¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, novembro 09, 2012
 
REMEMBER 09/11/89


No dia 9 de novembro de 1989, fiz uma palestra em Porto Alegre, no Instituto de Cultura Ibero-Americana, sobre Camilo José Cela e a Guerra Civil espanhola, enfocando particularmente San Camilo, 1936. A data é significativa. Depois daquele dia, toda a história do Ocidente, e particularmente da Espanha, teve de ser revisada. Naquela noite, caía o muro de Berlim. Minha palestra, embora focando um autor espanhol, tinha muito a ver com o assunto.

Quando estava traduzindo Cela, em 1984, propus um curso introdutório à sua obra na UFSC, que foi imediatamente recusado por meus colegas. Motivo: Cela, em sua juventude, havia lutado na Falange franquista. Ou seja, meio século após a partição da Espanha em dois, vivíamos em plena Guerra Civil... em Florianópolis. Não importava o autor ter produzido a novela espanhola mais traduzida depois do Quixote - que já nos chegava com nada menos que meio século de atraso - não importava ser o intérprete "del país más lindo del mundo". Havia lutado na Falange e estava proibido em Florianópolis. Só consegui levantar o embargo três anos mais tarde, em 87, quando já havia traduzido dois de seus livros e a imprensa do centro do país começava a descobrir Cela.

Na ocasião, sugeri ao editor de Cela a publicação de um dos livros que considero fundamental em sua bibliografia, San Camilo, 36. Mas parece que a dedicatória do livro o assustou. Com a coragem do homem que não se dobra a fanatismos, escreve Cela: "A los mozos del reemplazo del 37, todos perdedores de algo: de la vida, de la libertad, de la ilusión, de la esperanza, de la decencia. Y no a los aventureros foráneos, fascistas y marxistas, que se hartaron de matar españoles como conejos y a quienes nadie habia dado vela en nuestro propio entierro".

Ou seja, antes da primeira linha, o autor nos adverte não nutrir nenhuma simpatia pelos estrangeiros que levaram a Espanha a uma carnificina. Num século que cultuou como heróis Neruda, Hemingway, Malraux, Sartre e tantos outros stalinistas, estas poucas linhas soavam como heresia imperdoável.

A obra fundamental de Cela é, sem dúvida alguma, seu primeiro livro, A Família de Pascual Duarte, publicado na Espanha em 1942. Só foi traduzido no Brasil, para nossa vergonha, em 1986, nada menos que 44 anos depois. Por uma razão singela. Cela, além de ter lutado nas falanges franquistas, fazia críticas ao comunismo. Naquela noite em que eu palestrava, nem em sonhos imaginaria que começava a ruir o símbolo mais concreto (sem trocadilhos) do sistema que fascinava os intelectuais do século e proibia a edição do escritor galego no Brasil.

Cortina de Ferro era uma idéia abstrata. Muro de Berlim era a tradução concreta daquela idéia. Constituiu meu primeiro argumento contra o comunismo, antes mesmo de conhecer qualquer país comunista. Ainda em Dom Pedrito, assediado pelos comunistas, eu perguntava: que paraíso é esse de onde é proibido sair? É a pergunta que se deve fazer a qualquer regime que se pretenda paradisíaco. Era proibido sair porque, uma vez no estrangeiro, quem havia saído jamais voltava. Então não era paraíso. Quando saímos do paraíso, temos pressa em voltar.

Vinte e três anos depois, a queda do Muro ainda não foi assimilada pela intelligentsia – diríamos melhor burritsia – nacional. San Camilo, 36, uma das obras mais importantes de Cela, até hoje não foi traduzido no Brasil. De lá para cá, fiz não poucas palestras em colégios e universidades. Nestas palestras, sempre perguntava: que aconteceu em 9 de novembro de 1989? Ninguém – nem mesmo professores universitários – sabiam responder. No entanto, na Europa a data é considerada a segunda mais importante do século. A primeira seria 25 de outubro de 1917, quando os bolcheviques tomaram de assalto o Palácio de Inverno do tzar, em São Petersburgo. A segunda, o Nove de Novembro.

Naquela época, eu já escrevera não poucas crônicas sobre a realidade dos países comunistas. Juntei mais algumas sobre a queda do Muro e, em 1990, ofereci a editores um livro, Crônicas da Guerra Fria. Não se dignaram sequer a dar-me uma resposta. Também, pudera: eu era o único a soltar foguetes, quando todos estavam de luto. Até hoje, não se publicou no Brasil, de autor brasileiro, nenhum livro sobre a Queda do Muro. Temos farta bibliografia sobre Cuba, socialismo, comunismo, castrismo, temos até odes à Albânia de Envers Hodja. Sobre a queda do Muro, zero. Apesar de a data ser facilmente memorizável, por ser aliterativa, até hoje poucos sabem o que aconteceu naquele dia. Leia os jornais de hoje. Nenhum lembrou a data. No Brasil, o fundo do ar continua sendo vermelho.

Em 1990, fui a Berlim quebrar os cacos que ainda restavam do muro. Não iria perder a ocasião de dar uma mão à História. Tinha um problema crônico de menisco e volta e meia me acometia a tal de água no joelho. Claro que não faltaram as más línguas a aventar a hipótese de uísque no joelho. A bem da verdade, aquele líquido tinha uma certa cor de bom scotch. Sabe-se lá!

Parti rumo ao muro, sem lenço nem documento, como se diz. Em Paris, escorreguei e a perna começou a inchar. Pensei ir ao médico, mas desisti. Sabia qual era o tratamento. Ele faria uma punção no joelho, extrairia o líquido sinovial e me ordenaria repouso. Se é para ficar de molho, pensei, fico em Berlim, mais perto do muro. Embarquei.

No trem, desastre. A perna foi inchando a ponto de mal caber na perna da calça. Eu viajava com uma amiga, que seria minha anfitriã. Nem deu para ir à sua casa. Ela telefonou para o hospital e do trem fui direto para lá. Onde já me esperavam dois médicos, com uma maca na recepção. Resumindo: apesar de meio aleijado, consegui arrancar meus caquinhos. O muro parecia ter sido construído para a eternidade. O martelo batia e voltava e o concreto continuava intacto. Com muito esforço, consegui dois míseros fragmentos, que hoje tenho pendurados na parede, como troféus. Míseros, mas meus.

Em verdade, não é que o Muro parecesse ter sido construído para a eternidade. Foi construído para a eternidade mesmo. Para os comunistas, o comunismo era o rumo inexorável para o qual caminhava a História, e eles consideravam retardados mentais quem não acreditava nisto. O Muro foi concebido para sempre. Tanto que nenhum escritor previu seu desmoronamento. Os escritores do século chegaram a conceber viagens espaciais a Alpha Centauri. Mas jamais imaginaram que um dia pudesse ruir aquela cerca absurda que separava uma nação.

Vinte e três anos depois, ninguém lembra, ninguém sabe, ninguém viu. 11/9 todos lembram. 9/11 já está enterrado nos escaninhos da memória. Ocorre que o 9/11 transformou muito mais o mundo e o século que o incidente do 11/9. Parece que professor algum, jornalista algum, percebeu a importância do fato. Ou, propositadamente, o omite a seus alunos e leitores. Não é de espantar. Imprensa e universidade brasileiras estão contaminadas até os ossos pela nostalgia do comunismo. Viúvas sofrem muito ao relembrar a morte do marido.

PS - As Crônicas da Guerra Fria, você pode baixar de http://migre.me/bIvEY