Que viva chafurdando em meio à incultura e à barbárie. Porque segundo o novo dogma antropológico, índio fora da tribo sofre muito.

Não foi o caso de minha bugra adorada, que se sofreu foi de amores, e este sofrimento tem um arrière-goût dos mais agradáveis. Não é o caso das adoráveis bugrinhas caingangues, que têm um futuro admirável pela frente.

Esta raça infame de antropólogos deveria ser condenada a viver no paleolítico, por crime de lesa-humanidade. Deveriam ser confinados numa aldeia, sem ter acesso nem a água corrente nem a sanitários, nem a geladeiras ou papel higiênico, muito menos a vinho ou champanhe, enfim, desprovidos de todos esses luxos capitalistas da civilização branca.

É muito confortável defender a vida na tribo quando se vive na metrópole. Difícil é viver na aldeia. Este é o quinhão dos bugres.

(*) 11/02/2008

terça-feira, outubro 30, 2012
 
PETISTAS E CAIOVÁS
EM MUITO SE PARECEM



Não ressabiado de ter caído no conto do massacre de ianômamis na Venezuela, em agosto passado, o Estadão resolveu investir no conto dos caiovás. A Folha de São Paulo, pelo menos até hoje, parece estar esperando para ver o que acontece. Ontem, o Estadão titulava:

Ameaçada de despejo, aldeia guarani caiová promete resistir 'até a morte'

Eles são cerca de 170 índios guarani caiová, estão em uma área de 2 hectares de mata ilhada entre um charco e o leito do Rio Hovy, na divisa da Reserva Sassoró com a Fazenda Cambará, propriedade de 700 hectares no município de Iguatemi, no sul de Mato Grosso do Sul. A presença desse grupo de índios na área de mata ocupada por eles há um ano e chamada de Pyelito Kue/Mbarakay - que quer dizer terra dos ancestrais - foi decretada ilegal pela Justiça Federal há um mês e os indígenas condenados a deixar o local. Mas eles se negam a sair e prometem resistir à ordem judicial de despejo.


Neste debate, que inundou as ditas redes sociais há mais de semana, todos tomaram automaticamente o partido dos caiovás, sem se perguntar pelas razões dos fazendeiros ou da Justiça Federal. Até então, não tínhamos “o outro lado”, como se diz em jargão jornalístico. Só hoje, pela primeira vez na imprensa, surge o contraditório. O Estadão, ao pôr entre aspas, pejorativamente, a palavra “história”, já demonstra ter tomado partido na questão.

Advogada apela à 'história' contra caiovás

Os produtores rurais estão em Mato Grosso do Sul há mais de um século e há entendimento no Supremo Tribunal Federal garantindo a eles a propriedade da terra. O argumento é da advogada Luana Ruiz Silva, contratada pelo Sindicato Rural de Tacuru, para processar a Funai no caso da ocupação de áreas de fazendas da região por índios guarani caiovás.

A advogada criticou a atuação de ONGs, da Funai e do Conselho Indigenista Missionário no caso. "Há um sentimento de culpa na sociedade em relação aos índios", disse. "Como há com os negros. Mas há também a história. E os proprietários das fazendas estão na área há mais de um século."


Segundo ela, o Supremo já se posicionou em outro processo a respeito da alegação de a terra ter sido ocupada por indígenas no passado. Pelo argumento do STF, se houve erros no processo de colonização, os atuais proprietários não podem ser punidos com a perda da posse das terras.

A Funai já usou de argumentos duvidosos para criar ou ampliar reservas indígenas. Como a dos embiás, em Santa Catarina, onde seria criado um parque ecológico para beneficiar índios oriundos da Argentina e do Paraguai. Ou a dos tupiniquins, no Espírito Santo, para beneficiar uma etnia dada como extinta no século XIX. Ou a dos pataxós, na Bahia, que pretende anexar um patrimônio histórico tombado, o de Caraíva, o mais antigo vilarejo do país, fundado em 1530.

Ora, a Funai, além de endossar mentiras históricas, é defensora de práticas nazistas de eugenia. Em agosto de 2001, sob pressão do governo, a Câmara esvaziou um projeto de lei que previa levar ao banco dos réus agentes de saúde e da Funai (Fundação Nacional do Índio) considerados "omissos" em casos de infanticídio em aldeias. Segundo o jornal, a prática de enterrar crianças vivas, ou abandoná-las na floresta, persistiria até hoje em cerca de 20 etnias brasileiras. Os bebês são escolhidos para morrer por diversos motivos, desde nascer com deficiência física a ser gêmeo ou filho de mãe solteira.

As práticas de eugenia são consideradas criminosas e geralmente atribuídas aos nazistas. Exceto quando praticadas pelos bugres. A Funai, há alguns anos, divulgou uma nota explicando que esse tipo de ritual faz parte da cultura da etnia ianomâmi. "Gerar um filho defeituoso, que não terá serventia numa aldeia que precisa necessariamente de gente sadia é um grave pecado, pois este não poderá cumprir o seu destino ancestral". Para o antropólogo Ademir Ramos, a eutanásia “é uma questão já resolvida para os ianomâmis. Eles precisam de gente saudável na aldeia. Uma criança com deficiência gera uma série de transtornos aos integrantes da tribo".

Mas a reportagem de ontem do Estadão traz elementos novos, fotos de sorridentes criancinhas caiovás. Quando um jornal começa a publicar fotos de criancinhas, é porque já decidiu quem é vítima e quem é vilão. Se as criancinhas são caiovás, obviamente os fazendeiros são os vilões. O jornal jamais publicaria fotos das criancinhas dos fazendeiros que há mais de século habitam aquelas terras. (Vide antigo artigo meu abaixo).

Em reportagem intitulada “Made in Paraguai”, de 14/05/2007, Veja denunciava as técnicas usadas pela Funai para demarcar territórios indígenas:

Nos últimos vinte anos, a Funai se converteu numa indústria de reservas. O número de áreas demarcadas saltou de 210 para 611. As aberrações na delimitação de terras para índios são corriqueiras. No Espírito Santo, a fundação classificou moradores de Aracruz de tupiniquins, uma etnia extinta há um século. Para tal, desconsiderou um relatório elaborado por funcionários seus em 1982 que apontava sinais de fraude nesse processo. O documento mostrava como os tais tupiniquins foram inventados por um jornalista e por missionários católicos: "Habitantes da região foram pagos para colocar enfeites de pena na cabeça, usar anzóis adornados à moda indígena e afirmar que moravam em aldeias", registra o relatório. Em outro caso grotesco, a Funai tentou decuplicar uma reserva caiabi do Centro-Oeste do país. A Justiça bloqueou a ampliação porque o presidente da Funai, Mércio Gomes, incitou os índios a invadir a região.

Imbuída de um voraz espírito demarcatório, a Funai é leniente com os índios que vivem em reservas antigas. O exemplo mais eloqüente do fracasso da política indigenista está em Mato Grosso do Sul. As reservas dadas aos caiovás e nhandevas do estado são um cenário de horrores. Nelas, 30.000 índios moram confinados em 40.000 hectares. Nas aldeias, imperam a prostituição, o alcoolismo e, sobretudo, a fome. Desde 2005, 47 crianças caiovás morreram de desnutrição. Neste ano, já houve seis casos. A degradação é tamanha que, por ano, registram-se sessenta casos de suicídio nessas comunidades. O último ocorreu na semana passada. O sociólogo Carlos Siqueira, que chefiou o setor de indigenismo da Funai entre 1997 e 1998, não tem dúvida de que a fundação precisa sofrer uma intervenção. "A Funai está sendo regida pelos interesses dos antropólogos e das ONGs, e não pelos dos índios", afirma Siqueira.


Para remendar seu fracasso em Mato Grosso, a Funai agora apóia a invasão de terras cultivadas pelos fazendeiros brancos. Os caiovás, em agressivo desrespeito à Justiça, ameaçam suicidar-se, caso seja executada a reintegração de posse. Claro que não se suicidarão. Mas a ameaça sempre surte efeito, particularmente quando divulgada pela grande imprensa. No Facebook, por exemplo, pessoas que sequer se informaram sobre a questão, tomaram incondicionalmente o partido dos coitadinhos dos caiovás. E o Estadão, que já se prestou ao ridículo de noticiar o “massacre” dos ianomâmis na Venezuela, se presta agora a repercutir esta chantagem feita ao Judiciário.

Caiovás e petistas em muito se parecem. Só acatam decisões judiciais quando estas lhes favorecem. Se não os favorecem, têm o mesmo valor de papel higiênico. Claro que os petistas jamais falarão em suicídio coletivo, pode que a oposição leve a sério. Não por coincidência, líderes caiovás estão aventando recorrer a cortes internacionais caso a fazenda invadida não lhes seja entregue. O PT também já fala em recurso a tribunais no estrangeiro, caso seus mensaleiros arrisquem cumprir as penas às quais foram condenados.

Acabo de ler no portal Terra que a Justiça decidiu hoje que os índios Guarani-Kaiowá podem permanecer na fazenda Cambará. Para a desembargadora Cecília Mello, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, os índios "não poderão ser desapossados das terras que ocupam apenas porque tais terras são objeto de processo administrativo de demarcação, pois apenas a conclusão de todas as fases do procedimento é que poderá ensejar a alteração da respectiva titularidade".

Os índios, no entanto, não poderão ultrapassar o limite de um hectare que ocupam e não devem impedir a circulação de pessoas e bens na fazenda. Eles também não podem ampliar as plantações, praticar a caça dentro dos limites da fazenda ou desmatar áreas verdes. Ora, alguém acredita que os invasores se contentarão com um hectare de terra? Que não impedirão a circulação de pessoas? Depois que a imprensa começa a publicar as fotos das famosas criancinhas, a causa já está ganha para os invasores, não importa o que a Justiça decida.


AS CRIANCINHAS *


Viste as criancinhas? - me pergunta uma amiga ao telefone. Quais criancinhas? - quis saber. Ela perguntava pelas criancinhas do Afeganistão. Antes mesmo de começarem os bombardeios americanos, a imprensa nacional foi invadida por fotos de criancinhas, fotos imensas, até mesmo em quatro colunas, ou fotos menores, repetidas à exaustão. Crianças lindinhas, envoltas em roupas coloridas, com predominância do verde, a cor do Islã. Meninas de rostos angelicais, sempre impúberes, já que se púberes fossem, não mais poderiam mostrá-los.

Sim, eu havia visto as criancinhas. É recurso ao qual os editores apelam mal surge uma guerra. São fotos sem nenhuma relação com fatos. Tiradas antes dos bombardeios, não têm valor algum como notícia, já que com eles nada têm a ver. Sua função é comover. Quando as criancinhas invadem as páginas dos jornais, isto significa que o editor já decidiu quem é a vítima e quem é o agressor. As criancinhas sempre estarão na página das vítimas.

O leitor viu alguma foto das mais de duas mil criancinhas americanas que ficaram órfãos, do dia para a noite, com o atentado ao World Trade Center? Eu não vi nenhuma. Seriam fotos após os fatos bélicos, não antes deles, como é o caso das crianças afegãs. São crianças que ficarão marcadas por um trauma severo, e os psicólogos hoje ainda nem sabem como enfrentar o problema. Mas não servem para comover o leitor. Se nem todas são filhas de ricos, de pobres é que não são. Mesmo sem pai ou mãe, têm futuro assegurado pela frente. Têm um sorriso bonito, dentes saudáveis e, pior ainda, são lourinhas. Pertencem à raça que destrói tudo por onde passa, como dizia Darcy Ribeiro, a raça branca. Decididamente, não servem para vítimas. Pior ainda: são americanas.

A página das criancinhas é preferentemente a página ímpar, embora isto não seja um dogma. Os editores sabem que, por um movimento instintivo, a primeira página que o olhar do leitor procura é a ímpar. Como contraponto, a página par será dedicada ao agressor. Muitos quepes, muitas estrelas nos ombros, e o arsenal: bombardeiros fantásticos, de milhões de dólares, mísseis inteligentes, porta-aviões, fragatas, helicópteros, super-soldados equipados com tralhas eletrônicas, declarações de autoridades engravatadas.

A mensagem subliminar do editor é clara: aquelas criancinhas que você vê à sua direita constituem, em promessa, o capital humano que aqueles monstros à esquerda vão massacrar. O editor não quer que você incorra no risco de pensar errado. Pode acontecer que algum irreverente escreva um artigo mostrando que a realidade não é assim tão simples. O editor insiste então em conduzi-lo pela mão ao que você deve pensar, através de uma diagramação didática. Leia o que bem entender, leitor. Mas que fique claro que as vítimas são aquelas que o editor escolheu para a página das criancinhas. Quanto aos monstros, estão na página oposta.

Se você ainda não captou o espírito da coisa, fixe isto em sua memória: na página das criancinhas, está o Bem. Na dos militares, o Mal. O Bem sempre estará do lado dos pobres. Rico, por definição, é o Mal. Logo, criancinha americana não serve. Não comove. Sem falar que confundiria o leitor. A religião fundada por Mani, na Babilônia, no terceiro século da era cristã, continua sendo uma espécie de manual do jornalismo contemporâneo.

Junto com as criancinhas, as mulheres. De preferência mães, com a criancinha ao colo. No caso do Afeganistão, o leitor não terá visto muitas mulheres. É que as afegãs não têm rosto, a burka iguala a todas. Publicar fotos de mulheres afegãs seria, na verdade, repetir sempre a mesma foto.

O recurso é eterno, e ainda funciona. Já tivemos criancinhas ianomâmis, mulheres ianômamis, anciãs ianomâmis. Filho ou mulher de garimpeiros você não viu. Garimpeiro é o mal, o da página esquerda. Tivemos criancinhas bósnias, mulheres bósnias, anciãs bósnias. Criancinha sérvia, não. Os sérvios são o mal. Mesmo quando massacrados pelo kosovares. O leitor deve também estar farto de criancinha palestina, mãe palestina, anciã palestina. Quantos aos israelitas, nada de criancinhas, mesmo que estas tenham seus pais despedaçados por homens-bomba. Criancinha israelita não passa fome, tem futuro, é saudável, logo não comove. Eventualmente a imprensa deixa passar a foto de uma mãe israelita, consumida pela dor. Se for uma soldada, destaque para ela. É do mal.

Mas atenção: soldado é do mal só quando pertence a um exército regular. O guerrilheiro, em geral, vai para a página do bem. Terroristas também, afinal a ONU até agora não decidiu o que distingue um guerrilheiro de um terrorista. Bin Laden, é claro, exagerou na dose. Seus depoimentos não permitem dissociá-lo do terror. Nem mesmo um Kofi Annan, com sua autoridade de Nobel fresquinho, ousaria ungi-lo com a palavra que, para a grande imprensa, virou sinônima de herói. Guerrilheiro é o Che Guevara, que só não matou mais porque não pôde. Na Bolívia, é cultuado como santo, San Ernesto de la Higuera.

Mas falava de fotos. Enquanto os jornais publicam rostos de criancinhas meigas e desprotegidas, antes mesmo de os bombardeios terem sido desfechados, faltam-nos as fotos das alegadas vítimas civis dos bombardeios. Em meados deste, os taleban convidaram a imprensa estrangeira a entrar no país, em áreas controladas pelas milícias fundamentalistas, para ver a destruição provocada pelos ataques aéreos. De acordo com os taleban, cerca de 200 civis morreram durante um ataque aéreo noturno, no dia 12 de outubro, no povoado de Karam, perto de Jalalabad.

Jornais do mundo todo noticiaram as 200 mortes, mas os jornalistas viram apenas uma dúzia de túmulos novos, além de carcaças de dezenas de animais mortos. E por que não viram os cadáveres? Ah, porque segundo os ditames corânicos, os muçulmanos enterram seus cadáveres antes do próximo pôr do sol. Como não lembrar aquele suposto massacre de ianomâmis de 1993, no qual não se viu um mísero cadáver? E por que não havia cadáveres? Porque os ianomâmis queimam seus mortos e guardam suas cinzas em cumbucas. Pode-se ver as cinzas? Não pode, são sagradas.

Mas, como testemunhou um repórter que esteve em Karam, "o cheiro da morte envolvia o lugarejo". Exatamente as mesmas palavras usadas por um jornalista brasileiro durante o "massacre" dos bugres. Este, só trocou lugarejo por aldeia. Pena que cheiro não dá foto. Foi muita pressa dos taleban em mostrar os feitos do Grande Satã. Pois cadáveres de civis não vão faltar. Como não faltam em nenhuma guerra.

Em falta de mortos, criancinha serve. Fotografa bem e comove muito mais que cadáver.

(*) 26/10/2001

 
HADDAD ACIONARÁ COMPANHEIRO MALUF?


A coisa está ficando divertida. Escreve Monica Bergamo, em sua coluna na FSP:

A primeira saia justa da administração Fernando Haddad (PT-SP) pode ocorrer já no primeiro mês de seu mandato. Em janeiro, ele pode ter que tocar adiante processo para recuperar U$ 22 milhões que teriam sido desviados da administração paulistana para contas ligadas a familiares de Paulo Maluf no exterior.

PARA VALER

O caso corre em Jersey e a prefeitura, que move a ação, aguarda para os próximos dias a sentença final da Justiça da ilha. Caso ela reconheça as acusações e decida pela devolução dos recursos, a equipe de Haddad terá que acionar o STJ (Superior Tribunal de Justiça) para que a sentença seja reconhecida e executada no Brasil.

segunda-feira, outubro 29, 2012
 
SOBRE O SENADOR MONOGLOTA


Do leitor Ramiro Conceição, recebo:

Janer,
seu texto sobre Darcy Ribeiro deixou-me “encafifado” (não sei se existe tal termo, o tenho desde a minha infância). Fiquei obviamente preocupado. Fui à rede, e encontrei diversas introduções biográficas sobre senador. O que me chamou a atenção foi que, em praticamente todas as fontes que consultei, realmente, quando da formação de Ribeiro, não aparece CLARAMENTE a escola de sua graduação superior.

O estranho é que, de fato, nunca aparecem o mentor e/ou mentores associados ao início da carreira científica do antropólogo em questão. Tal constatação é singular!; pois por ser pesquisador, facilmente comprovável via meu curriculum Lattes, sei que começamos sempre a engatinhar sob a orientação de alguém que mui admiramos no específico ramo de conhecimento de nosso interesse inicial: é uma lei da vida, magistralmente, relatada na Divina Comédia, quando Dante dá seus primeiros passos em direção ao Inferno sob a tutela de Virgílio. Infelizmente, no caso de Darcy Ribeiro, não consegui saber quem foi a sua referência fundamental em antropologia.

Em minhas pesquisas, descobri que Darcy foi funcionário de um órgão público que, a posteriori, veio a ser a FUNAI. Aí minhas preocupações aumentaram exponencialmente… Vieram-me à lembrança os Villas-Bôas. Não sou antropólogo, mas engenheiro metalurgista, contudo, em todas as aparições públicas dos sertanistas, sempre ficou evidente uma olência: um hálito oriundo das podres cáries da picaretagem.

Vou tentar ser o MAIS CLARO POSSÍVEL, na tentativa de evitar mal-entendidos. Os Villas-Bôas nunca se expressaram em público, pelo menos no que vi, escutei e analisei, tal qual antropólogos verdadeiros; mas, ao contrário, sempre como meros relatores de fatos pitorescos sobre uma cultura pitoresca que, embora IGNORANTES, tiveram acesso via as mamatas costumeiras - do Estado brasileiro.

Embora seja um autodidata em antropologia brasileira, porém, nunca li, salvo engano, algum texto antropológico, gerado sob uma rigorosa metodologia científica, da autoria dos referidos manos - que, certamente, se aposentaram sobre o colchão macio do erário. Aliás, Orlando, o falastrão, sempre me pareceu um bebedor típico de botequim e, por isso, foi incessantemente entrevistado, por exemplo, pela recém falecida Hebe Camargo, nas noites de domingo, na tela da antiga TV Record, na década de 60, quando eu era simplesmente um menino - sob uma terrível ditadura.

Não entrarei em detalhes - mas o “trabalho científico” dos ditos manos só foi possível sob as esporas do Estado Novo: uma “outra branda” que imperou, entre 1937 e 1945, e que prendeu em seus subterrâneos o nosso ÍNTEGRO Graciliano Ramos: pois seres íntegros são receptáculos da inocência, que poderemos chamar de sagrada (pela simples falta de uma melhor nomenclatura).

Precisamos, urgentemente, lavar a HISTÓRIA DO BRASIL!!

Digo tais coisas porque, já na maturidade, li A Vida Sexual dos Selvagens, de Malinowski; este, sim, um verdadeiro texto antropológico sobre a cultura vigente nas ilhas Trobiand, no final dos anos 20 do século próximo passado. Lá estão documentadas cientificamente todas as questões humanas relevantes: a infância, a adolescência, a maturidade, a sexualidade, a política, a religião, o poder, o amor, o trabalho e a morte. Quando Malinowski se apresenta “chocado” por algum costume observado, imediatamente aparece uma reflexão tentando, dentro do possível, manter uma neutralidade ética e moral, que está sempre associada ao olhar limitado do pesquisador. Tal postura, considero fundamental em qualquer trabalho científico.

Dito isso, e voltando ao seu post: é assustador se efetivamente, na história da República brasileira, houve um Reitor com formação secundária.

Janer, peço-lhe encarecidamente que você demonstre, principalmente por ser jornalista, as fontes oficiais que serviram como substrato às suas afirmações críticas sobre a formação acadêmica do senador Darcy Ribeiro.

Afinal, A História do Povo Brasileiro é uma das obras lidas e relidas em praticamente todos os cursos de Ciências Sociais. Creio que tal demonstração será um serviço inestimável à memória de nosso povo, pois não é mais possível, historicamente, ficarmos aquecendo a “sopa” com o famoso tempero brasileiro que “DIZ E NÃO DIZ”. Não é verdade, Janer?

Ramiro Conceição


Prova negativa não existe, Ramiro. Não há fonte alguma sobre a formação universitária do senador monoglota. Sabe-se apenas que cursou a tal de Escola de Sociologia e Política, de São Paulo, que jamais foi reconhecida pelo Ministério de Educação e Cultura. Enfim, neste país não ter formação universitária não depõe contra ninguém. O que não invalida o fato de que Darcy Ribeiro era um vigarista.

Quanto a lavar a história do Brasil, é bom não esfregar muito. Se esfregar, não sobra nada.

domingo, outubro 28, 2012
 
ESCRITORES QUE NÃO
MERECEM PERDÃO



Via Facebook, me escreve Fernando Felipe Cordeiro Pessoa, em função de meu artigo sobre Graciliano Ramos:

Muito peculiar essa figura. Curioso que integrava, sem a devida consciência disso, o próprio contra-ideal que combatia.

O Brasil era o que era, e a partir da leitura que fazia do seu país, o que restaria esperar? Idealizou a URSS como berço das coisas que acreditava. Obstinou-se em alimentar sua fantasia. Fora disso, só havia a Alagoas real, o Brasil dos oligarcas. Janer fala de Koestler que já denunciava os soviéticos, também havia Kravchenko, Orwell, Victor Serge. Será que Graciliano não lia esses sujeitos? Mas mesmo que os tivesse lido, por que acreditaria nesses ex-comunistas? Por que não seriam esses sujeitos uns vendidos, traidores de um ideal superior? Por que seriam esses os sinceros de todo coração e não toda aquela massa de intelectuais e camaradas, que efusivamente decantavam a Terra Santa?

Uma guerra é feita especialmente de mentiras. Graciliano, como todos de sua época, tinha mentiras a sua escolha para abraçar. Escolheu as sinceras. Não acho que caiba crucificá-lo por isso.


Não tem perdão, meu caro Fernando Felipe. Existem mentiras sinceras? Graciliano viajou em 52. As purgas de 36, os gulags, a ausência de liberdade de expressão, a proibição de sair do bloco soviético, o massacre dos kulaks, o holodomor, eram fatos amplamente conhecidos na época. Em 52, nenhuma pessoa honesta pode afirmar que Stalin é o “estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. Não poderia enganá-lo. Esforçou-se por vencer o explorador, viu-o morto - e seria idiota supor que, alcançada a vitória, desejasse a ressurreição dele. É, desde a juventude, um defensor da classe trabalhadora".

Com a mesma nonchalance que o PT comprou o Congresso em 2003, Stalin comprou os intelectuais do Ocidente nos anos 40 e 50. Ainda há pouco comentei o livro de outro escritor deslumbrado com o stalinismo, que viajou a Moscou (e a Pequim) praticamente na mesma época que Graciliano. Falo do gaúcho Josué Guimarães, que não é de duvidar que estivesse no mesmo pacote de escritores comprado pelo Paizinho dos Povos. Em As Muralhas de Jericó, escrito em junho daquele ano e só publicado em 2001, doze anos após a queda do muro de Berlim e dez anos após o desmoronamento da União Soviética, o autor louva a União Soviética de Stalin como um exemplo para as nações e para o futuro. Escreve Josué:

Este livro tem a pretensão de derrubar as muralhas que separam, praticamente, o Ocidente do Oriente, fazendo deste mundo um só. Para tanto faltam engenho e arte. Porém, se não tiver a força e a magia das trombetas do Profeta, se não for capaz de destruir as muralhas simbólicas que hoje têm o nome de Cortina de Ferro, que pelo menos sirva para tirar desse muro de indiferença uma única pedra. Só isto justificaria a veleidade de publicá-lo. Pois a fresta assim aberta daria para que duas mãos se apertassem, fraternalmente, iniciando uma era de compreensão e vontade, únicos sentimentos que ainda poderão devolver a Paz aos homens.

No fundo, Josué quer absolver Stalin dos crimes tremendos de que, já na época, era acusado. Em Moscou tudo é lindo.

O nível cultural do povo soviético talvez seja hoje um dos mais elevados do mundo. Tive grande preocupação em observar este aspecto. (...) Uma tarde, a delegação brasileira, ao deixar o Hotel Nacional, teve a atenção de todos despertada para uma aglomeração à porta de uma livraria que nós havíamos visto várias vezes. Homens e mulheres disputavam a primazia na porta e muitos outros saíam de lá de dentro empunhando um livro qualquer. Fomos nos informar do que havia. E o espanto foi tanto, para nós, brasileiros, que ninguém comentou o sucedido depois, ruminando lá as suas incompreensões e engolindo seco seu espanto. Tratava-se, simplesmente, de mais uma edição de um livro sobre filosofia, disputado de tal maneira que me lembrou episódio igual, numa banca de São Paulo, no dia em que saiu uma edição nova da revista Grande Hotel, uma cretiníssima coleção de histórias de amores mal correspondidos de mistura com a vida secreta de Hollywood e conselhos sobre a melhor maneira de encontrar um marido.

E seriam intelectuais os que tanto esforço faziam para comprar um pesado livro sobre filosofia? A resposta é negativa e verdadeira. Talvez seja difícil para nossa mentalidade compreender o interesse do operário de uma fábrica qualquer por um assunto sério, de cultura. Ou o desejo da moça que dirige um trem elétrico subterrâneo – naquele esplêndido Metrô de Moscou – em comprar um livro que trata de problemas transcendentais, fora das coisas diárias ou das estórias de casamentos frustrados. Mas para eles isso é uma coisa natural e não representa nenhum esnobismo ou atitude.


Nenhuma palavrinha sobre as prisões de intelectuais e dissidentes, que há muito vinham sendo enviados para os gulags. Este é o tom sempre baboso do livro. Tudo é grandioso, eficaz, inteligente, tudo é esperança no futuro e no homem novo, nas observações de Josué. Nenhuma palavrinha sobre a sufocação da literatura por Zdanov. Nenhuma menção ao desastre na agricultura provocado por Lyssenko.

Da mesma forma Graciliano, que era mais velho que Josué, esteve no mesmo período em Moscou, vivia nos mesmos anos em que Kravchenko denunciava os gulags e parece nada ter visto de criminoso no regime de Stalin.

Não por acaso, apenas dois anos após a viagem do escritor alagoano, um outro turista célebre louvava as virtudes do stalinismo. Declarações de Jean Paul Sartre ao jornal parisiense Libération, em 1954:

"A liberdade de crítica é total na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o cidadão soviético melhora sem cessar sua condição no seio de uma sociedade em progressão contínua. Exceto alguns, os russos não têm muita vontade de sair do país... não têm muita vontade de viajar neste momento. Têm outra coisa a fazer em casa". "Lá por 1960, antes de 1965, se a França continua estagnada, o nível médio de vida na URSS será de 30 a 40% superior ao nosso. Qualquer que seja o caminho que a França deve seguir para sair de seu imobilismo, para recuperar ser atraso industrial, para se constituir como nação diferente da de hoje, ele não pode ser contrário ao da União Soviética."

Graciliano sabia também de outras coisas. Que louvar Stalin significava ser publicado na URSS e, conseqüentemente, na Europa. E que criticar Stalin significaria sua morte literária no Brasil. No mesmo ano, viajou a Moscou - talvez até no mesmo grupo - o jornalista gaúcho Orlando Loureiro, que desmitificou o regime soviético em seu livro À Sombra do Kremlin. Teve uma única edição e o autor foi ostracizado.

Na mesma viagem de Graciliano, andava também em Moscou Jorge Amado - esse “ruidoso camelô do marxismo”, como o definiu Loureiro – que também fez carreira louvando Stalin, vide o baboso O Mundo da Paz. Aderir ao marxismo e a seus tiranos, na época, era aposta certa no sucesso literário.

E continuou sendo por muito tempo. Por exemplo, José Saramago, o prêmio Nobel português de Literatura. Durante toda sua vida, apoiou as tiranias comunistas. Só foi romper com Cuba em 2003, quando 75 dissidentes foram presos e três pessoas foram executadas em um julgamento sumário. Castro vinha executando opositores desde 1959, e Saramago rompeu com o tirano só 44 anos depois. Em uma carta, escreveu: "De agora em diante Cuba segue seu caminho, eu fico aqui. Cuba perdeu minha confiança e fraudou minhas ilusões".

Ou ainda mais recentemente esta outra prostituta arrependida, o Ferreira Gullar – José Ribamar de pia -, que recém em agosto deste ano descobria o horror do socialismo. Gullar filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro no dia 1º de abril de 1964, 28 anos após a denúncia das primeiras purgas de Stalin em 1936, quinze anos após a denúncia dos gulags por Viktor Kravchenko em Paris, em 1949, nove anos após a denúncia dos crimes de Stalin por Nikita Kruschev, em 1956, no XX Congresso do PCUS. Doze anos após as louvações de Graciliano a Stalin. Isto é, o maranhense aderiu ao partido quando a nenhum cidadão honesto era mais permissível ignorar os crimes do regime soviético.

Em 1971, partiu para o exílio e foi acolhido de braços abertos por Moscou, a nova Jerusalém das esquerdas. Mas logo preferiu viver no bom mundo capitalista, passando a residir em Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires.

O Ribamar atroz precisou de quase meio século para render-se à evidência histórica. Tempo mais que suficiente para a prostituta maranhense construir uma carreira literária, abiscoitar aqueles prêmios que a burritsia nacional reserva para os fiéis cultores do obscurantismo e pretender-se inclusive nobelizável. Para quem vive em torre de marfim, seguido ocorre a tentação da mosca azul. Recém em fevereiro deste ano, Gullar ousou criticar a Disneylândia das esquerdas:

Nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem permissão. É com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez – a 19ª – o governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país.

A dificuldade advém da relação afetiva e ideológica que me prende à Revolução Cubana, desde sua origem em 1959. Para todos nós, então jovens e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande transformação social da América Latina. Essa certeza incendiava nossa imaginação e nos impelia ao trabalho revolucionário.

Nos primeiros dias de novo regime, muitos foram fuzilados no célebre “paredón”, em Havana. Não nos perguntamos se eram inocentes, se haviam sido submetidos a um processo justo, com direito de defesa. Para nós, a justiça revolucionária não podia ser questionada: se os condenara, eles eram culpados.

E nossas certezas ganharam ainda maior consistência, em face das medidas que favoreciam aos mais pobres, dando-lhes enfim o direito a estudar, a se alimentar e a ter atendimento médico de qualidade. É verdade que muitos haviam fugido para Miami, mas era certamente gente reacionária, em geral cheia da grana, que não gozaria mais dos mesmos privilégios na nova Cuba revolucionária.


Gullar precisou de mais de meio século – 53 anos – para descobrir que um país comandado por 47 anos pelo mesmo homem era uma ditadura. Longo é o caminho de um bolchevique até o entendimento.

Graciliano morreu um ano após sua viagem – no mesmo em que morreu seu ídolo, Stalin. Morreu três anos antes das denúncias de Kruschev no xx Congresso do PCUS. Tivesse morrido depois, talvez renegasse à sua fé. Mesmo assim, seria uma descoberta tardia. Teve em vida todos os elementos para saber que Stalin era um tirano responsável pela morte de milhões, e mesmo assim foi reverenciar o “menino”, em seu berço em Gori.

Essa gente não merece perdão. Graciliano muito menos.

 
SOBRE JOAQUIM BARBOSA *


Enquanto o governo decidia o que fazer, os comentários pipocaram no próprio Supremo. A ministra Ellen Gracie, a única mulher da corte, no intervalo entre uma sessão e outra, mostrou-se preocupada. "Vai vir para cá um espancador de mulher?", perguntou ao colega Carlos Velloso. "Foi uma separação traumática", conciliou Velloso. "Mas existe alguma separação que não é traumática?", interveio o ministro Gilmar Mendes. Para desanuviar o ambiente, o ministro Nelson Jobim saiu-se com uma brincadeira machista, a pretexto de justificar a agressão: "A mulher era dele". O governo preocupou-se à toa. Indagado sobre o episódio pelo ministro da Justiça, Barbosa Gomes explicou que fora um desentendimento árduo, mas superado. Dias depois, Barbosa Gomes encaminhou ao Gabinete Civil da Presidência da República uma carta, assinada pela ex-mulher, reafirmando que tudo fora superado. Mais que isso, na carta Marileuza abonou o ex-marido – que não voltou a se casar e hoje mora com o filho do casal. "Na verdade, houve uma agressão mútua. Isso aconteceu num dia de ânimos acirrados. Somos amigos até hoje", disse Marileuza a VEJA. "Foi uma briga de família provocada por ressentimentos naturais numa separação", explicou Barbosa Gomes à revista. Com isso, o governo completou a trinca do Supremo sem temor. Agora, falta apenas o Senado aprovar o nome dos três candidatos.

* Veja, 14 de maio de 2003

sábado, outubro 27, 2012
 
GRACILIANO STALINISTA


(Comemora-se hoje o 120º aniversário do nascimento de Graciliano Ramos. Como nenhum jornal lembrará o passado stalinista do escritor, me permito reavivar a memória dos leitores. Este artigo foi publicado na revista Travessia nº 6, do Curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, em 1983).


Graciliano Ramos, escritor e militante do Partido, não escaparia ao novo dogma e um dia irá prestar culto ao deus vivo.

Já em São Bernardo, Graciliano lança o germe de uma idéia insólita na época, pelo menos no Brasil, o socialismo. Paulo Honório, o prepotente dono da terra, saído do nada, à custa de astúcia e mesmo crime, irá confrontar-se com as idéias novas de Padilha, o semi-bacharel de quem tomou a fazenda. Ao casar-se com Madalena, terá em seu leito uma inimiga. Madalena é urbanidade, cultura, civilização, por oposição à rude incultura de Paulo Honório. Há ainda padre Silvestre, que sem ser ateu e materialista, pretende salvar o país por processos violentos. Em 1934, com sua intuição, Graciliano já define as duas religiões européias, ciumentas, em luta pela América Latina.

“Padres! exclamou Luís Padilha com desprezo.
“Era ateu e transformista. Depois que eu o havia desembaraçado da fazenda, manifestava idéias sanguinárias e pregava, cochichando, o extermínio dos burgueses”.

Padre Silvestre, por sua vez, se opõe ferozmente às novas idéias:
“ - Essas doutrinas exóticas não se adaptam entre nós. O comunismo é a miséria, a desorganização da sociedade, a fome”.

Logo adiante:
“- Uma nação sem Deus! Bradava padre Silvestre a d. Glória. Fuzilaram os padres, não escapou um. E os soldados, bêbados, espatifavam os santos e dançavam em cima dos altares”.

Na época, não perceberam ainda, cristãos e marxistas, que pertencem a uma mesma religião, pequenas nuanças à parte. O que importa não são os dogmas de superfície de um sistema de pensamento, mas a corrente subterrânea que o nutre. Duas são as inovações básicas do cristianismo, por oposição ao paganismo greco-romano: a idéia de que todos os homens são iguais perante Deus (ridícula para gregos e romanos) e a de que a História tem um sentido, a Parusia. O marxismo - e aqui voltamos à intuição de Dostoievski em O Idiota - reafirma a igualdade de todos os homens, abstraindo o “perante Deus”, e também a idéia de que a História tem um sentido, só que desta vez não é mais a Parusia, mas o Estado Comunista.

A posição de Paulo Honório não é a de quem possa discutir ideais humanitários. Ao julgar Madalena materialista, conclui:

“A verdade é que não me preocupo muito com o outro mundo. Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça. Tenho portanto um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível.”

“Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil. ‘Palestras amenas e variadas’. Que haveria nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. Sei lá! Mulher sem religião é capaz de tudo”.

Logo adiante:
“Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena e comecei a sentir ciúmes”.

Paulo Honório fica quatro meses sem pagar o ordenado a Padilha, agora seu empregado. E ainda faz piada:
“- Tenha paciência. Logo você se desforra. Você é um apóstolo. Continue a escrever os contozinhos sobre o proletário”.

Quando Padilha chora, pedindo emprego no fisco, Paulo Honório é cru:
“- Impossível, Padilha. Espere o soviete. Você se colocará com facilidade na guarda vermelha. Quando isso acontecer, não se lembre de mim não, Padilha, seja camarada”.

Madalena provoca em Paulo um duplo ciúme. De um lado é a mulher que se lhe foge - e sua fuga se consumará no suicídio. Por outro lado, com suas idéias, Madalena lhe quer também tomar a condição de terratenente. Se Madalena morre, a idéia de revolução persiste. Paulo Honório, que a considerava parte de seu patrimônio, é um homem que fracassa.

Estamos, na ficção militante de Graciliano, face a um mundo em transformação. As vítimas são seres cultos e civilizados, Madalena e Padilha. O carrasco é o ser bárbaro, que inclusive admite sua bárbarie. As vítimas são socialistas, comunistas. Paulo Honório, o boçal, opõe-se às idéias novas professadas pelas vítimas. Qual partido resta ao leitor tomar?

Graciliano, como tantos outros, não menos ilustres, caiu na arapuca. É militante do partido desde 1945 e, em 1952 - duas décadas após as denúncias de Gide, oito anos após O Zero e o Infinito, de Koestler, e do debate de Albert Camus com d’Astier de la Vigerie - nosso escritor vai adorar o deus encarnado. Adoração não tão derramada, como a do apologético O Mundo da Paz, de Amado. Mas ainda adoração.

A primeira frase da carta enviada de Moscou, datada de 1º de maio de 1952, diz tudo e dispensaria mais comentários:
“Clarita, Luísa, Ricardo: cá estamos na Terra Santa”.

O seco Graciliano, de repente, vira místico desbordado. Em Moscou, encontrará Jorge Amado, já Prêmio Stalin. Tudo é festa e deslumbramento.

“Tenho bebido vodca, ido várias vezes ao Kremlin, à Praça Vermelha, visto a Catedral de São Basílio e o túmulo de Lênin. Ontem visitei a VOKS: doces, frutas, vinho, arranjo do programa, discurso do Presidente, um professor de cabeça pelada. À noite, Romeu e Julieta no teatro Bolshoi, com Ulanowa no papel de Julieta. Havia talvez mais de duzentas figuras. Nunca imaginei coisa semelhante. Hoje, a festa para que fomos convidados. O desfile começou às dez horas e deve ter-se prolongado até sete da noite. Deixamos o Kremlin às três horas. Víamos, de longe, com dificuldade, a cabeça de Stalin. Furor de aplausos na multidão”.

Graciliano apanha então binóculos para melhor ver seu deus:

“Subi à última plataforma exterior do Kremlin, fui andando para a esquerda, cheguei a poucos metros do túmulo de Lênin, no momento em que Stalin ia subindo a escada. Aproximei-o com o binóculo. Está velho, gordo e curvo. Nessa altura um tipo se avizinhou e quis tomar-me o binóculo. Fingi não entendê-lo. ‘Sou estrangeiro, não compreendo o russo’. Stalin passou. Recuei dez metros, quis examinar os figurões que estavam ali a pequena distância; outro guarda, falando e gesticulando, deu-me a entender que era proibido usar binóculos. Ignoro o motivo desta proibição”.

Antes de passarmos à entusiástica transcrição deste episódio em Viagem, cabe determo-nos alguns segundos em uma frase de sua carta:

“Enquanto as organizações operárias desfilavam, Kaluguin perguntou-me quais os meus livros que deveriam ser traduzidos em russo. Talvez nenhum, respondi. E expliquei minha divergência com o pessoal daí”.

As divergências de Graciliano se referem ao zdanovismo. O alagoano se recusava a submeter-se às normas do realismo socialista, tentação à qual não resistiu Amado. Importante sublinhar nesta frase de Graciliano a proposta da edição de livros.

Afirmar que a fortuna internacional de escritores como Graciliano e Amado deve-se mais às suas relações com o Partido do que a seus talentos é enunciar o óbvio. Mas trata-se de um óbvio sacrílego, pois implica afirmar que tais escritores utilizaram o partido como agência publicitária, ou que o Partido os utilizou como agentes publicitários.

De qualquer forma, fica claro na carta de Graciliano que as traduções são decorrência da viagem, e ninguém recebe mordomias gratuitamente. O sucesso de Amado na Europa, por exemplo, decorre de suas primeiras traduções em russo. Da URSS, Amado passa à extinta RDA, de onde Meyer-Clason, seu tradutor, o puxa para a Alemanha Ocidental. Só depois sua literatura chegará a Paris e demais países europeus. Em Viagem, Graciliano volta ao tema e concluí que seus livros em nada interessariam àqueles homens.

“São narrativas de um mundo morto, as minhas personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali patente, alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava-me da minha gente fusca, triste, e achava-me um anacronismo. Essa idéia, que iria assaltar-me com freqüência, não me dava tristeza. Necessário conformar-me: não me havia sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em sepulturas, ocupara-me em relatar cadáveres”.

Ignoraria Graciliano os milhões de cadáveres que o stalinismo já havia amontoado? Muita tinta já rolara no Ocidente em torno às purgas, deportações e campos de concentração. Mas crente que se preza não quer ver. Ao crente, basta crer.

Uma ligeira dúvida perpassa o espírito de Graciliano e seus companheiros ao verem a cidade cheia de retratos de Stalin, “a demonstração de solidariedade irrestrita não impressionava bem o exterior”. Mas a senhora Nikolskaya, a guia, julga tal observação leviana e absurda, para consolo dos crentes:

“Nenhum russo admitia que as coisas se passassem de outra maneira. Essa réplica, isenta de motivos era, no meu juízo, superior a um longo discurso esteado em razões. Estávamos diante de um fato, e condená-lo à pressa, ao cabo de alguns passeios na rua, parecia-me ingenuidade. Com certeza ele era necessário, e devíamos, antes de arriscar opinião, investigar-lhe a causa. Realmente não compreendemos, homens do Ocidente, o apoio incondicional ao dirigente político; seria ridículo tributarmos veneração a um presidente de república na América do Sul. Não temos em geral nenhum respeito a esses indivíduos”.

Para o escritor alagoano, Stalin é o “estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. Não poderia enganá-lo. Esforçou-se por vencer o explorador, viu-o morto - e seria idiota supor que, alcançada a vitória, desejasse a ressurreição dele. É, desde a juventude, um defensor da classe trabalhadora. Esta expressão, razoável há trinta e cinco anos, tornou-se desarrazoada, pois aqui já não existem classes”.

Graciliano está há poucos dias em Moscou, não fala o russo, tem roteiros rígidos de passeios e visitas, e já afirma peremptoriamente que não mais existe na Rússia uma sociedade de classes. Vista de nossos dias, sua afirmação é de uma ingenuidade atroz. Independentemente desta distância crítica, nada permite a um homem que pensa, fazer tais ilações generalizantes a partir de tão parca experiência do povo soviético. Sem falar que Graciliano nada entendia da língua russa.

O seco criador de Paulo Honório, inimigo de adjetivações supérfluas, passa a cultivar os adjetivos:

“Não admitimos nenhum culto a pessoas vivas, perfeitamente: a carne é falível, corruptível, inadequada à fabricação de estátuas. Mas não se trata de nenhum culto, suponho: esse tremendo condutor de povos não está imóvel, de nenhum modo se resigna à condição de estátua. Homens embotados, afeitos à corrupção e à fraude, percebemos isto: a massa tem confiança absoluta nele e manifesta a confiança impondo-lhe a obrigação de admitir as ruidosas aclamações e os retratos. (...) Agradecimentos e louvores palpitam na alma da multidão, e recusá-los seria uma ofensa, um erro que nenhum político bisonho cometeria”.

Stalin, modesto dirigente, é coagido a aceitar a religiosa adoração das massas agradecidas. E Graciliano, que sequer pode olhar para Stalin com binóculos, chega à conclusão que “este tremendo condutor de povos” não é o monstro que o Ocidente imagina:

“Deixavam-me passar. E deixavam-me subir a escadaria, galgar as insignificantes barreiras de meio metro, avizinhar-me do homem que a burguesia odeia com razão. Stalin não vive numa toca, defendida por metralhadoras e canhões”.


VELHO GRAÇA VÊ O MENINO

O homem que, em rápido turismo por Moscou, afirma não mais existir a sociedade de classes na União Soviética, mais adiante nos alerta para o perigo das generalizações. É quando passeia pelos jardins do Kremlin, em meio a “cinzas preciosas”. Lá estão as de John Reed, americano, portanto inimigo, pelo menos em princípio. Mas Reed escreveu a grande reportagem da Revolução. Logo, “esse nome nos enche de sentimentos bons. Perigoso entregar-nos a generalizações feitas à pressa. Nem toda a gente na América deseja aniquilar a humanidade com bombas atômicas e bactérias. Não vamos responsabilizar duzentos milhões de indivíduos, oito milhões e meio de quilômetros quadrados, porque um oficial de instinto ruim tentou furtar uma estatueta amarela no Hotel Savoy”.

Ao visitar o Kremlin, o espírito de Graciliano é tomado por sensações místicas (os itálicos são nossos):

“...pisamos o núcleo de Moscou, a cidadela venerável exposta de longe ao mundo com júbilo ou furor, conforme as circunstâncias. Sim senhores. Estamos dentro dela - e as pedras santas das muralhas não caíram em cima de nós para esmagar-nos, estorvar a profanação”.
“É verdade: miseráveis sapatos americanos, brasileiros, pezunham na terra sagrada por diversas razões. Estamos no Kremlin”.

Ante a guia que lhe narra a história do castelo, Graciliano sente-se “aluno chinfrim, seguro o lápis e o caderno, abro os olhos e os ouvidos, quero aprender”.

“Andamos noutros refúgios de religião, transformados em museus, vemos riquezas semelhantes às do primeiro, ouvimos datas, noções peregrinas, toda uma santa arqueologia que a revolução guardou com zelo piedoso".

Sala de São Jorge: “o Deus dele não podia equiparar-se ao Deus existente na Catedral de S. Basílio, fora do Kremlin”.

Iríamos muito longe se enumerássemos as evocações religiosas suscitadas em Graciliano por sua visita ao Kremlin. Passemos então à visita do escritor ao berço em que nasceu o novo Deus, a cidade de Gori: “o monumento a que nos referimos é apenas uma casa miúda, de tijolos nus, sem reboco”.

Nos dois quartos que perfazem apenas dois metros, morava o velho Djugatchivili, sapateiro. Joseph nasce em 1879 e destinava-se à profissão religiosa, já que o ofício de sapateiro rendia pouco. Troque-se o sapateiro por marceneiro, a cabana por manjedoura, coloque-se uma nova no firmamento, adicione-se mais três magos, e essa história já conhecemos. Olhando o ambiente, inconscientemente, o Velho Graça - como era chamado por seus amigos - chega a trair-se: “Onde estava a cama do menino?”

Perseguir em Viagem este preito stalinista até o fim, tornar-se-ia monótono. Passemos a uma consideração final do autor:

“Meses depois, no meu país, homens sagazes e verbosos censurar-me-iam a ignorância a respeito da União Soviética. Tinham-me os guias exibido coisas necessárias à propaganda e eu, ingênuo, acreditara nelas. Indispensável aceitar verdades ocultas abaixo das aparências brilhantes. E, sem nunca ter ido à URSS, explicar-me-iam, generosos, horrores medonhos, trabalhos forçados, enxovias horríveis, fuzilamentos diários. Seria preciso admitir que as moças do Teatro Paliachivili e a menina do Instituto Marx-Engels estavam nesses lugares para enganar-me. Os transeuntes eram impostores, a serviço da polícia. As fábricas, as escolas, os palácios de pioneiros, tudo logro. Venenos do socialismo”.

Por ironia, esta irônica hipótese de Graciliano é a que acaba se configurando como a realidade da época stalinista. No XX Congresso, três anos após a morte do escritor e de seu deus, Kruschev abre as cortinas do grande teatro e revela a face do mais operoso assassino do século. Como pode Graciliano ter-se deixado embarcar em tal canoa?

Wilson Martins, ao analisar suas contradições, em O Modernismo, parece tê-lo entendido:

“Uma análise pormenorizada dessas contradições não poderia ignorar um tema que, por enquanto, deixo de lado: esse individualista e esse clássico tornou-se militante do Partido Comunista, no qual via, bem entendido, apenas os aspectos idealísticos e programáticos. O seu livro de turismo à União Soviética é, nesse particular, extremamente revelador: não me parece temerário supor que a realidade comunista, uma vez instalada no Brasil, causar-lhe-ia a mesma repugnância que a realidade republicana (no sentido radicalista da palavra). Viagem é, do começo ao fim, um livro de evasão: não de evasão do Brasil, mas de evasão da própria viagem que o escritor realizava.

Não será preciso grande acuidade psicológica para perceber que Graciliano Ramos esforça-se subconscientemente, não apenas para aceitar o que lhe contam e o que lhe mostram, mas para sufocar qualquer veleidade de espírito crítico ou de curiosidade inoportuna. Tocando a Terra Prometida, ele eliminou, por um processo muito simples de sublimação psicológica, qualquer contato com o mundo imediato e com ele próprio: Graciliano Ramos não via a URSS da geografia, da política ou da sociologia, viu a URSS tal como ela se configura no mito mental que os comunistas do mundo inteiro e nomeadamente os do Brasil elaboraram pouco a pouco em anos e anos de diáspora imaginária”.

Não é difícil entender este movimento psicológico. Imaginemos um escritor de talento, isolado em um obscuro rincão de qualquer país, em nosso caso, o Brasil. Seu talento não é reconhecido em nível merecido e sua recompensa é o cárcere. Um belo dia,é convidado pelos dirigentes de uma prestigiosa revolução a visitar o paraíso terrestre. Neste éden ignoto, onde é recebido com tapetes vermelhos, mal chega já lhe perguntam quais de seus livros devem ser traduzidos na sociedade ideal. A qual escritor não comoveria tal convite?

Em Viagem, vemos quão amargas são as marcas deixadas pelo Brasil em Graciliano. De que jeito vivem em sua terra? - pergunta-lhe uma advogada. O alagoano não se furta a explicar:

“Caí num monólogo triste, falando interiormente às deliciosas vizinhas erguidas no fim da platéia. Isso mesmo. Entalam-nos o crânio, somos coagidos a não pensar direito: as nossas idéias se esfarelam, espalham-se em torno de pequenas misérias. E nem só os pensamentos se reduzem. Os corpos também se aniquilam, nas prisões e fora delas. Uma prensa invisível nos comprime. O ar em nossa terra é denso, pesado; às vezes necessitamos esforço para respirar. E até isso nos roubam, estragando-nos os pulmões: ao sair da cadeia, estamos tuberculosos. Como vivemos? Propriamente não vivemos: aquilo não é vida. Quando entramos na Colônia Correcional, dizem-nos - “Não vêm corrigir-se. Vêm morrer. E ninguém tem direitos. Nenhum direito”. Espanta-nos a franqueza. Numa existência de animais, ficamos semanas em jejum completo. Descerram-se enfim as grades, vemos o Sol. Não realizaram, pois a ameaça? Não nos mataram? Em parte, realizaram: estamos na verdade quase mortos. Ganhamos cabelos brancos e rugas. Assim tão fracos, tão velhos, não conseguiremos trabalhar. Arrasaram-nos”.

Segunda ironia na viagem do Velho Graça: tentando descrever o Brasil a partir de sua experiência pessoal, na verdade descreve a sociedade dos gulags, da qual é hóspede privilegiado.

Tão intensa é sua vontade de crer, que vê como grande avanço do socialismo a aniquilação das diferenças individuais. Em Moscou, pergunta à sua guia se uma transeunte próxima seria empregada em oficina ou repartição pública. A senhora Nikolskaya, moscovita, não consegue satisfazer-lhe a curiosidade: “É impossível saber. Não achamos distinção”. O viajante cede então ao utópico sonho de Lênin, o da sociedade em que o pedreiro seria também engenheiro:

“Um ofício não é superior a outro - e os homens tendem a uniformizar-se. Essa idéia choca o nosso individualismo pequeno-burguês: achamos vantagens nas discrepâncias, receamos tornar-nos rebanho. E nem vemos que somos um rebanho heterogêneo, medíocre, dócil ao proprietário. Queremos guardar o privilégio imbecil de não nos assemelhar-nos ao vizinho. Enfraquecendo-nos, julgamo-nos fortes. Realmente, somos bestas”.

O gesto é de contrição.

Antes de regressar ao Brasil, nas proximidades do aeroporto de Moscou, o escritor tira o chapéu à horrenda arquitetura que nos legou Brasília. Vê casas e, intimamente, propõe a destruição delas:

“Há na vizinhança do aérodromo casinholas de madeira, lastimosas, lôbregas, a cair de velhice. Não exibem realmente a miséria das nossas favelas, mas tristes, feias, abrigam enorme desconforto. Vestígios de outras épocas, impressionam mal o visitante. Próxima se eleva a universidade, imensa, e isto aumenta a penúria dos infelizes pardieiros. Conveniente destruí-los, pensei, evitar-nos a visão molesta. O prejuízo não seria grande: os habitantes das minguadas velharias, pouco numerosos, achariam sem esforço asilo noutros lugares, e os estrangeiros de maus instintos, resolvidos a torcer o nariz ao socialismo, perderiam num instante aparências de razões badaladas com rigor lá fora: os indivíduos aqui não têm onde morar: na cidade enorme, sete milhões de criaturas se alojam a custo, várias famílias arrumando-se num quarto miúdo. Estupidez, é claro. Mas por que não suprimir a causa da estupidez?”

O cauteloso escritor que se recusa a escrever sobre um mosteiro em Sukhumi, cidade balneária, porque “não me aventuro a expor conhecimentos arranjados à pressa, numa carreira de oitenta quilômetros por hora”, mal passa alguns dias em uma cidade de sete milhões de habitantes, com passeios orientados a palácios e museus, sente-se à vontade para escrever que é estupidez afirmar que os sete milhões de moscovitas habitam mal. Haja fé.

A senhora Nikolskaya, com ar de forte desprezo, o esclarece:
“- Estão aí as belezas do individualismo”.

O ensejo de Graciliano Ramos cumpriu-se. As belezas do individualismo não mais existem em Moscou. Todo moscovita, Nomenklatura à parte, vivia em blocos cinzas de concreto, e o problema habitacional persistia ainda nos dias de regime marxista, a ponto de jovens combinarem casamentos brancos com o fim exclusivo de obter do Estado alguns parcos metros quadrados. E o que é pior: a desoladora arquitetura staliniana acabou sendo transplantada para o Planalto Central brasileiro e, salvo terremoto ou bomba atômica, ali restará séculos afora.

Ao final da viagem, em Gagra, vilarejo às margens do Mar Negro, os anfitriões mais vez cobram o escritor. Uma professora lhe pergunta se não vai escrever um livro sobre a União Soviética.
“Não sei, minha senhora. Acho que não. Faltam-me observações, demoro pouco”.

Na despedida, na Geórgia, Leonidze, presidente da União dos Escritores - a quem o convidado oficial da VOKS (Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros) dedica um capítulo, indignado com a imprecisão de seus informes - afirma que a viagem renderá a ele, Graciliano, um livro.
“- Muito difícil. Ignorância completa”.

Mas renderia, ainda que póstumo. E o criterioso Graciliano, que recusava dobrar-se aos ditames de Zdanov, acaba escrevendo uma obra-prima de realismo socialista. Enquanto suas ficções não são ficções, mas a realidade do homem nordestino, seu relato de viagem não é real, mas ficção pura, e das mais infelizes.

Sobrevivesse Graciliano ao XX Congresso, qual seria sua atitude? Ignoramos. Era, sem dúvida alguma, um homem íntegro. Mas a necessidade de crer em algo é mais forte, no homem, do que sua coerência.


sexta-feira, outubro 26, 2012
 
COMO UM VIGARISTA
CONSTRÓI SEU PEDESTAL *



O ano de 1997 viu desmoronar no Brasil um dos mitos mais frágeis criado pela intelligentsia brasileira. Ou talvez fosse melhor falarmos de burritzia. O mito em questão é o senador monoglota Darcy Ribeiro, que construiu toda sua vida e carreira sobre mentiras. Morreu em fevereiro deste ano e deixou um lixo póstumo, Mestiço é que é bom (Editora Revan, Rio, 97).

Antes de entrarmos nas falcatruas do senador, leiamos algumas pérolas de seu pensamento. Neste livro, Darcy é entrevistado pelos mais ilustres comunossauros tupiniquins, como Antonio Callado, Antonio Houaiss, Eric Nepomuceno, Ferreira Gullar, Oscar Niemeyer, Zelito Viana e Zuenir Ventura. A relação destes nomes é importante. Não fosse o testemunho destes seus amigos, seria difícil de acreditar nos parágrafos seguintes.


O terror das virgens

Uma das revelações surpreendentes de sua obra póstuma é o prazer cultivado pelo ilustre humanista de Minas Gerais em espancar mulheres. Oscar Niemeyer, um dos mais sólidos bastiões do stalinismo no Brasil, levanta a bola e Darcy chuta em gol:

OSCAR NIEMEYER - Teve uma história que você me contou uma vez que era mais complicada, que jogaram você numa estrada de ferro.

DARCY - Foi em Paris, na primeira vez que eu fui a Paris, em 54. Lá, encontrei uma coisa incrível, uma menina, de família turca, libanesa, de Rio Claro, em São Paulo. Ela tinha ganho, aos dezoito anos, o prêmio de língua francesa, era estudante. Eu cheguei lá, vindo da Suíça, tinha passado um mês na Suíça, trabalhando. Quando cheguei em Paris, por acaso encontrei com a menina, gostei da companhia, fiquei andando com ela.

Ela estava com uma vergonha enorme de ser virgem - a francesa é muito mais cuidadosa da virgindade que a brasileira, a francesa de família burguesa - mas ela, vivendo na Rive Gauche, lá ela estava com vergonha de ser virgem, porque os meninos namoravam e queriam trepar. Eu também quis trepar e ela não trepou. Eu já estava enjoado dela e ela me procurando como um carrapato, agarrada em mim, mas não me dava. Ia na minha pensão e não me dava. Pensão daquele tempo, em Paris! Essa menina estava com muita vergonha de ser virgem, mas com muito medo.

Então, fiquei passeando com ela em Paris. Num certo momento, nós fomos pegar o último metrô, tínhamos que pegar ou andaríamos quarteirões. Fomos para o metrô, estávamos na beira do metrô, esperando, e ela sabia que, quando chegássemos, ela ia ser comida, porque senão eu quebrava a cara dela. Logo depois eu iria embora, então era o dia dela ser comida, ela estava muito nervosa. Então, a filha da puta, num certo momento, me jogou na linha do metrô, lá embaixo. Aquele negócio é eletrificado, eu podia ter morrido! Eu fiquei querendo levantar, apoiado com a mão na beirada da plataforma, e ela pisando na minha mão. Eu fiquei com uma raiva danada e dei uma surra nela.

HOUAISS - Você conseguiu se levantar e sair de lá?

DARCY - Consegui levantar - hoje, não conseguiria -, ela pisando na minha mão. Dei uma surra nela, rapaz! Ela ficou quietinha, chorou muito e depois me deu. Por isso é que eu estava, agora, faz pouco, andando com minha chefe de gabinete, que é uma mulher muito bonita, e com o marido dela na feira de Montes Claros e eu cheguei e disse para uma daquelas feirantes - muitas delas me conhecem:
- Como vai?
Ela perguntou:
- Quem é essa, é sua mulher?
- Não, trabalha comigo e não me dá.
- Bate nela que ela dá.


O Don Juan da aldeia

Não satisfeito em proclamar seus dotes de espancador emérito, o senador passa a gabar-se de suas aventuras sexuais como etnólogo, quando faturava algumas “índias decadentes”. Quem levanta a bola, desta vez, é o também finado Antônio Callado:

CALLADO - Darcy, a primeira vez que eu fui ver os índios, em 50 ou 51, já estava muito estabelecido que índia não se comia, para não bagunçar muito o coreto, era mais ou menos tradicional, para não começarem a comer as índias todas. Tanto é assim que, quando eu estive lá, o Leonardo Villas-Boas já estava na Fundação Brasil Central, sendo forçado a deixar o Serviço de Proteção ao Índio porque ele tinha comido uma índia, com quem se casou. Quando é que você chegou lá pela primeira vez? Nessa época já tinha essa lei?

DARCY - É verdade. Eu comecei com os índios em 46. Essa lei existe até hoje, por causa do Rondon e da antropologia clássica. Eu fui educado para não trepar com índia porque, para o antropólogo, no meu caso específico, pesquisas longas eram difíceis. Hoje em dia é que as moças começaram a dar para os índios, as antropólogas dão para os índios, gostam de transar com eles, para fazer intimidades. Tão dando mesmo, dão para eles também. Coitado, índio também é gente. Então, dão. E como elas dão, os homens também começaram a comer as índias, antropólogos de primeira geração. (...) Eu passei meses com os índios, arranjava um jeito de ter uma. Por exemplo, eu não comia as índias Urubus-Kaapor porque eu estava trabalhando com os Kaapor, mas comia índia Tembé, que eram umas índias decadentes que havia lá.


Teologia barata e anti-semitismo

Vejamos esta brilhante interpretação do Gênesis proposta pelo senador:

DARCY - Aliás, eu preciso contar para vocês uma coisa muito interessante que eu desenvolvi ultimamente, meio literária mas muito bonita. E uma história sobre Eva, eu estive meditando sobre Eva e descobri que Eva é trotskista. É a primeira revolucionária da história. Nós devemos coisas fundamentais a Eva.
Primeiro, Eva fundou a foda. Adão era um bestão, estava lá, com aquele penduricalho dele e não sabia o que fazer. Eva disse:
- Vem cá Adãozinho.
Ele pôs dentro dela e foi aquele gozo, ele teve o orgasmo e, quando deu aquele gozo, o anjão desceu e disse:
- Deus não gosta, Deus está puto com vocês, fora!
E os pôs para fora do Paraíso. O Paraíso era uma merda, não era de matéria plástica porque não existia matéria plástica, era de papel crepom. Porque a flor é o órgão genital das plantas, fode, não poderia ter no paraíso flor fodendo. Era de papel crepom. Quando o anjão pôs eles para fora, obrigou o seguinte:
- Vamos fazer o comunismo, vamos fazer o Paraíso lá fora.
Eva também foi fazer o comunismo.

E já que falamos de temas bíblicos, cabe dar uma olhadela na concepção que tem Darcy Ribeiro dos judeus:

DARCY - Os judeus são tão filhos da puta que, de vez em quando, colocam na menina o nome de Lilith. Lilith é a Eva pecaminosa, a que dá a bocetinha ambulante, fogosa.


Racismo anti-branco

Admitamos que estas confissões sejam produto de muito álcool na cuca. O que aliás as torna mais graves: in vino, veritas. Mas é de supor-se que o senador monoglota não estaria bêbado quando escreveu na Folha de São Paulo: "A expansão do homem branco foi a maior catástrofe da história humana”.

Fosse esta afirmação feita por um analfabeto qualquer, sem maiores noções de história ou geografia, a frase passaria como mais uma das tantas bobagens reproduzidas diariamente pela mídia. Ocorre que ela foi proferida por um senador da República, cujo pensamento, profissão, vida e carreira - apesar de seu monoglotismo e carência de cultura universitária - foram nutridos pela Europa. Partindo de quem parte, tal bobagem merece algumas considerações.

Que os brancos europeus mataram, tanto em seu continente como nos que conquistaram, ninguém em sã consciência vai negar. Mas também mataram os chineses, os mongóis, os turcos, os árabes, os japoneses. Também negros e índios mataram e continuam matando. Em se tratando de seres humanos, a única afirmação abrangente que podemos fazer, sem incorrer em falácia, é que os homens verdes, como também os azuis, jamais mataram seus semelhantes. Pelo singelo fato de que não existem homens verdes nem azuis.

O primeiro homem a criar embriões de universidade mundo a fora - e isso 300 anos antes de Cristo - saiu matando e conquistando, a patas de cavalo, desde a Macedônia até a Ásia. Não fosse Alexandre, o diálogo entre Oriente e Ocidente se atrasaria por séculos. Houve tempos em que a cultura seguia a espada e estes tempos não estão muito distantes de nós. O conquistador europeu abafou o neolítico de Pindorama? Que bom! Não fosse isso, Darcy Ribeiro não teria acesso à bomba de cobalto que, nos anos 70, lhe deu longa sobrevida.


Virando o cocho

O branco europeu matou e destruiu, como matam e destróem todos os homens, exceto os homens verdes e azuis. Mas também descobriu a penicilina e a fissão nuclear, foi à Lua, já está pensando em Marte e seus olhos eletrônicos já se aproximam de Plutão. Nos deu Mozart e Vivaldi, a ópera e o cinema, as comunicações e o computador. O próprio cristianismo, apesar de sua fúria assassina medieval, nos legou uma estética que não pode ser jogada na famosa lata de lixo da história. Não há termos de comparação entre a Notre Dame e um terreiro de umbanda. Nem se pode confundir uma oca de bugres com a torre Eiffel. Muito menos o cacique caiapó Paiakan com Casanova.

Rechaçar a expansão do branco, ou seja, a cultura européia, é negar Sócrates e Platão, Cervantes e Shakespeare, Dante e da Vinci, Schliemann e Champolion, Fernão de Magalhães e Armstrong, Pasteur e Einstein. Sem falar em Hegel e Marx, que no fundo embasam a "Weltanschaaung" de Darcy Ribeiro. Se aceitamos sua ótica fundamentalista, que as telas de Van Gogh ou Bosch sejam largadas aos papeleiros, para reciclagem industrial. Os grandes acervos dos museus poderiam servir para construir diques na Holanda. Que sejam fechados o Louvre e o Hermitage, queimadas as bibliotecas, hemerotecas e filmotecas, e proibidos os computadores e as antenas parabólicas, como aliás já está ocorrendo no mundo islâmico. A primeira providência dos fanáticos talebans, ao entrar em Cabul, no Afeganistão, foi destruir os aparelhos de televisão.

A tecnologia branca transportou Darcy Ribeiro com seus jatos aos países onde degustou “o amargo caviar do exílio”. Na hora de escolher refúgio, optou por países de cultura branca, a cultura que, ao expandir-se, segundo sua acusação, foi a maior catástrofe da história. Já perto da morte, Darcy decidiu virar o cocho em que se nutriu.

Hierático, gozando da absolvição que a morte confere, morreu em aura de santidade. Nem por isso podem ser perdoadas as infâmias que proferiu postumamente, graças ao esforço editorial de seus “compagnons de route”. Tantas besteiras proferidas por um intelectual de renome internacional têm uma explicação: Darcy foi toda sua vida um embuste.


O escroc acadêmico

Além de gabar-se de ser monoglota, exibia como titulação universitária um diploma da Escola de Sociologia e Política, de São Paulo, curso que jamais foi reconhecido pelo Ministério de Educação e Cultura. Em seu currículo enviado ao Senado, espertamente se intitulou etnólogo, ofício que, como o de antropólogo, prostituta ou psicanalista, ainda não foi regulamentado no Brasil. Gozou de três aposentadorias federais, uma delas pela Universidade de Brasília, com a qual jamais teve vínculo de emprego. Sua carreira é a de um escroc acadêmico.

Não bastasse isto, dizia ter fundado a Universidade de Brasília. Não fundou. Nem nela lecionou, embora tenha por ela se aposentado. Segundo o Dr. José Carlos de Almeida Azevedo, ex-reitor da UnB, Darcy nela jamais teve um só aluno e foi “reintegrado” para “aposentar-se”, sem jamais ter vínculo de emprego com a universidade, já que era “requisitado”. A propósito, cito artigo do ex-reitor, publicado em 24/06/96 na Folha de São Paulo:

“Servidor do antigo SPI, hoje Funai, e da UFRJ, Darcy apareceu na comissão convocada pelo então ministro da Educação, Clovis Salgado, para cumprir determinação de JK, no sentido de “...fundar Universidade Brasília... em moldes rigorosamente modernos...”. Na comissão, presidida por Pedro Calmon, Darcy era o único que jamais havia concluído, ou iniciado, um curso superior, mas foi Reitor da UnB e ministro da Educação, poucos meses em cada lugar, sem deixar qualquer vestígio do que fez”.

A citação será longa, mas pertinente. Continua Azevedo:

“No final de 1968, cinco anos depois que Darcy deixou a reitoria, os esgotos da UnB eram a céu aberto; não havia galeria de águas pluviais, e tudo inundava; porque só havia uns mil metros de asfalto, era um lamaçal; havia uns cinco telefones, um computador de 6k nunca usado; uma só quadra de esportes, simples chão cimentado e dita “polivalente”; nenhum curso reconhecido havia, além de Direito e Economia. Toda a administração era na “munheca”, nada mecanizado. Em uns seis barracos de madeira, amontoavam-se o restaurante, o alojamento estudantil, algumas unidades de ensino e os serviços gerais. À beira do lago, outros três barracos, malocas de índios e sebastianistas. Era ver para crer. Os alunos, uns 2.000, amontoavam-se em três prédios de dois andares, com uns 2.000 m² cada um, com a pequena biblioteca e laboratórios. (...) Nem as escrituras do imóveis tinha e, por isso, perdeu uma centena de terrenos comerciais e um enorme prédio”.

Concluí o ex-reitor:

“Ao autoproclamar-se fundador e criador da UnB, beneficiando-se disso ad perpetuam, o Darcy usurpa méritos exclusivos de Juscelino Kubitschek, de seu ministro Clovis Salgado e de Anísio Teixeira, comprovados em relatório oficial do MEC e em depoimento do ministro. O primeiro mandou criar a universidade, compreendendo sua importância; o segundo criou todas as condições, e Anísio a organizou. (...) A construção, institucionalização e consolidação da UnB devem-se aos reitores Caio Benjamin Dias, Amadeu Cury e, em escala menor, a este modesto escriba, que a ela serviram, a convite exclusivo do Conselho da Fundação UnB”.

O senador monoglota dizia ainda ter fundado a Universidade Nacional de Costa Rica. Tampouco a fundou. Aliás, nem existe tal universidade. Conforme nos informa o professor Augostinus Staub, “existe, sim, a Universidade Nacional, na cidade de Herédia, criada em 1970, pelo presbítero Benjamin Nuñez Gutierrez, e não por Darcy Ribeiro”.

Gabava-se de ter um diploma de Dr. Honoris Causa pela Sorbonne. Pura fraude intelectual. O Honoris Causa, Darcy o recebeu em 1978, quando não mais existia a Sorbonne. O diploma foi conferido pela Universidade de Paris VII e entregue em uma sala do prédio da antiga Sorbonne, o que é muito diferente. Sem falar que diploma Honoris Causa só serve para enfeitar cartão de visita e não confere nenhuma capacitação acadêmica a seu portador.


Rumo à lata de lixo

Darcy sabia muito bem que, neste país sem maiores critérios de avaliação da inteligência, enganar é o recurso mais ao alcance do homem inculto para subir na vida. Mentindo sempre, foi guindado a um ministério e ao Senado. Uma vez no poder, do alto de seu cursinho secundário, o senador monoglota condenou, em uma só frase, a cultura na qual nasceu e mamou.

Ao tentar fugir da morte espiritual, Ribeiro não optou pelo tantã ou pelo relato oral sob a sombra de um baobá, mas por gráficas modernas montadas pelo branco que tanto abomina. Tentando fugir da morte física, reação instintiva de todo ser humano, o antropólogo não recorreu a pajelanças, mas a hospitais de primeira linha. Quando Jesus estava chamando, não buscou salvação junto a xamãs. Preferiu pedir água a representantes da cultura que o gerou e, depois, virando o cocho, passou a abominar.

A maior catástrofe da história humana, "a expansão do homem branco", gerou este país que gerou Darcy Ribeiro, temperou este caldo cultural no qual o senador, com suas manhas de mineiro, fez sua carreira e prestígio. Antes de morrer, organizou uma fundação, para que seu “pensamento” não morresse. Grafômano contumaz, tem obra tão vasta que já nem sabe quantos livros escreveu nem em quantos idiomas está traduzido. Graças a quem? A um europeu chamado Gutenberg.

É moda entre antropólogos, sociólogos, psicólogos e outros óologos, negar sistematicamente os valores da cultura ocidental, ou seja, da cultura branca, cujas bases estão na Grécia e em Roma, em favor de culturas primitivas, que muitas vezes nem chegaram a um alfabeto e, se lá chegaram, hoje vivem encharcadas no sangue de guerras tribais. Mais que moda, esta tendência é uma verdadeira conspiração dos derrotados da História, que assestam seu ressentimento surdo contra o que de melhor a humanidade produziu.

Em vida, o senador Darcy Ribeiro chutou neste imenso time de ressentidos. Morto, virou estátua. Por mais monumentos e salas com seu nome que lhe outorguem seus amigos e compagnons de route, sua trajetória é a de um escroc acadêmico. Quando a burritzia tupiniquim receber notícias de que o Muro de Berlim já caiu, Darcy assumirá seu merecido espaço, a famosa lata de lixo da história.

(*) Minha homenagem aos 90 anos do senador monoglota. Este artigo foi publicado em outubro de 1997. Versão para anglófonos: http://www.brazzil.com/pages/p24oct97.htm

quinta-feira, outubro 25, 2012
 
A VIÚVA QUE VIU
O CONGRESSO NU



- Considera-se que pelo menos uma centena de deputados foram comprados. É um punhado considerável de prostitutas, capaz de virar qualquer votação. Pergunta que nenhum jornal ainda fez: voto comprado vale? Venalidade pode criar legislação? Pode derrubar cláusulas pétreas e extinguir direitos adquiridos? Se cassados estes deputados, não seria o caso de cassar também seus votos passados?

Isto eu me perguntava em julho de 2005, após a compra por atacado de parlamentares pelo PT, para empurrar à nação toda a reforma da Previdência, ainda que para isso fosse necessário rasgar a Constituição. Abaixo, segue crônica de agosto de 2004, onde eu manifestava meu espanto ante a nonchalance com que se rasga uma Constituição no Brasil. A Carta Magna foi rasgada, rasgada ficou e mais não se falou no assunto.

Que me lembre, ninguém cogitou destas questões na época. Hoje, passados sete anos, as perguntas começam a surgir na imprensa. Segundo a Veja, o ministro Celso de Mello “tem mencionado durante o julgamento um tema que permeia discussões reservadas entre os integrantes do tribunal: a validade de projetos aprovados pelo Congresso Nacional em votações que a Justiça ratificou terem sido feitas mediante pagamentos a parlamentares”.

Segundo o ministro, o caso deve ser enfrentado pelo Supremo na esteira do julgamento do mensalão. Ele compara a validade das reformas aprovadas, como a da Previdência Social, à legalidade de sentenças proferidas por juízes que tenham recebido propina. “É o mesmo que ocorre com um juiz corrupto, no qual suas sentenças podem ser anuladas mesmo que estejam em trânsito julgado”, disse.

Por nove anos, a nação conviveu serenamente com a decisão inconstitucional de um Congresso comprado a peso de ouro pelo governo. Nenhum dos ditos defensores dos direitos humanos, ou simplesmente do Estado de direito, impetrou ação de inconstitucionalidade. A nenhum aposentado ou pensionista ocorreu denunciar a Emenda 41 como inepta. Foi como se comprar deputados para aprovar leis de interesse do governo fosse a coisa mais normal do mundo.

De repente, não mais que de repente, nove anos depois, ministros do mesmo tribunal que validou a compra de votos descobrem – ó perspicácia! – que o Congresso foi comprado. Mas estes mesmos ministros que declararam comprovada a compra de votos, notadamente na Reforma Previdenciária, já afirmaram cautelosamente, em alto e bom som, que isto não implica a anulação da reforma da previdência, pois já surtiu efeitos.

O que é uma grossa bobagem. Pois se o STF tem poderes para fazer os mensaleiros devolverem o que roubaram da nação, o STF tem também poderes para fazer o Estado devolver o que roubou dos aposentados e pensionistas.

Ainda há pouco me fiz uma outra pergunta: e se alguma velhota prejudicada com a tunga de sua aposentadoria entrar com uma ação, alegando que voto comprado não pode gerar lei? Não deu outra. Uma viúva do interior de Minas exige receber o valor integral da pensão que o marido recebia quando estava vivo, de R$ 4.801. O valor atualmente pago pelo Instituto de Previdência dos Servidores de Minas Gerais (Ipsemg) à mulher foi reduzido para R$ 2.575,71 com a entrada em vigor da Emenda 41, em 2003. É o que leio no Estadão.

O juiz mineiro Geraldo Claret de Arantes deu ganho de causa à viúva. Em entrevista ao jornal, disse que o próprio STF já havia afirmado que a Emenda 41 foi aprovada "sob influência da compra de votos", e que o relator Joaquim Barbosa faz "relação clara da votação com a entrega de dinheiro. Esta reforma está maculada definitivamente pela compra de votos, não representou a vontade popular. Ela padece do vício do decoro parlamentar", reitera o juiz.

Que se disse surpreso com a repercussão de sua decisão, que considera taxativamente de inconstitucional, a Reforma da Previdência. "Essa reforma foi a mais violenta de todas na expropriação de direitos. Ela viola a cláusula pétrea da Constituição do direito adquirido. A pensão não é uma benesse, é o ressarcimento do que o cidadão pagou a vida inteira. Não pode o governo chegar no meio do jogo e mudar a regra, dizendo que ele vai receber a metade".

O lago secou e descobrimos que sua superfície escondia monstruosidades óbvias. Pelo jeito, nenhum juiz, durante quase uma década, percebeu que a reforma proposta pelo governo – e aprovada pelo Congresso – era inconstitucional.

O juiz Claret cita Maquiavel para condenar o argumento oficial de que a Previdência está falida: "Esse é um argumento da Idade Média. Quer dizer que, quando o interesse do príncipe for maior que o interesse do povo, prevalece o interesse do príncipe? Então querem tomar R$ 2 mil da viúva lá do interior para salvar a sétima economia do mundo?". E recorre a Padre Vieira para dizer que está com a consciência tranquila de que tomou a decisão certa. "O pior dos pecados é a omissão".

A decisão do juiz mineiro põe em xeque o STF. E acusa todo o Judiciário que, de 2003 para cá, conviveu serenamente com um ordenamento jurídico inconstitucional.

Ainda segundo o Estadão, para o presidente da OAB-MG, Luis Cláudio Chaves, a tese do juiz tem fundamento e pode abrir precedente para mais ações nesse sentido. "O fundamento dele é interessante, amparado numa compra de votos que influenciou a vontade parlamentar. Se ficar provado que o processo legislativo sofreu uma influência por conta da compra de voto de parlamentares, ele pode ser considerado nulo", disse Chaves.

Provado já está, ou os mensaleiros não seriam condenados, como estão sendo. A viúva mineira viu a nudez do Congresso. E teve a ventura de encontrar um juiz que não é míope. Quando esta sentença chegar ao Supremo, qual será a atitude dos ministros? Continuarão afirmando que isto não implica a anulação da reforma da previdência, pois já surtiu efeitos?

Se assim for, está legitimada a compra do Congresso e não se entende por que estão sendo julgados Zé Dirceu, Genoíno, Delúbio, Marcos Valério et caterva. Se assim for, estes ilustres vultos da pátria são realmente vítimas da imprensa golpista e do ressentimento de um ministro que, além de negro, é mal-agradecido.



NÃO SEI SE VOCÊ NOTOU... *


Quando uma corte de suprema instância, obedecendo à fúria fiscal do Executivo, derruba de uma só tacada duas das três instituições fundamentais de uma democracia, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, consagradas na Constituição, em democracia não mais vivemos. Se a Constituição pode ser conspurcada por sete ministros, nada impede que seja de novo violada. Caldo cultural para tanto já existe.

Ano passado, um repórter do Estadão falava sobre “direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada e outros chavões”. Quando um jornal que se pretende liberal não demite quem escreve tais despautérios, o clima está maduro para qualquer regime totalitário. Segundo a Folha de São Paulo desta sexta-feira última, o governo avalia que a decisão do STF de autorizar a cobrança previdenciária dos servidores públicos inativos é um marco que acaba com o “mito da cláusula pétrea do direito adquirido”.

De minha ciência, nunca no Brasil foi cometido tamanho absurdo jurídico. Os atos institucionais dos militares se sobrepuseram à Constituição, mas nunca alguém pretendeu que o regime pós-64 fosse uma democracia. A Constituição de 88 criou essa figura exótica das cláusulas pétreas, intocáveis como as deidades do Olimpo. Só poderiam ser anuladas por outra Constituinte. Agora não precisa mais Constituinte. “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, dizia o art. 5º, inciso XXXVI, da Carta de 88. Dizia e ainda diz. Bastaram sete cortesãos nomeados pelo Executivo para fazer desta garantia letra morta.

Os jornais batem na tecla do direito adquirido. A ofensa foi um pouco mais grave. O que foi realmente ferido, como observava um jurista, foi o ato jurídico perfeito da aposentadoria, do qual nasce, secundariamente, o direito adquirido do inativo. Se a decisão de quarta-feira foi um marco que acaba com o mito da cláusula pétrea do direito adquirido – como afirmou uma fonte presidencial – o caminho está agora aberto para acabar com outros mitos estúpidos, tipo propriedade privada, direito à herança, décimo terceiro salário, férias remuneradas e chavões outros. Por marco se entende sempre um início. Com seu pronunciamento, o governo nos dá sinais evidentes de que muito em breve outros mitos serão derrubados.

O próximo já está anunciado. Dia 15 de julho passado, discretamente foi promulgada a Lei n° 10.910. Em seu art. 4°, cria a Gratificação de Incremento da Fiscalização e da Arrecadação – GIFA – devida aos ocupantes dos cargos efetivos das carreiras de Auditoria da Receita Federal, Auditoria-Fiscal da Previdência Social e Auditoria-Fiscal do Trabalho, no percentual de até 45%, incidente sobre o maior vencimento básico de cada cargo das carreiras. Mais adiante, no art. 10, § 1º, determina: “Às aposentadorias e às pensões que vierem a ocorrer antes de transcorrido o período a que se refere à parte final do caput deste artigo aplica-se a GIFA no percentual de 30% sobre o valor máximo a que o servidor faria jus se estivesse em atividade”.

Como quem não quer nada, de uma penada o legislador derruba mais um desses incômodos mitos, no caso a paridade entre ativos e inativos. Como inativo não tem poder de barganha, que decida: ou morra logo com as condições que o salário lhe permite, ou morra mais adiante, em uma velhice infamante. E que surjam as Adins, manifestações de classe, apelos ao Congresso ou mesmo ao bispo. Como para derrubar mitos bastam seis senhores que se arrogam funções de constituintes, o governo não terá maiores dificuldades para enfiar de novo a mão no bolso da velharada. Além disso, os “heróis retroativos” pós-64, já que não conseguiram destruir o país, de alguma fonte precisam retirar suas gordas pensões de vultos da Pátria, isentas de imposto de renda, diga-se de passagem.

Um dia antes da famigerada decisão do STF, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, durante audiência com o presidente da Costa Rica, Abel Pacheco, que está aprendendo a arte de permanecer muitos anos no poder. "Eu fui agora a uma viagem ao Gabão aprender como é que um presidente da República consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição", disse Lula, ao citar a viagem que fez recentemente à África. Ora, a fórmula não tem mistérios. Basta criar um partido único, ou mesmo permitir a existência de outros, sempre fraudando as eleições.

Recomendável manter o povo sempre na miséria, para que suas preocupações não sejam maiores do que as do que comer amanhã. Quanto à imprensa, calar qualquer voz de oposição. Em verdade, não precisava ir tão longe para encontrar um guru. Bastava aconselhar-se com seu dileto amigo, Fidel Ruz Castro, o decano dos ditadores do planeta. Que mais não seja, nalguma biblioteca sempre se encontrará alguma biografia de Stalin, Mao Tse Tung, Envers Hodja, Nicolai Ceaucescu, Muamar Kadafi ou Mobutu Sese Seko, estes líderes admiráveis que, eivados de tanto amor por seus povos, jamais permitiram que um outro dirigente os governasse.

Fascinado pela extraordinária trajetória política de Omar Bongo, Lula está tomando outras providências para construir uma carreira assim brilhante e duradoura. Já propôs um Conselho Federal de Jornalismo, para melhor controlar esses “jornalistas covardes” – como disse – que não têm a coragem de apoiar os projetos do governo. O modelito, para quem quiser comparar, é o mesmo da Comisão Nacional Ética...de Cuba.

Está em pauta também uma Agência Nacional de Cinema e Audiovisual, para o controle da maioria analfabeta do país, afinal neste país cada analfabeto vale um voto. Para salvar um alto funcionário acusado de corrupção, criou mais um ministério. E com a campanha de desarmamento da população civil, previne-se qualquer veleidade de resistência ao regime autoritário.

Um dos ministros do STJ, Eros Grau, recém empossado – e não por acaso – emitiu parecer para uma associação de professores, quando ainda não era ministro do STJ, cobrou 35 mil reais pra pronunciar-se contra a contribuição dos inativos. Uma vez ministro, votou a favor. Segundo o jornalista Jânio de Freitas, o ministro estará recebendo, este mês, a metade de seu preço de parecerista. “Eros Grau ficou, de fato, muito mais barato”, diz Freitas. Discrepo. 35 mil reais foi o preço de um parecer avulso. Outra coisa é receber metade disto pelo fim de sua vida para assinar o que o Executivo quiser e exigir.

Para Bandeira de Mello, professor de Direito da PUC paulista, a decisão da taxação dos inativos, "acaba com a segurança jurídica. Se o STF pode fazer isso, está falido o Estado de Direito".

Não sei se você notou. Mas a ditadura já recomeçou.

(*) 23/08/2004

quarta-feira, outubro 24, 2012
 
O EMBUSTE DOS CAIOVÁS


Lá por abril de 2000, por acaso, peguei numa bancas um número de Caros Amigos. Nela havia uma entrevista com Marcos Terena, onde ele falava com familiaridade de ecossistema, meio ambiente, filosofia da civilização indígena. Ora, isto não é discurso autóctone. São conceitos vindos da Europa e Estados Unidos. Além disso, me deixou curioso quanto à "filosofia da civilização indígena". Que seria isso? Me lembrou uma ementa do curso de Filosofia da UFSC, História da Filosofia Catarinense.

Volto ao terena. Do jeito em que marcha a universidade brasileira, qualquer dia teremos uma cadeira, História da Filosofia das Civilizações Indígenas. Dominando esse jargão de branco, não me espantaria ver o líder indígena como professor-visitante nalguma universidade alemã ou americana.

Atribuir categorias de brancos ocidentais a indígenas tem sido o recurso de muitos vigaristas para ganhar renome e prestígio. O discurso dos líderes indígenas atuais me lembra o do Gray Owl. Um vigarista inglês - Archibald Stansfeld Belaney – refugiou-se no Canadá, assumiu uma identidade indígena e fez fama e fortuna escrevendo livros sobre questões ecológicas e indígenas, como se índio fosse. Até os acadêmicos londrinos - e a própria família real, que o recebeu com todas as pompas - caíram no conto do vigário.

Além de vários livros, o embusteiro chegou a merecer um filme do cineasta Richard Attenborough, em 1999 (título no Brasil: O Guerreiro da Paz. Não houve um jornalista mais arguto na época que tivesse bestunto para ver, nos livros do Coruja Cinzenta, uma ótica desbragadamente européia. Ou, pelo menos, o texto de um europeu eivado de rosseauneanismo, e não o discurso que seria de se esperar de um tosco líder indígena.

Outro embuste célebre é a famosa carta do cacique Seattle, da tribo Squamish, enviada em 1854 ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce), depois de o Governo haver dado a entender que pretendia comprar o território ocupado por aqueles índios. Segue um excerto:

Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa idéia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?

Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.

Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia, são nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro, e o homem - todos pertencem à mesma família.

Portanto, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós.

O Grande Chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra. Mas isso não será fácil. Esta terra é sagrada para nós. Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar as suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais. Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.


A redação escorreita da carta, no melhor estilo de um bom jornalismo, denunciou-a como uma farsa. Como os Evangelhos, a carta só foi transcrita algumas décadas depois da época em que teria sido escrita. Mais precisamente em 1187, em um artigo publicado pelo Dr. Henry Smith, no Jornal Seattle Sunday Star. Ou seja, os ecochatos não nasceram ontem.

Nos finais do século passado, coube ao Brasil protagonizar o grande embuste da criação de uma tribo que nunca existiu, os ianomâmis, por uma fotógrafa que ora se diz romena, ora suíça, Cláudia Andujar. Mais ainda, um massacre foi encenado. No dia 19 de agosto de 1993, uma manchete invadiu as páginas de todos os jornais do país:

IANOMÂMIS SÃO CHACINADOS EM RORAIMA

Falou-se inicialmente em 19 mortos. Dia seguinte, eram 40. Logo depois, chegaram a 73. Os assassinos, é claro, eram os garimpeiros. No decorrer dos dias, como nenhum cadáver havia sido achado, o número de chacinados foi diminuindo. Foi fixado finalmente em 16. A única prova da chacina foi... um dente, encontrado pela Polícia Federal e exibido em grandes fotos pela imprensa, na ponta do dedo de um policial. Em verdade, não foi encontrado um só cadáver. No dia seguinte ao "massacre", ficou clara a intenção da farsa: "O presidente Itamar Franco anunciou ontem a decisão do governo em homologar a demarcação de uma área de 4.900 hectares no sul do Pará, habitada por 600 índios caiapós, em duas aldeias. O anúncio foi feito pouco mais de 24 horas após a divulgação da chacina dos ianomâmis em Roraima".

Na verdade, a aldeia onde teria ocorrido o massacre, Haximu, sequer ficava em Roraima, mas na Venezuela. Relato toda essa farsa em Ianoblefe - o jornalismo como ficção. O livro foi recusado por cerca de vinte editoras. "Não podemos nos indispor contra todos os jornais do país", resumiu um editor. Mas pode ser baixado de http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ianoblefe.html

Publiquei um resumo do livro na Folha de São Paulo e fui processado por sete entidades ligadas aos índios, que pediam para mim cinco anos de prisão. Obviamente, não levaram.

Em agosto passado, talvez entusiasmado com os dividendos do “massacre” brasileiro, líderes indigenistas tentaram repetir a dose o na Venezuela, com mais um massacre de 80 inocentes ianomâmis por um grupo de malvados garimpeiros brasileiros. A notícia rolou mundo, desde o El País a L’Express, desde o Süddeutsche Zeitung ao New York Times. Só faltaram os cadáveres – ou pelo menos fotos dos cadáveres - dos 80 indígenas. Algo como a farsa ocorrida em 1993, na aldeia Haximu, onde teriam sido massacrados 73 índios e não se encontrou o cadáver de ... nem um índio sequer.

A imprensa nacional, sempre a reboque de qualquer barriga internacional, não poderia deixar de repercutir o mais recente embuste. No 30 de agosto último, noticiou o Estadão:

80 ÍNDIOS MORREM NA FRONTEIRA DO BRASIL COM A VENEZUELA

Organizações não-governamentais (ONGs) de defesa dos direitos dos indígenas que atuam na Venezuela denunciaram ontem, quarta-feira, 29, que mineiros mataram até 80 ianomâmis na região da fronteira venezuelana com o Brasil. As informações são da emissora britânica BBC. O ataque, de acordo com os relatos, ocorreu no mês passado, na comunidade de Irothatheri, localizada nas proximidades do território brasileiro.

Testemunhas que estiveram no local da matança afirmaram que os mineiros atearam fogo a uma casa comunal dos indígenas, pois encontraram os corpos dos ianomâmis carbonizados ao passar pela tribo. Membros da comunidade indígena têm reclamado de mineiros invadindo suas terras à busca de ouro.

Segundo a ONG Survival International, a demora na descoberta do massacre ocorreu em virtude da remota localização da tribo atacada. A entidade afirmou que as pessoas que descobriram os corpos levaram vários dias para caminhar até a localidade mais próxima. Alguém ainda lembra deste recente massacre? Não colou. Não se fala mais dele e jornal nenhum pediu desculpas a seus leitores, por tê-los informado erradamente.

Temos agora mais um embuste, o dos caiovás, em Mato Grosso do Sul. Não é exatamente um massacre, mas promessa de suicídio coletivo. Recentemente, um grupo de 170 índios ocupou uma área na Fazenda Cambará, que eles alegam pertencer à etnia. Mas, no início deste mês, a Justiça Federal de Naviraí, representada pelas instâncias competentes, despachou uma ordem de despejo dos caiovás, em atendimento aos fazendeiros que ocupam a área onde os indígenas acamparam.

Desde então, eles passaram a discutir o suicídio como protesto, segundo alertou Sarney Filho. "Expliquei a gravidade do assunto e das sucessivas agressões aos guarani-caiová, que os levaram a fazer do suicídio uma prática comum entre eles e que agora 170 pessoas ameaçam tirar a própria vida", enfatizou.

Nos últimos dias, está despontando timidamente na imprensa, uma "carta-testamento”, assinada por representantes da aldeia Guarani-Kaiowá, do município de Naviraí, que acenam com o suicídio coletivo, caso seja cumprida a decisão da justiça. A carta denota um notável domínio das normas de redação, que muitos jornalistas sequer possuem.

Curiosamente, não temos uma única citação da sentença que determinou a desocupação da fazenda. Só temos as razões alegadas pelos caiovás. É uma fórmula inovadora para contestar uma sentença judicial: "olha, se vocês cumprem essa decisão, nós nos suicidamos". Surge uma nova instância na justiça brasileira: reivindicação atendida ou suicídio.

Resta ainda uma pergunta: a decisão de suicídio coletivo foi unânime? Será que ninguém discordou? E as crianças? Serão suicidadas pelos suicidas?

Claro que não vão se suicidar. Mas se colar, colou. Perde-se na justiça, mas se tenta ganhar no grito. Espantoso que os petistas condenados no julgamento do mensalão ainda não tenham pensado nisso. Líderes que o PT cultua até agora têm se limitado a denunciar a injustiça do STF e a afirmar sua inocência. Talvez fosse mais eficaz ameaçaram suicídio coletivo.

Diante da perspectiva desta perda irreparável para a pátria, talvez os ministros do Supremo fossem mais sensíveis a seus protestos de inocência.



A CARTA DOS CAIOVÁS

Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil

Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante de da ordem de despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS.

Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira.

A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas.

Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados.

Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.

Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.

Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.

Atenciosamente, Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay