¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 01, 2012
 
QUE TAL NETFRIENDS?


Depois do Facebook, discutir o que significa amizade tornou-se tema recorrente. Em maio passado, o Nouvel Observateur se perguntava: qual a intimidade com um milhão de amigos? A revista qualificava o site, com seus 900 milhões de utilizadores em apenas oito anos de existência, como o terceiro país do mundo, por sua população. Uma de suas características seria redefinir as relações sociais e mesmo as práticas culturais.

Existe um milhão de amigos? – perguntei-me na ocasião. Minha pergunta era meramente retórica. Claro que não existe. Amigos são sempre poucos e raros. Ainda há pouco eu comentava o perverso ranço cristão do “amai-vos uns aos outros”. Como perceberam Nietzsche e Kierkegaard, esta ordem exclui o sentimento de amizade. Amizade é eleição, afinidade eletiva. Se tenho de amar o próximo, não sobra espaço para o amigo.

Aristóteles, na longínqua Atenas, distante no tempo e no espaço, desde há mais de dois mil anos concorda comigo. No livro oitavo da Ética a Nicômaco, afirma não ser possível ser amigo de muitos com perfeita amizade, como não é possível estar enamorado ao mesmo tempo de muitos. “Aqueles que têm muitos amigos e que tratam todos familiarmente, não parecem ser amigos de ninguém”. Para o estagirita, um milhão de amigos nem pensar.

Semana passada, Época dedicou oito páginas ao tema. Amizades próximas e distantes existem desde os tempos do filósofo Aristóteles – dizia a revista – e são igualmente importantes para nossa vida. É possível usar a internet e as redes sociais para cultivá-las?

Época caiu na mais óbvia armadilha semântica contemporânea. Hoje, basta uma mídia poderosa dar um novo nome às coisas e as massas adotam a nova palavra como se existisse depois de séculos. Salta aos olhos que amizade não é sentimento que surja a partir de um clique.

É possível ser amigo de alguém sem a proximidade física? Claro que sim, e isto ocorreu muito naqueles dias - que hoje parecem tão distantes – em que escrevíamos cartas. Há afinidades intelectuais que unem pessoas, quem escreve sabe disso. Nos deparamos com a obra de um escritor, ela vem ao encontro do que pensamos, e esse escritor passa a fazer parte de nossa vida. Geralmente, ele nem sabe disso. Outras vezes, fica sabendo.

Ocorreu comigo. Ernesto Sábato é um homem com quem me encontrei cinco ou seis vezes na vida. Fascinado por sua obra, decidi escrever-lhe uma carta. Não esperava resposta, supunha que estivesse internado nalgum hospício, sob camisa de força. Para minha perplexidade, a resposta veio. Dessa resposta, decorreu uma longa amizade à distância, que resultou em minha tese em Paris e na tradução de seus livros no Brasil.

É possível nutrir amizade com pessoas mortas? Diria que sim. Me considero íntimo tanto de Pessoa como de Hernández, e seguidamente estou conversando com eles. Para mim, são mais presentes que muitas pessoas de meu dia-a-dia. Foram os amigos fiéis que me mantiveram à tona nas noites gélidas da Escandinávia. Sim, amizades póstumas são perfeitamente viáveis.

Estas à parte, só ouso qualificar como amigo alguém com quem já convivi uns bons vinte anos. Se bem que a experiência de minhas últimas décadas tem me sussurrado que é melhor esperar uns quarenta. Já ultrapassei a sexta década e meus amigos, se for contá-los nos dedos, sobram dedos. E me sinto muito feliz por tê-los tantos. Sem falar que, em função de meu espírito nômade, estão dispersos por várias geografias e nem consigo reuni-los numa mesma mão ou mesa.

Amizade é flor delicada. Sua melhor definição, a meu ver, foi proferida há dois mil e trezentos anos, pelo grego que já citei. Para Aristóteles, duas pessoas só podiam ser amigas se fossem honestas. Assino embaixo. Não vejo como me relacionar com pessoas desonestas. Quem apronta para outros, pode muito bem aprontar para mim. Isto vale para aqueles que são desonestos consigo mesmos. Essa gente que tem apartamento em Paris e louva o regime cubano. Essas ocidentais que, do alto de seus clitóris, defendem o Islã.

Meus amigos são poucos e a maior parte deles não participa das ditas redes sociais. Isso sem falar nos neoluditas, que de computador só querem distância. No Facebook, fora alguns que conhecia de longa data, estão os que eu chamaria de conhecidos. Virtuais, mas conhecidos. Em função do que escrevo, desperto algumas simpatias – e não poucas antipatias. Com o tempo e as comunicações, se cria algo próximo à amizade. O problema, na rede, é saber com quem estamos falando. O Facebook é uma oportunidade de ouro para alguém travestir-se, imbuir-se de uma nova personalidade. Verdade que ninguém consegue enganar por muito tempo, a não ser que encontre interlocutores ingênuos. Quando uma moça esquálida e sem maiores atributos, que se apresenta como redondinha e cheia de charme, encontra o baixinho manco que postava foto de jovem e atleta, ela descobre que amor com amor se paga.

Há quem se recuse, terminantemente, a relações via telinha e teclado. É um direito seu. De minha parte, tenho tido boas surpresas. Reencontrei amigos e namoradas perdidas no tempo. A Internet é o território dos desgarrados, a mais cabal comprovação do procura e acharás. Encontrei algumas colegas que não via há trinta e mesmo quarenta anos. Nos últimos meses, viajei mais longe no tempo. Reencontrei pessoas de meus dias de Upamaruty e Ponche Verde, quando eu tinha dez ou doze anos.

Ainda nos dias de Orkut, reencontrei uma sabra adorável que conheci numa distante travessia no Eugenio C, em 1971, quando rumava à Europa. Mais um poeta canarino que encontrei no mesmo barco e fui visitar em Agaete, em Las Palmas, Gran Canaria. Mais uma brava peoniana que embalou meus dias de Paris. Ainda do Eugenio C, reencontrei há pouco um capitão-de-fragata argentino, que segurou-me em dias em que eu namorava as ondas. Faltam ainda uma guarani, uma polaca, uma svenska, uma finska e uma usbeque. Ma chi lo sa?

Mais ainda, encetei um diálogo com a cidade onde me eduquei. Os pedritenses criaram uma comunidade que os reúne e fui convidado a dela participar. Pela primeira vez na vida, já sexagenário, estou falando com a cidade que me acolheu. Nos anos 70, escrevia na Folha da Manhã, é verdade. Porto Alegre fica a 450 km de Dom Pedrito, mas só dois ou três exemplares do jornal chegavam lá. Meus conterrâneos – assim os considero, apesar de ter nascido em Livramento, cidade que mal conheço – não sabiam se eu era açougueiro ou alfaiate. Hoje, mesmo com um oceano de permeio, sabem por onde ando, o que faço, como penso, o que escrevo.

As ditas redes sociais estão assumindo com força a função dos jornais. Haja vista a freqüência com que o Google e o YouTube estão sendo acionados por juizecos que se pretendem censores. Não seria de espantar que, nos próximos anos, o Facebook seja um dos mais importantes jornais do mundo, no qual todo cidadão pode ser redator.

Para o Facebook, amigo virou sinônimo de qualquer um. Amizade passa a ser sentimento de quem está conectado à rede. Não deve estar longe o dia em que a primeira providência para conseguir amigos será comprar um computador. Faltou criatividade a seus webmasters. Não é difícil criar neologismos, ainda mais em uma língua aglutinante como o inglês.

Dizem alguns lingüistas que os esquimós têm diferentes palavras para as distintas tonalidades do branco. Outros dizem ser lenda: que os inuits têm muitos dialetos e cada dialeto tem sua palavra para designar a cor. Seja como for, é uma idéia. Há várias tonalidades de amizade.

O Facebook poderia ter cunhado, por exemplo, netfriends. Ou algo parecido. Aí ficaria evidenciada a diferença entre amizade verdadeira e virtual.