¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, dezembro 31, 2012
 
DESDE O FUNDO DO POÇO À
UMA VIDA PLENA DE GRAÇA *



Senhor pastor:

Houve época em que cri em um deus onipotente e salvador e muitas vezes a ele orei por minha salvação, pela salvação de meus próximos e mesmo da humanidade. Foram meus dias de adolescência, pastor. Justo naqueles dias, fui assaltado pelo clamor, não dos povos – como fala o Livro – mas pelo clamor da carne, clamor tirano, imperioso e impossível de ser domado. Por melhores propósitos que fizesse, acabava dominado pelos ditos prazeres da carne. Dizem que a carne é fraca, pastor. Nada disso, a carne é forte. Fraco é o espírito, que sempre acaba cedendo à carne.

Entrava em pânico, via à minha frente as chamas eternas do Hades, onde tudo é choro e ranger de dentes. Me sentia condenado ao convívio com demônios. Arrependia-me, fazia atos de contrição, confessava meus pecados a sacerdotes e recebia a absolvição. Por um dia ou dois, conseguia viver sem pavores. Mas não mais que um dia ou dois. No terceiro, eu já estava pecando de novo. As noites de tempestade eram noites de pavor. Talvez fosse megalomania. Mas cada raio que caía, eu sentia que era dirigido a mim.

Eu era pobre, pastor. Filho de camponeses, nunca tive facilidades em minha infância. Muito menos na adolescência. Fiz minhas universidades mal tendo dinheiro para o restaurante universitário. Vivi em repúblicas abomináveis, pequenos apartamentos, sem grana suficiente para tomar um vinho decente. A bebida mais ao alcance de minha boca era a mais barata, a cachaça. Ainda adolescente, tomei grandes porres de cachaça. Naqueles dias de pouca grana, bebia muito e bebia mal. Em minha juventude, pastor, eu estava no fundo do poço. O senhor Jesuis era um encosto em minha vida, despacho de catimbó feito a Exu, praga rogada por urubu para infernar meus dias.

Foi quando então, pastor, durante três dias e três noites, li atentamente a Bíblia. Foram dias em que quase não comi. À noite, pegava um cavalo em pêlo, sem freio nem buçal, e saía a galopar nas madrugadas, olhando o céu estrelado e esperando ouvir daquele universo magnífico alguma resposta. Não ouvi nada, pastor. Foram três dias e três noites decisivas em minha vida. A partir da leitura do Livro, tornei-me ateu. Aquele deus proposto pelas Escrituras, que se pretendia criador daquele firmamento esplêndido e cravejado de estrelas, que só vemos na pampa ou no deserto, sempre longe das cidades, não me convencia. Aquele deus matava e exterminava, mandava matar e exterminar. Não me servia.

Disse então a mim mesmo: sai de mim, Coisa Ruim! Me larga, ó Espírito Castrador, sai de minha vida, ó Supremo Estraga-prazeres! Desapareçam de minha vida vocês três, o Pai, o Filho e o Paráclito. E a Mãe também, antes que me esqueça. E todos os santos do céu e todos os padres de todas as igrejas. Xô, Espírito Imundo, xô, Assassino de Povos. Ouste, Pai das Doenças e Exterminador de Nações. Rua de minha alma, ó velho Deus castrado!

Então, pastor, tudo mudou em minha vida. Saí do fundo do poço, rumo à luz do bocal. Mulheres começaram a cair-me dos céus, justo daqueles céus mudos aos quais eu pedia perdão por meus pecados. Como perdera a noção de pecado, nunca mais pequei. Tornei-me um santo homem e procurei imitar os bíblicos patriarcas. Curti plenamente os prazeres que tanto apraziam ao rei Davi, ao rei Salomão, à Sulamita. Verdade que nunca consegui sustentar setecentas mulheres e trezentas concubinas. Mas fiz o que estava a meu modesto alcance.

Por mais de quarenta anos, as mulheres me caíram nos braços como o maná caiu do alto por quarenta anos para saciar a fome do Povo Eleito. Comecei minha vida afetiva com duas, às quais muito amei. Por circunstâncias dos dias, perdi uma. Vivi quatro décadas de muito carinho e cumplicidades com a segunda. Fui feliz em meu casamento. Divórcios, separações, o espírito do ciúmes, amargura, traições, nunca rondaram minha existência.

Quando minha amada partiu, não acusei deus algum, afinal não acreditava em nenhum. Estas duas primeiras amadas logo se multiplicaram por dois, cinco, dez, vinte, cinqüenta. Não saberia dizer quantas, nunca contei. Mas digamos que a metade da “listina” de Leporello. Corri atrás delas com a hybris de um fauno grego, para compensar os dias de vacas magras e sem leite de minha juventude. Após deixar de crer no tal de deus, minha vida foi uma profusão de prazeres. Corri nu atrás de valquírias nuas pelos bosques de Estocolmo, em plena luz da meia-noite. Isto, pastor, teu deus não confere aos mortais, exceto se forem majestades apaniguadas pelo Senhor. Isto é ventura só concedida pelos deuses lúbricos do Valhala. Tack tack, Odin!

Uma vez descrente, apesar de pobre consegui educar-me. Fiz duas faculdades, três pós-graduações no Exterior, viajei por todos os países da Europa, por mais alguns do Leste europeu, pela África, Estados Unidos, Canadá e América Latina. Nasci nos peraus do Upamaruty, em um rancho de pau-a-pique e fiz doutorado em Paris. Consegui escapar de meu pequeno mundinho e sai a navegar pela vastidão do anecúmeno. Au bord’elle, la Seine, conheci uma peoniana adorável, a quem dediquei minha tese. Havia também Úrsula, uma polonesa, que me sussurrava: “mon ours tropical”. Música para meus ouvidos.

Não cheguei a amar a filha de Faraó, muito menos moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias, como o sábio rei Salomão. Mas tive namoradas lindas em várias cidades do mundo. Desde suecas a francesas. Desde macedônias até mesmo a turcomenas e usbeques, passando por polonesas e russas. Adorei a turcomena. Era de Achkhabad, palavra que soava deliciosamente à minha fome de exotismo. Uma vez ateu, fascinou-me a idéia de ouvir mulheres gemendo em línguas que desconheço. E as ouvi. Paris sempre foi pródiga em estrangeiras de todos azimutes e não recusei o que a cidade generosamente me oferecia. Tive do bom e do melhor, como dizem suas ovelhas, senhor pastor. Mas só depois que deixei de crer.

Ateu, fui abençoado com dinheiro e vida confortável. De camponês tosco, tive acesso a línguas, à filosofia, à literatura, à música erudita, a óperas, em suma, ao dito mundo da cultura. De Teixeirinha passei a Mozart, de Luiz Gonzaga a Bizet. Abandonei a cachaça e passei a cultivar bons vinhos e bons uísques. Do mondongo fui promovido ao foie gras, do arroz com feijão às andouilletes. Curti a boa gastronomia da Espanha, França, Itália, Alemanha, Portugal. Percorri as cidades mais esplendorosas do Ocidente. Vivi em três prestigiosas capitais da Europa e em quatro grandes capitais de meu país.

Perambulei por paisagens magníficas, que me fizeram chorar. A beleza extrema sempre me provoca lágrimas. Andei pelo deserto, por oueds, montanhas, dunas, fjords, rias e ventisqueros. Chorei nos Andes, chorei nos Alpes, chorei no Saara, chorei nas costas da Noruega, chorei no Estreito de Magalhães. Chorei também em Santorini. De Madri, saí chorando. Eu estava em uma bodega, tudo era cores, dança, música, canções, madriles lindas, muito vinho, odores de assado bom, os sons rascantes de uma língua que adoro.

Quando me dei conta que, dali a duas horas, estaria voltando ao Brasil, chorei como um terneiro desmamado. Fui chorando até o aeroporto. Não porque estivesse voltando ao Brasil. Mas porque estava abandonando a festa. Dentro de pouco eu estaria voando, espremido num assento apertado, rumo a um país sin flamenco ni cante hondo, sin bailaoras ni cantaores, sin cochinillos ni lechales. Na bodega, continuariam todos cantando e dançando, comendo e bebendo. Muito chorei em minha vida, pastor. Raras vezes de tristeza. O mais das vezes, foi por deslumbramento, perplexidade ante a beleza. Felicidade também nos faz chorar. Choro também com certas árias de Nabucco, Carmen, Don Giovanni, Norma.

Depois que abandonei o tal de Deus, senhor pastor, passei a viajar quase todos os anos à Europa. (Quando nele acreditava, só conseguia ir de Dom Pedrito a Ponche Verde). Fiz pelo menos cinco travessias divinas do Atlântico – com perdão pelo trocadilho – de navio. Sabe, pastor? Aqueles navios cheios de Emmas Bovarys sedentas para conhecer o mundo e experimentar emoções outras que não as medíocres emoções proporcionadas pelo Charles. Vivi grandes momentos, “ao quente arfar das vibrações marinhas”, como canta o poeta. Fiz cruzeiros também divinos pelo Mediterrâneo, pelo Báltico, pelo mar do Norte e pelo mar Negro, pelo Egeu, pelo Adriático e pelos Canales Fueguinos.

Durante pelo menos uns trinta anos, sempre celebrei a bona-chira nos mais antigos e acolhedores restaurantes da Europa, com minha Baixinha adorada. Agora que ela partiu, ora a celebro com minha filha, ora com alguma namorada. E com meus amigos. Bastou-me abandonar Deus, pastor, e minha vida se tornou repleta de bênçãos, que me caíam dos céus em catadupas.

Fui salvo por minha descrença, pastor. Quando cria em Deus, era um adolescente fodido e sem nenhum vintém. Não tinha nem como convidar uma amiga para um bom jantar. Bastou-me deixar de crer e a vida se tornou linda. Cheguei aos sessenta jovem e cultivando minhas antigas amadas. Não tenho carro, nem nacional nem importado, como ostentam vossos crentes, é verdade. Mas isto é opção minha. Com carro não se vai longe. Ora, eu gosto de ir longe.

Sem ser rico, vivo bem. Não tenho contas em vermelho, nem nome sujo na praça, nem problemas na justiça. Jamais fiz empréstimos. Não sei o que seja um cheque sem fundo. Muito menos problemas familiares. Hoje, minhas únicas dívidas são luz, água e condomínio. Vivo em bairro bom, prédio ótimo, apartamento confortável. Ano passado, regalei uma antiga namorada com uma viagem a Paris, Barcelona e Madri. Com uma noite em Bruxelas, só para curtir um café que adoro.

À minha filha – doravante designada Primeira Namorada – dei de presente os fjords noruegueses, o sol da meia-noite, Estocolmo e o arquipélago de Estocolmo e de novo Paris. Na próxima primavera européia, estou combinando um giro pela Itália com uma amiga da Finlândia. No outono, penso partir com a Primeira Namorada rumo a Madri e às ilhas Canárias. Madri porque não concebo ir a Espanha sem visitar Madri. Ilhas Canárias, porque quero passear entre os vulcões de Lanzarote e comer carnes assadas no calor das lavas.

Por vários anos vivi soterrado no fundo do poço. O senhor Jesuis sempre foi um atraso em minha vida. Tudo só se tornou lindo, divino e maravilhoso quando o abandonei. Sei que o senhor pastor, por questões de fé, neste ano que começa, não poderá gozar dos prazeres que gozei e gozarei ainda. Seja como for, bom 2009, senhor pastor.

* 31/12/2008

domingo, dezembro 30, 2012
 
AS TRÊS VIAS DE ACESSO *


Após ler minha crônica sobre os cavacos do ofício do jornalismo, uma amiga me pergunta porque não estou lecionando numa universidade. Coincidentemente, a resposta está no artigo de Cláudio de Moura Castro, na Veja da semana passada:

“Na UFRJ, um aluno brilhante de física foi mandado para o MIT antes de completar sua graduação. Lá chegando, foi guindado diretamente ao doutorado. Com seu reluzente Ph.D., ele voltou ao Brasil. Mas sua candidatura a professor foi recusada pela UFRJ, pois ele não tinha diploma de graduação. Luiz Laboriou foi um eminente botânico brasileiro, com Ph.D. pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Mas não pôde ensinar na USP, pois não tinha graduação”.

Estas peripécias, eu as conheço de perto. Começo pelo início. Nunca me ocorreu lecionar na universidade. Eu voltara da Suécia, cronicava em Porto Alegre e fui tomado pela resfeber, doença nórdica que contraí na Escandinávia. Traduzindo: febre de viagens. Li nos jornais que estavam abertas inscrições para bolsas na França e me ocorreu passar alguns anos em Paris. A condição era desenvolver uma tese? Tudo bem. Paris vale bem uma tese. Tese em que área? Busquei algo que me agradasse. Na época, me fascinava a literatura de Ernesto Sábato. Vamos então a Paris estudar Sábato.

Mas eu não tinha o curso de Letras. O cônsul francês, ao me encontrar na rua, perguntou-me se eu não podia postular algo em outra área. Em Direito havia mais oferta de bolsas. Poder, podia. Eu cursara Direito. Mas do Direito só queria distância. Mantive minha postulação em Letras. Para minha surpresa, recebi a bolsa. A França me aceitava, em função de meu currículo, para um mestrado em Letras, curso que eu jamais havia feito. Nenhuma universidade brasileira teria essa abertura. Aliás, os componentes brasileiros da comissão franco-brasileira que examinava as candidaturas, tentaram barrar a minha. Fui salvo pelos franceses.

Fui, vi e fiz. Em função de meu currículo, aceito para mestrado, fui guindado diretamente ao doutorado. Tive o mesmo reconhecimento que o aluno do MIT. Acabei defendendo tese em Letras Francesas e Comparadas. Menção: Très bien. Não me movera nenhuma pretensão acadêmica, apenas o desejo de curtir Paris, suas ruelas, vinhos, queijos e mulheres. A tese não passou de diletantismo. De Paris, eu escrevia diariamente uma crônica para a Folha da Manhã, de Porto Alegre. Salário mais bolsa me propiciaram belos dias na França. Foi quando minha empresa faliu. Conversando com colegas, fiquei sabendo que um doutorado servia para lecionar. Voltei e enviei meu currículo para três universidades. Sei lá que loucura me havia acometido na época: um dos currículos enviei para o curso de Letras da Universidade de Brasília.

Fui a Brasília acompanhar meu currículo. Procurei o chefe do Departamento de Letras. Ele me cobriu de elogios, o que só ativou meu sistema de alarme. Que minha tese era brilhante, que meu currículo era excelente, que era um jovem doutor com um futuro pela frente. Etc. Mas... eu tinha apenas os cursos de Direito e Filosofia, não tinha o de Letras. Me sugeria enviar meu currículo ao Departamento de Filosofia, já que a tese tinha alguns componentes filosóficos.

Ingênuo, fui até o Departamento de Filosofia. O coordenador me recebeu muito bem, analisou minha tese, cobriu-a de elogios. Mas... eu não tinha o Doutorado em Filosofia. Apenas o curso. Considerando o grande número de artigos publicados em jornal, sugeria que eu fosse ao Departamento de Comunicações. Besta atroz, fui até lá. O coordenador considerou que meu currículo como jornalista era excelente. Mas... eu não tinha o Curso de Jornalismo.

Na Universidade Federal de Santa Catarina abriu um concurso para professor de Francês. Já que eu era Doutor em Letras Francesas, me pareceu que a ocasião era aquela. Duas vagas, dois candidatos. Fui solenemente reprovado. Uma das alegações foi que eu falava francês como um parisiense, e a universidade não precisava disso. A outra, e decisiva, era a de que eu tinha doutorado em Letras Francesas, mas não tinha curso de Letras.

Já estava desistindo de procurar emprego na área, quando fui convidado para lecionar Literatura Brasileira, na mesma UFSC que me recusara como professor de francês. Convidado como professor visitante, o que dispensa concurso. Mas o contrato é por prazo determinado, dois anos. O curso precisava de doutores para orientar teses e eu estava ali por perto, doutor fresquinho, recém-titulado e livre de laços com outra universidade. Fui contratado.

Acabei lecionando quatro anos, na graduação e pós-graduação. Findo meu contrato, foi aberto um concurso para professor de Literatura Brasileira. Me inscrevi imediatamente. Uma vaga, um candidato. Me pareceram favas contadas. Ledo engano. Eu não tinha o curso de Letras. Fui de novo solenemente reprovado.

Na mesma época, abriu um concurso na mesma universidade para professor de espanhol. Ora, eu já havia traduzido doze obras dos melhores autores da América Latina e Espanha (Borges, Sábato, Bioy Casares, Robert Arlt, José Donoso, Camilo José Cela). Vou tentar, pensei. Tentei. Na banca, não havia um só professor que tivesse doutorado. Pelo que me consta, jamais haviam traduzido nem mesmo bula de remédio. Mais ainda: não tinham uma linha sequer publicada. Novamente reprovado. Minhas traduções poderiam ser brilhantes. Mas eu jamais havia feito um curso de espanhol.

Melhor voltar ao jornalismo. Foi o que fiz. Anos mais tarde, já em São Paulo, por duas vezes fui convidado para participar de uma banca na Universidade Federal de São Carlos, pelo professor Deonísio da Silva, então chefe de Departamento do Curso de Letras. Uma das bancas era para escolher uma professora de Literatura Espanhola, outra uma professora de Literatura Brasileira. Deonísio sugeriu-me participar, como candidato, de um futuro concurso. Impossível, eu não tinha o curso de Letras. Quanto a julgar a candidatura de um professor de Letras, isto me era plenamente permissível.

Por estas e por outras – e as outras são também importantes, mas agora não interessam – não estou lecionando. Diz a lenda que na universidade da Basiléia havia um dístico no pórtico, indicando as três vias de acesso à universidade: per bucam, per anum, per vaginam. Lenda ou não, o dístico é emblemático. A universidade brasileira, particularmente, é visceralmente endogâmica. Professores se acasalam com professoras e geram professorinhos e para estes sempre se encontra um jeito de integrá-los a universidade. A maior parte dos concursos são farsas com cartas marcadas. Pelo menos na área humanística. As exceções ocorrem na área tecnológica, onde muitas vezes a guilda não tem um membro com capacitação mínima para proteger. Contou-me uma professora da Universidade de Brasília: “eu tive muita sorte, os dez pontos da prova oral coincidiam com os dez capítulos de minha tese”. O marido dela era um dos componentes da banca. A ingênua atroz – ou talvez cínica – falava de coincidência.

Na universidade brasileira, nem um Cervantes seria aceito como professor de Letras, afinal só teria em seu currículo o ofício de soldado e coletor de impostos. Um Platão seria barrado no magistério de Filosofia e um Albert Camus jamais teria acesso a um curso de Jornalismo. No fundo, a universidade ainda vive no tempo das guildas medievais, que cercavam as profissões como quem cerca um couto de caça privado. Na Espanha e na França, desde há muito se discute publicamente a endogamia universitária. Aqui, nem um pio sobre o assunto. E ainda há quem se queixe quando os melhores cérebros nacionais buscam reconhecimento no Exterior.

*26/06/2006

sábado, dezembro 29, 2012
 
HAN HON HEN HÄN HENOM


O século XIX foi generoso em sandices, entre elas o marxismo, a psicanálise e a identidade de sexos. Verdade que estes três movimentos só vão consolidar-se no XX. No caso da identidade de sexos, a grande difusora da idéia foi Simone de Beauvoir. Se formos atribuir a alguém a frase mais idiota do século, a láurea vai sem dúvida alguma para Castor, como a chamava Sartre: “uma mulher não nasce mulher; torna-se mulher”. De uma penada, Simone abolia as diferenças constitutivas de macho e fêmea.

A frasezinha infeliz está em Le Deuxième Sexe (1949), ensaio que, apesar de atropelar todas as evidências, fez fortuna no mundo todo na segunda metade do século. Paris dixit! Amém.

Sem citar la Beauvoir, em Heterodoxia, ensaio de 1953, que tive a honra de traduzir, Ernesto Sábato comenta este colossal disparate:

O candoroso século XIX não só culminou na idéia de que o homem que viajava em trem era moralmente superior ao homem que andava a cavalo: culminou na doutrina mais inesperada de todos os tempos, a idéia da identidade dos sexos.

Não houvesse outras provas da frivolidade deste século, bastaria esta para condená-lo. Do ponto de vista desses otimistas, a diferença entre o útero e o falo era algo assim como ranço dos Tempos Obscuros, destinado a desaparecer com a diligência e o analfabetismo. Felizmente, este estranho vaticínio não se cumpriu, como tantos outros daqueles profetas da Locomotiva.

(...) A maior parte das mulheres, principalmente as de alguma cultura - não há nada mais perigoso que alguma coisa de cultura -, se deixam arrastar por esta teoria, sem compreender que ela pouco favor lhes faz e além disso as coloca em um terreno desfavorável: como se um submarino, incomodado pelo prestígio da aviação, pretendesse ser tão bom como um avião... no ar.

Até parece ser um mefistofélico subterfúgio inventado por algum inimigo da mulher para colocá-la em uma situação ridícula. Com razão, Gina Lombroso põe em guarda seus congêneres contra esta tortuosa doutrina: "é inútil negá-lo, a mulher não é igual ao homem. Busquem qualquer testemunho da literatura antiga ou moderna - um romance, um poema, um mito - e tratem de masculinizar suas heroínas. Imaginem por um instante as mulheres do Antigo e Novo Testamento: Rebeca, Noemi, Rute, Maria Madalena, convertidas em homens. Incluam nesta imaginária metamorfose Helena, Hécuba, Electra, ou simplesmente a Eugênia de Balzac, a Rebeca de Walter Scott, a Dorrit de Dickens, e digam em sã consciência se as figuras resultantes de semelhante operação não são ridículas ou monstruosas".


De mãos amigas, recebo artigo do jornalista americano Thaddeus Baklinski, sobre a última trouvaille dos suecos. Em Estocolmo, a pré-escola proíbe que crianças sejam tratadas como meninos e meninas. Em conformidade com um currículo escolar nacional que busca combater a "estereotipação" dos papéis sexuais, uma pré-escola do distrito de Södermalm, da cidade de Estocolmo, incorporou uma pedagogia sexualmente neutra que elimina completamente todas as referências ao sexo masculino e feminino. Os professores e funcionários da pré-escola Egalia evitam usar palavras como "ele" ou "ela" e em vez disso se dirigem aos mais de 30 meninos e meninas, de idades variando entre 1 e 6 anos, como "amigos".

O han e o hon (ele e ela), foram trocados pelo pronome neutro hen, palavra que não existe nos dicionários. Mas tampouco é nova. Foi proposta por Hans Karlgren em 1994. Mas já havia sido aventada por Rolf Dunas, no Upsala Nya Tidning, em 1966. Nesta proposta, hen era apresentado como substituição a han e hon e mais: henom substituiria henne/honom (dele/dela). A palavra parece ter sido inspirada no finlandês hän.

Acontece que ausência de gênero é uma característica do finês e não ideologia de feministas. Não se trata de eliminar todas as referências ao sexo masculino e feminino É que as palavras não são masculinas nem femininas. Tampouco existem artigos. Nos tempos verbais, não há futuro. O que deve exigir muita acrobacia dos políticos locais, pois não há como dizer, por exemplo, "eu farei isto ou aquilo". Mas isto já é outro assunto.

Segundo a diretora Lotta Rajalin, a escola contratou um "pedagogo de diversidade sexual" para ajudar os professores e funcionários a remover as referências masculinas e femininas na linguagem e conduta. Além disso, não há livros infantis tradicionais como Branca de Neve, Cinderela ou os contos de fadas clássicos, disse Rajalin. Em vez disso, as prateleiras têm livros que lidam com duplas homossexuais, mães solteiras, filhos adotados e obras sobre "maneiras modernas de brincar". Pelo jeito, a relação homem/mulher virou anomalia.

O sonho da Simone se realiza em Estocolmo. Mulher não nasce mulher, se torna mulher. Suponho que o corolário seja válido também para varões. A bem da verdade, a história é antiga. Em Gálatas, 3:28, Paulo já afirmava: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.

Pelo jeito, em seu ímpeto de estar à frente de sua época, os revolucionários Svenssons voltaram... ao século XIX.

terça-feira, dezembro 25, 2012
 
Perversões uspianas:
O DOUTORANDO CARECA *



O caso não é pessoal. Para que disto ninguém duvide, transcrevo o que escrevi em 2001: “Entre as muitas anomalias da universidade brasileira estão os mestrandos quarentões. Aquela iniciação à pesquisa, pela qual o candidato deveria optar tão logo terminasse o curso superior, é adiada para uma idade em que do acadêmico já se espera obra consolidada. Pior mesmo, só os doutorados de terceira idade. Marmanjos de cinqüenta e mais anos, em idade de aposentar-se, postulando um título que só vai servir para pendurar junto com as chuteiras. (...) Mestrado não é para carecas. Já um doutorando, este deveria defender sua tese no máximo aos trinta e poucos, para que sua experiência em pesquisa possa ser útil ao ensino e à sociedade. Que mais não seja, é patético ver um homem já maduro humilhando-se, ao tentar iniciar-se em metodologias que devia desde jovem dominar. Na universidade brasileira, o doutorado nem sempre é visto como início de uma carreira, mas como louro a coroar a calva do acadêmico quando este está prestes a usar pijamas. Quem paga tais vaidades senis? Como sempre, o contribuinte”.

Terça-feira passada, leio notícia na Folha de São Paulo sobre um senhor que concluiu mestrado aos 63 anos e doutorado aos 68. Doutorado para quê? Para aposentar-se? Ou para pendurar o diploma na parede para contemplação dos netos? Uma tese de doutorado deveria servir como instrumento de magistério futuro a um professor, não como troféu de caça. Se há nove anos eu já considerava uma anomalia um mestrando careca e considerava que um pesquisador deve doutorar-se aos trinta e poucos, eis que os jornais hoje me apresentam o doutorando careca, mais uma das tantas perversões da universidade brasileira. No caso, a USP.

Pode parecer comovente – como comovem essas vovós que terminam um curso de Direito aos 80 – um senhor em idade provecta submeter-se a uma banca que julgará sua produção intelectual. Banca esta composta naturalmente por professores mais jovens – aos 68 já estariam aposentados -, arrogantes como todos os PhDeuses, que submeterão o doutorando à ditadura do método e à humilhação da censura de um júri. Alessandro Barghini – o doutor em questão - era conhecido por seus colegas como um competente técnico, especialista em planejamento energético. Graduou-se em Ciências Políticas na Universidade de Roma em 1964. Aos 24 anos, portanto, idade adequada para uma graduação. Voltou à universidade com 60 anos e concluiu este ano sua tese de doutorado sobre a influência da luz artificial na vida silvestre.

Seu trabalho como especialista em planejamento energético o levou a diversos lugares do mundo. Motivado por observações de uma temporada de trabalho do Equador e nas ilhas Galápagos, descobriu a América. "Lá, eu trabalhava de dia na parte elétrica e, à noite, no tempo vago, eu observava aves e insetos. Havia uma ave que ficava esperando os insetos baterem na luminária e caírem para comê-los. Ela preferia ficar atrás das lâmpadas a vapor de mercúrio, que atraem mais insetos."

Não li a tese do novel doutor e posso estar cometendo injustiça. Mas não me parece que seja necessário ir até as Galápagos ou ao Equador para descobrir que luzes artificiais atraem insetos. Qualquer criança no campo ou nos centros urbanos está careca – falo agora metaforicamente – de saber disso. “Os ribeirinhos e os caboclos sabem que a luz atrai insetos", diz Barghini. Ora, nossos sambistas também sabiam. Canta Avelino Moreira:

Trocaste o meu samba
E a lua do morro
Pela luz da cidade
Segue o teu caminho Mariposa
Já que esta luz te embriaga
Mas nunca te esqueças Mariposa
Que toda a luz se apaga

Ou Adoniran Barbosa:

As mariposa quando chega o frio
Fica dando volta em volta da lâmpida pra se esquentar
Elas roda, roda, roda e dispois se senta
Em cima do prato da lâmpida pra descansar

Verdade que a linguagem não é lá muito acadêmica, nem os métodos destes observadores serão muito científicos. Claro que também sabiam que luz atrai mosquitos e muriçocas, mas mosquitos e muriçocas nada têm de poético e não é gentil compará-los à mulher amada. Mas decididamente não precisaram ir tão longe para descobrir o que está perto. Dr. Barghini descobriu indícios de que a iluminação artificial perto de áreas selvagens contribui para espalhar doenças como malária, mal de chagas e leishmaniose. Ora, se iluminação artificial atrai insetos que transmitem tais doenças, não é preciso ser nenhum Einstein para concluir que a iluminação artificial perto de áreas selvagens contribui para espalhar doenças como malária, mal de chagas e leishmaniose. O óbvio dispensa o aval de qualquer banca.

Não tenho preconceitos contra doutorandos idosos. Tenho pós-conceitos, o que é diferente. Se alguém quer investir cem mil dólares em si mesmo, para depois pendurar um diploma na parede - ou no currículo - tudo bem. O problema é quando o contribuinte, e particularmente o contribuinte de país pobre, entra com esse montante para satisfazer uma vaidade. Um dos grandes pesquisadores da história nacional, Hélio Silva, fez excelente trabalho de historiador sem jamais ter defendido tese. Diga-se de passagem, era proctologista de formação. Honestamente, não entendo alguém concluindo um doutorado em idade de aposentadoria.

* 23/04/2009

domingo, dezembro 23, 2012
 
MINHAS CORRUPÇÕES PREDILETAS



Leitores querem saber por que não escrevo sobre as grandes corrupções nacionais. Ora, isto está na primeira página de todos os jornais. A crônica é tão vasta que já existem extensas compilações on line, para orientar o leitor no organograma da corrupção. Prefiro falar sobre o que os jornais não trazem. Por exemplo, o Chico Buarque sendo traduzido na Coréia às custas do contribuinte. Não sei se o leitor notou, mas a dita grande imprensa não disse um pio sobre isto. O que sabemos vem da blogosfera.

Prefiro falar de corrupções mais sutis, quase imperceptíveis, mas corrupções. A imprensa denuncia com entusiasmo a corrupção no congresso, na política, nos tribunais. Não diz uma palavrinha sobre a corrupção no santo dos santos, a universidade. Corrupção esta mais difícil de ser detectada, já que em geral foi legalizada. Mordomias para encontros literários internacionais inúteis, concursos com cartas marcadas, endogamia universitária, tudo isto se tornou rotina no mundo acadêmico e não é visto como corrupção.

Tampouco se fala sobre a corrupção no mundo literário, que há muito se prostituiu. Jorge Amado, que passou boa parte de sua vida escrevendo a soldo de Moscou, está sendo homenageado nestes dias no país todo. Devo ter sido o único jornalista que o denuncia – e isto há décadas – como a prostituta-mor das letras tupiniquins.

Corrupção só existe quando em uma ponta está o Estado. Se o dono de meu boteco me cobra 50 reais por uma cerveja e eu pago com meu dinheiro, pode ter ocorrido um abuso, mas jamais corrupção. O dinheiro é meu e a ele dou a destinação que quiser, por estúpida que seja. Mas se um fornecedor de cervejas as vende por 50 reais ao governo, está caracterizada a corrupção. Porque governo não tem dinheiro. Governo paga com os meus, os teus, os nossos impostos. E obviamente alguém do governo vai levar algo nessa negociata.

Escritores, esses curiosos profissionais que querem transformar suas inefáveis dores-de-cotovelo em fonte de renda, adoram subsídios do Estado. Não falta quem pretenda a regulamentação da profissão. O que não seria de espantar, neste país onde até a profissão de benzedeira acaba de ser reconhecida no Paraná.

Em 2002, Mário Prata, medíocre cronista do Estadão, pedia a Fernando Henrique Cardoso o reconhecimento da profissão de escritor: "O que eu quero, meu presidente, é que antes de o senhor deixar o governo, me reconheça como escritor". Claro que não era apenas a oficialização de uma profissão que estava em jogo. Mas o financiamento público da guilda. Cabe observar como o cronista, subserviente, se habilita ao privilégio: “meu presidente”.

Esquecendo que existe um Congresso neste país, o cronista pedia ao presidente a elaboração de uma lei. Mais ainda. Citava a Inglaterra como exemplo de país onde o escritor é reconhecido. Lá, segundo o cronista, toda editora que publicar um livro, tinha que mandar um exemplar para cada biblioteca pública do país. "Claro que os 40 mil exemplares são comprados pelo governo. Quem ganha? Em primeiro lugar o público. Ganha a editora, ganha o escritor. Ganha o País. Ganha a profissão".

E quem perde? - seria de perguntar-se. A resposta é simples: como o governo não paga de seu bolso coisa alguma, perde o contribuinte, que com os impostos tem de sustentar autores até mesmo sem público. É o que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento: a indústria do texto. É uma indústria divina: você pode não ter nem um mísero leitor e vender 40 mil exemplares. O personagem mais venal que conheço é o escritor profissional. Ele segue os baixos instintos de sua clientela. O público quer medo? Ele oferece medo. O público quer lágrimas? Ele vende lágrimas. O público quer auto-ajuda? Ele a fornece. É preciso salvar o famoso leite das criancinhas.

No fundo, saudades da finada União Soviética, onde os escritores eram pagos pelo Estado comunista para louvar o Estado comunista. Seguidamente comento – e creio ser o único a comentar – o livro A Sombra do Kremlin, relato de viagem do jornalista gaúcho Orlando Loureiro, que viajou a Moscou em 1952, mais ou menos na mesma época que outro jornalista gaúcho, Josué Guimarães. Enquanto Josué, comunista de carteirinha, vê o paraíso na União Soviética em As Muralhas de Jericó, Loureiro vê uma rígida ditadura, que assume o controle de todo pensamento. Comentando a literatura na então gloriosa e triunfante URSS, escreve Loureiro:

- A União dos Escritores funciona como um Vaticano para a moderna literatura soviética. O julgamento das obras a serem lançadas obedece a um critério estreito e sectário de crítica literária. Esta função é exercida por um conselho reunido em assembléia, que discute os novos livros e sobre eles firma a opinião oficial da sociedade. A exegese não se restringe aos aspectos literários ou artísticos da obra julgada, senão que abrange com particular severidade seu conteúdo filosófico, que deve estar em harmonia absoluta com os conceitos de “realidade socialista” e guardar absoluta fidelidade aos princípios ideológicos da doutrina marxista. Se o livro apresentar méritos dentro do ponto de vista dessa moral convencionada, se resistir a esse teste de eliminatória, então passará por um rigoroso trabalho de equipe dentro dos órgãos técnicos da União, podendo vir a tornar-se num legítimo best-seller, com tiragens astronômicas de 2 a 3 milhões de exemplares. E o seu modesto e obscuro autor poderá ser um nouveau riche da literatura e será festejado e exaltado e terminará ganhando o cobiçado prêmio Stalin...

Foi o que aconteceu com a prostituta-mor das letras brasileiras. Em 1950, o ex-nazista e militante comunista Jorge Amado passou a residir no Castelo da União dos Escritores, em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreveu O Mundo da Paz, uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro foi publicado, recebeu em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias.

Não que hoje se peça profissão de fé marxista ou louvores a Stalin. No Brasil, para ter sucesso, o escritor hoje tem de aderir ao esquerdismo governamental. Não precisa louvar abertamente o PT. Mas se tiver dito uma única palavrinha contra, não é convidado nem para tertúlia nos salões literários de Não-me-toques. Você jamais ouvirá um Luís Fernando Verissimo, Mário Prata, Inácio de Loyola Brandão ou Cristóvão Tezza fazendo o mínimo reproche às corrupções do PT. Perderiam as recomendações oficiais como leituras escolares e acadêmicas... e uma considerável fatia de seus direitos de autor. O livro de Loureiro não mais existe, só pode ser encontrado em sebos. Os de Josué continuam nas livrarias. Et pour cause...

Escritor financiado pelo Estado é escritor que vendeu sua alma ao poder. É o que acontece quando literatura vira profissão. Alguns se rendem aos baixos instintos do grande público e fazem fortuna considerável. Uma minoria consegue exercer honestamente a literatura e manter a cabeça acima da linha d'água.

Uma imensa maioria, que não consegue ganhar a vida nem honesta nem desonestamente, apela à cornucópia mais ao alcance de suas mãos, o bolso do contribuinte. É o caso de Chico Buarque, o talentoso escritor cujo talento maior parece ser descolar financiamento para sua “obra” junto ao contribuinte. Mas Chico está longe de ser o único. Está cometendo algum crime? Nenhum, seus subsídios são perfeitamente legais. Mas por que cargas eu ou você temos de pagar pelas traduções e viagens a congressos internacionais de um escritor que se dá ao luxo de ter uma maison secondaire às margens do Sena?

Ainda há pouco, eu comentava o absurdo de o contribuinte financiar a tradução de Chico na Coréia. Leio agora que o programa de bolsas de tradução da Biblioteca Nacional vai apoiar mais autores best-sellers no Brasil. O Diário de um Mago, de Paulo Coelho, será lançado na China pela editora Thinkingdom Media Group. Já As Esganadas, de Jô Soares, estará nas livrarias francesas. Ora, Coelho tornou-se milionário graças a suas obras de auto-ajuda, já traduzidas em quase 60 idiomas. Jô, que deve ganhar salário milionário na televisão, tem seus livros entre os mais vendidos, graças ao fator Rede Globo. Será que estes senhores precisam enfiar a mão em nosso bolso para pagarem seus tradutores na China e na França?

É destas corrupções, perfeitamente legais, que prefiro falar. Porque delas ninguém fala. Em verdade, nem mesmo os leitores. Não há quem não chie contra a carga tributária imposta ao contribuinte no Brasil. Mas todos pagam sem chiar as mordomias destas prostitutas das Letras.

sexta-feira, dezembro 21, 2012
 
AUTOMÓVEL TEM DE SER IMPORTADO,
LITERATURA SÓ PODE SER NACIONAL *



Bruno Bolson Lauda me pergunta: “E se coubesse a ti fazer uma lista de leituras para crianças e adolescentes no ensino fundamental e médio, quais livros escolherias e em que ordem? Incluirias algum autor brasileiro?”

Claro que incluiria. Esta pergunta me foi feita há oito anos, por Lisa Sedrez, doutoranda gaúcha na universidade de Stanford, Califórnia. Queria saber quais seriam as minhas dez obras escolhidas - entre autores nacionais, bem entendido - que um jovem brasileiro deveria ter lido ao fim do seu segundo grau, de forma a entender a literatura brasileira. Me restrinjo a leituras para jovens. Não vou entrar na área de literatura infantil.

Eu começaria pelo Quixote. Continuaria com as Viagens de Gulliver. Mais Crime e Castigo. Depois, A Montanha Mágica. Mais contemporaneamente, 1984. Para não ficar só em ficções, eu ajuntaria Assim Falava Zaratustra. E aí surge um problema, pois não me desagradaria juntar mais alguns de Nietzsche, que poderiam ser o Anticristo ou O Crepúsculo dos Deuses. Mas deixemos estes de lado. Em matéria de História: A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, que nos mostra o mundo pagão, antes de ser contaminado pela peste cristã. E, para ter uma idéia de Ocidente, Um Estudo de História, do Toynbee.

Para manter firme a crença das gerações futuras no gênero humano, eu indicaria Fernão de Magalhães, do Stephan Zweig, e Schliemann, História de um Buscador de Ouro, do Emil Ludwig. E aqui já se foram os dez. Mas não me desagradaria ainda acrescentar O Julgamento de Sócrates, de I. F. Stone e alguns dos Diálogos de Platão, para contemplar o nascimento do pensamento ocidental.

Como esqueci de pôr um pouco de poesia em minha listinha, lá vai: José Hernández e Fernando Pessoa. Lidos estes autores, o estudante brasileiro estaria apto a fazer um juízo de valor da literatura brasileira. Só comparando se pode valorar. Depois deste confronto, se sobrar espaço para os Machados e Clarices da vida, até pode se pensar no assunto.

Ora, direis, de nacionais estes autores nada têm. Pois têm, digo eu. No momento em que uma literatura é traduzida ao brasileiro, ela passa a fazer parte do imaginário nacional. Quixotesco ou platônico são palavras que pertencem ao vernáculo, enquanto diadorinesco ou brascubano ainda não encontraram lugar em nossa língua. Machadiano existe, é verdade, mas é conceito exclusivamente literário. Muito antes de saber quem é Bentinho, temos uma idéia bastante precisa do que seja o Quixote. Muito antes de existir Machado, Cervantes já fazia parte de nosso acervo. E muito antes de Cervantes, Platão. Estes autores faziam parte da literatura brasileira, antes mesmo que literatura brasileira existisse. O Brasil não nasce na floresta. Nasce na Europa.

Me perguntou então a doutoranda gaúcha: "Quantos dos títulos que citaste podem ser lidos (e entendidos) pela massa dos adolescentes? Sem que eles cometam suicídio no segundo livro?"

Vou repetir aqui, sucintamente, o que respondi em 2002. Minha interlocutora subestimava os adolescentes. Exagerei no Toynbee, confesso. Ocorre que, ao citá-lo, eu não tinha em mente os dez volumes do ensaio original. Mas uma excelente síntese em 600 páginas, da Martins Fontes. Em papel A3, é verdade, mas o tamanho de um livro não deveria assustar um jovem. O ensaísta é claro, como deve ser todo bom escritor, nada dessas interpretações marxianas que exigem um glossário para serem entendidas. O mesmo diga-se de Fustel de Coulanges, que adoro ler no original. Tem uma frase enxuta e elegante, nada do francês confuso e quase gongórico dos autores contemporâneos.

Por outro lado, é mais fácil para um adolescente seguir a lógica límpida de Sócrates em Teeteto do que encontrar norte no mar enevoado de um Guimarães Rosa. Se uma pessoa já na adolescência sabe distinguir doxa e episteme, jamais será, quando adulta, presa fácil das falácias de padres, políticos, psicanalistas e demais vendedores de vento. Não era para os jovens que Sócrates falava? Seriam os jovens de Atenas mais atilados que os contemporâneos? Que mais não seja, O Julgamento de Sócrates nada tem de hermético e nos mostra uma tragédia muito mais grandiosa que a do judeu aquele, inculto e conformista, crucificado pelos judeus.

Lendo Swift, um adolescente tem uma visão mais lúcida da sociedade hodierna do que visitando os sociólogos e historiadores ideologizados dos dias atuais. As Viagens de Gulliver, obra tida erradamente como literatura infantil, é a mais fagedênica denúncia da estupidez humana e não pode faltar ao conhecimento de qualquer pessoa medianamente culta. Se os adolescentes de hoje tivessem lido 1984, saberiam que Big Brother não é exatamente uma câmera que vigia o dia-a-dia de pobres de espírito. O personagem de Orwell é muito mais. É a Stasi, é a KGB, é o Estado totalitário, é o mais perfeito retrato das tiranias comunistas do século passado, mas isto os senhores formadores de opinião preferem calar, pois remete a uma história recente, dolorosa e ainda não remida.

Há livros que você lê na adolescência. Inútil lê-los mais tarde. Nietzsche, por exemplo, deve ser lido antes dos vinte anos, quando o jovem ainda não perdeu seu potencial de sonho. Ler Nietzsche aos 50 é tão trágico como conhecer Paris aos 50: "meu Deus, como é que fui perder isso em minha juventude?"

Se alguém quer comprar um carro, prefere o importado. Quando queremos um bom vinho, buscamos vinho importado. Uísque, idem. Por que razões literatura tem de ser nacional? Por que eu, brasileiro, tenho de ler literatura brasileira? E seu eu fosse ugandês, teria de ler literatura ugandesa? Em que tábuas sagradas está escrito isso?

Nem só a Petrobras deve ser privatizada. A Livrobrás também. Abaixo o livro estatal!

* 25/03/2010

quinta-feira, dezembro 20, 2012
 
VAI! *


Viagens. Minha primeira foi de bicicleta, 60 quilômetros de areia e barro, de Upamaruty, distrito rural de Livramento, a Dom Pedrito. Certamente foi a mais significativa. Eu teria dez anos e não conhecia cidade. Em meu imaginário, fruto talvez de contos de fadas, as cidades seriam douradas e brilhantes. Pedalando, avancei pela estrada real e, por mais que aguçasse a vista, não conseguia ver nada de dourado nem brilhante. Fui penetrando aos poucos por seus arrabaldes poeirentos, entrei pelas ruas de paralelepípedos e só apoiei o pé no chão frente a igrejinha da praça. Então aquilo era cidade? Fosse como fosse, seria minha nova geografia. Meu universo rural já pertencia ao passado.

A segunda mais significativa foi de navio, no finado Eugenio C. Estava abandonando o Brasil e não fazia parte de meus projetos voltar. No salão Opala, encontrei uma francesa que voltava da Amazônia, fascinada. C'est magnifique, me repetia com olhar sonhador. Eu não conseguia entendê-la. Mas na Amazônia só há árvores, índios e bichos - objetei. C'est ça! - me respondeu. Ela, oriunda de um mundo milenar e cosmopolita, queria ver o que ficara à margem da civilização. Eu, que nascera naquelas margens, queria a civilização propriamente dita.

Brasileiro, de índios só quero distância. Com eles nada tenho a ganhar, culturalmente. Que antropólogos os adorem, entendo. Índio, hoje, é o ganha-pão da antropologia. A francesa, européia e cosmopolita, queria ver atraso e primitivismo. Eu, vizinho do atraso e primitivismo, queria ver o presente e o futuro.

Fui, vi e voltei. Como Chesterton, considero ser impossível conhecer uma catedral olhando-a apenas por dentro. Se você quiser conhecer seu país, saia logo de seu país. O homem só conhece comparando. Nutro profunda lástima por essa espécie de patriotas, que louva o Brasil sem jamais dele ter saído. Hoje, um de meus prazeres diletos é incitar amigos ao viajar e já consegui convencer alguns a fazer malas e enfrentar oceanos. Mas atenção. Há viajar e viajar. Excursão não é viagem. É uma bolha de seu próprio país que o envolve, e dela você não sai. (Há exceções, é claro. Você não pretenderá, por exemplo, enfrentar a China ou o Sahara sozinho). Viajar é largar-se na aventura, buscar geografias distantes, tentar entender e fazer-se entender em línguas esdrúxulas, perder-se por ruelas e tentar encontrar-se por mapa. Por tais razões, não vejo sentido algum em viajar por país em que todos falam nossa mesma língua, assistem à mesma novela nos mesmos horários e bebem as mesmas bebidas e comem as mesmas comidas que se bebem e comem em sua geografia nativa. Isto é: viajar pelo Brasil não é viajar. É mesmice. Claro que o Rio merece uma visita. Mas você não estará viajando. Apenas foi do quarto para a sala do mesmo apartamento.

Viajar, hoje, não mais é privilégio de milionários. Por pouco mais que o preço de um televisor de 29 polegadas você já está na Europa. Pelo preço de um carro de porte médio, você passa um mês na Espanha, Itália ou França. Uma casa na praia rende mais de uma volta ao mundo. Não estamos mais na época em que só os barões do café podiam permitir-se o estrangeiro. Nos anos 70, milhares de jovens sem maiores posses fizeram a Europa, eu entre eles. Muitos embarcaram literalmente sem nenhum vintém. Para pagar a passagem, trabalhavam em navios. Chegando lá, sempre havia algum restaurante onde se podia lavar pratos. Nem todos se deram bem e suicídios não faltaram. Mas coragem sobrava. Esta tradição de viajar sem um vintém é antiga e por ela optaram nomes ilustres, como Henry Miller e George Orwell. A luta de Miller para matar a fome de todos os dias está em seus Trópicos. A odisséia de Orwell está em Down and Out in Paris and London.

Mas se você acha melhor aplastar-se diante de uma televisão, tudo bem: fique em casa a ver novelas na telinha. Se preferir comprar um monte de lata para arriscar a vida nas estradas ou assaltos nas ruas, melhor ficar por aqui e irritar-se com o tráfego, com assaltantes e com as multas. Você pode também preferir uma casa para usar um mês ou dois durante o ano e renunciar ao vasto mundo. Falo de pessoas que apertam seu orçamento para conquistar estes mesquinhos sinais de status, mesquinhos mas indispensáveis à auto-estima de quem não tem personalidade. Quem tem tudo isto e folga econômica para viajar - e não são poucos - está excluído desta reflexão.

Bem entendido, nunca tive carro nem casa na praia. A cada vez que pensava em carro, juntava meus trocados e atravessava o oceano. Com um carro não se vai longe. A pé, o mundo não tem fronteiras. Usufrui também de bolsas e viagens patrocinadas por consulados. Bolsa também exige fazer opções. Ou você fica, segurando seu lugar no mercado. Ou parte, sem saber onde cair na volta. Quando voltar, seus colegas e amigos estarão empoleirados em altos cargos e dificilmente lhe darão colher de chá. Quem o mandou gozar o mundo enquanto eles mourejavam? Ocorre que o mundo é grande e a vida é breve. Além disso, não tem estepe.

Em meu dia-a-dia paulistano, tenho encontros esporádicos com pessoas de alto poder aquisitivo, para quem viajar é, no máximo, ir a praias no Nordeste. Constituem aquele tipo padrão que considera o Brasil o melhor país, sem nada conhecerem do mundo. Alguns, mais audazes, já foram a Cancun ou Orlando. Isto é, a locais exclusivamente turísticos, onde não existe o que se poderia chamar de nacional.

Se você é jovem, parta logo, antes que o mercado o escravize. Se é adulto, aproveite sua maturidade e vigor para explorar o planetinha. Está aposentado e se aproximando da velhice? Vá logo, antes que seja tarde. Kafka tem um apólogo, onde fala de casas onde se pode entrar a qualquer hora, encontrar ou não encontrar pessoas, ficar ou sair quando bem entender. Essas casas existem mundo afora. Nelas, milhares de pessoas o esperam, de bandeja na mão, prontas a recebê-lo com carinho e prestimosidade.

Ergue o traseiro desse sofá, leitor. Dá férias a teu medo do desconhecido. Esquece essa luta inglória por sempre mais dinheiro. E vai.

* 27/10/2003

quarta-feira, dezembro 19, 2012
 
CADÊ A PAPISA JOANA?


Comentei a história há uns oito anos. A cortesã mais famosa do Vaticano foi certamente Lucrécia Bórgia, amante do pai, o papa Alexandre VI, e também de seu irmão, o cardeal César Bórgia. Rodrigo de Bórgia, como se chamava o pontífice eleito em 1492, graças à compra dos votos dos cardeais, foi quem patrocinou o famoso baile das castanhas, em que sessenta prostitutas nuas dançaram para os cardeais no Vaticano. Foram jogadas castanhas ao chão, e as bailarinas tinham de apanhá-las. Mas não com as mãos, diga-se de passagem. Foram concedidos prêmios aos homens que copulassem com mais mulheres naquela noite memorável.

Se o leitor quiser uma abordagem ficcional sobre Alexandre VI, pode procurar nas locadoras o belíssimo filme Contos Imorais, de 1974, do cineasta polonês Walerian Borowczyk. Enquanto Savonarola queima na fogueira, por ter denunciado os hábitos libertinos do Vaticano, uma Lucrécia nua (interpretada pela radiante Florence Bellamy), espichada sobre um corrimão do Vaticano, atende ao mesmo tempo o papa e o cardeal, estes devidamente paramentados com as vestes eclesiásticas. Tudo muito sacro e solene.

Isso sem falar no papado de Sérgio III, que inaugurou o período chamado pelos historiadores de pornocracia, como também de "reinado das prostitutas". Mas o melhor da crônica é a história da papisa Joana. Segundo cronistas, no século IX uma mulher teria assumido a curul pontifícia, como sucessora do papa Leão IV, com o nome de João VIII. Originária da Alemanha, vestiu-se de homem e assumiu o nome de João da Inglaterra. Ficou na história como a papisa Joana. Em uma procissão da basílica de São Pedro até Latrão, acometido das dores do parto, o papa caiu do cavalo e fraturou o crânio, tendo morte imediata.

A partir daí, as eleições papais exigiram a verificação do sexo do candidato. Antes da sagração, o eleito era instalado numa cadeira furada, o estercorário. O camerlengo passava então a mão pelo buraco, para examinar os documentos. Em caso positivo, proferia as palavras rituais: habemus papam. Para a Igreja, tanto a papisa quanto o estercorário não passam de lenda, logo esta Igreja que considera como fato a virgindade de Maria e sua assunção aos céus. Si non è vero è ben trovato. Lenda ou fato, vale a imagem.

Falar nisso, está faltando um filme nas telas do Brasil. Ano passado, o cineasta alemão Sönke Wortmann filmou o romance histórico A Papisa Joana, de Donna Woolfolk Cross, publicado em 1996. O filme foi concluído em julho passado e entrou nas telas alemãs em outubro. Cá neste país, sempre apressado em lançar abacaxis politicamente corretos tipo Avatar, sequer se ouve falar do filme de Wortmann.

Para os leitores que quiserem mais informações, avanço alguns títulos. Devo ter mais em minha biblioteca, mas estes já dão uma boa idéia do assunto:

Histoire de l'inquisition au Moyen Âge, de Henry Charles Lea, Paris, Robert Lafont, 2004 - um clássico, o precursor de toda a literatura sobre a Inquisição. 1458 páginas. Recomendo vivamente.

Enciclopedia de los herejes y las herejías, de Leonard George, Barcelona, Ediciones Robinbook, 1998.

La véritable histoire des papes, Jean Mathieux-Rosay, Paris, Jacques Grancher, 1991.

La chair, le diable et le confesseur, de Guy Bechtel, Paris, Librairie Plon, 1994.

The Female Pope, por Rosemary & Darroll Pardoe, Wellingorough, Crucible, 1988. Tradução ao espanhol: El Papa mujer - El misterio de la Papisa Juana, Barcelona, Ediciones Martinez Roca, 1990.

La Papisa Juana, de Emmanuel Royidis, Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1973.

segunda-feira, dezembro 17, 2012
 
TABACARIA




Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chama, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!

Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando
. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

domingo, dezembro 16, 2012
 
CERVEJA COM PESSOA




A gente ouve coisas neste mundo. Estava eu em Dom Pedrito, quando um bom amigo, colega de ginásio, convidou-me para visitar seu campinho. Sua mulher havia herdado uma estância. Por campinho, lá naqueles pagos, entende-se algo como mil hectares de terra. Fui lá. Nos sentamos sob dois generosos plátanos e ficamos olhando para o vago dar-de-ombros das coxilhas. As sesmarias se estendiam até o horizonte, por todos os lados, e o campinho estava todo povoado de bois.

Evocamos nossos dias de adolescência, falei de minhas viagens. Foi quando ele, contemplando o gado que se perdia nas canhadas, suspirou com ar de saudoso:

- Meu sonho é conhecer Paris. Será que é muito caro?

A gente ouve coisas neste mundo. Nesta mesma Dom Pedrito, anos depois de ter deixado a cidade, conheci o Dr. Davi, como era chamado. Não era doutor nem judeu, mas um fazendeiro nordestino que resolvera montar seu campinho naquelas plagas. Tinha bom rebanho de gado, suponho que 500 ou 600 cabeças, isso sem falar nos ovinos. Era homem extremamente generoso. Quando fazia bons negócios, costumava distribuir dinheiro a quem encontrava na rua. Certa vez, em Porto Alegre, no Chalé da Praça XV, enfiou-me no bolso um pacote de dinheiro.

- Que é isso, Davi? A troco de quê?
- Ganhei um monte de dinheiro hoje. Fica com ele.
- Mas Davi, não estou precisando de dinheiro...
- Então repassa às tuas mulheres. Estou contente e quero fazer pessoas contentes.

Bom, se era para assistência social... Não reclamei e passei a redistribuí-lo a minhas amigas da noite.

O Dr. Davi me invejava. "Olhem esse menino. Ele vive batendo perna pelo mundo. Deve ser muito rico". Mal imaginava o generoso nordestino que eu vivia mais de susto que de dinheiro. Viajei muito, é verdade. Mas quase sempre na condição de estudante ou de jornalista de país de moeda fraca. Boa parte de minhas viagens eu as devo ao jornalismo. Outro tanto a bolsas. Isto é, não me custaram nada. Mas rico nunca fui. Eu tentava chamar o Davi à aventura.

- Vende uma dúzia de teus bois, Davi. Serei teu guia na Europa.

Nada feito. Pelo que me consta, o Dr. Davi nunca ousou nem mesmo ir a Montevidéu, ali do outro lado da Fronteira. Não era que fosse um mão-fechada, tanto que gostava de distribuir dinheiro. Acho que tinha medo do anecúmeno.

A gente ouve coisas neste mundo. Sem nenhuma sesmaria, sem nenhum rebanho de gado, amanhã devo estar tomando mais uma cerveja junto a este poeta. Depois da Brasileira do Chiado, mergulho na noite eterna do Ártico.

PS - Nos próximos dias, terei dificuldades para atualizar o blog. Quando puder, republicarei crônicas antigas.

sábado, dezembro 15, 2012
 
TODA HONRA E MUITOS EUROS
PARA O ASSASSINO RAONI



Ano passado, um leitor me enviou notícia sobre o cacique Raoni Metuktire, que recebeu o título de cidadão honorário de Paris. A capital da França, como salienta o redator, supondo que os leitores contemporâneos já não mais saibam que Paris é a capital da França. Raoni estava no país em campanha pela suspensão das obras da Usina de Belo Monte, no Rio Xingu (PA). A prefeitura de Paris informou que a escolha de Raoni foi feita baseada na atuação em defesa da Floresta Amazônica e dos povos indígenas do Brasil. Os franceses o consideram uma espécie de símbolo de luta pelos direitos humanos, pelo desenvolvimento sustentável e pela conservação da biodiversidade. Raoni é 12º cidadão honorário de Paris. Ao receber o título, Raoni usava trajes indígenas.

Raoni, se alguém não lembra, é aquele cacique que, nos anos 80, exibia orgulhosamente aos jornais a borduna com que matou onze peões de uma fazenda. Não só permaneceu impune, totalmente alheio à legislação brasileira, como foi recebido com honras de chefe de Estado na Europa. O papa João Paulo II, François Mitterrand e os reis da Espanha, entre outros, o receberam como líder indígena. Raoni, com seus belfos, se deu inclusive ao luxo de expor sua pintura em Paris. Um dos quadros do assassino atingiu US$ 1.600 em uma lista de preços que começava a partir de mil dólares. No final do ano passado, Raoni recebeu o título de Dr. Honoris Causa pela UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso). Enfim, isso de universidades homenagear assassinos está virando praxe acadêmica. Fidel Ruz Castro também é Dr. Honoris Causa pela UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina.

Mas, pelo jeito, estadista nenhum se informou sobre a vida pregressa do cacique. Enfim, nestas décadas em que estadistas apertam a mão e abraçam um Kadafi, matar onze peões não é currículo. Os europeus, que há muito acham que o Brasil está invadindo a Amazônia (ouvi este papo de minha professora de sueco, em 1971, em Estocolmo), estão sempre dispostos a apoiar qualquer celebridade que lute contra represas e estradas no Terceiro Mundo.

Leio nos jornais que Raoni continua enganando na Europa. Na quinta-feira passada, finalizou em Paris sua campanha “Amazônia em Risco” com uma boa notícia. Ele conseguiu arrecadar quase 18 mil euros - cerca de 48 mil reais -, para construir uma aldeia indígena na fronteira entre o Mato Grosso e o Pará. O local servirá como proteção da área onde vive a tribo caiapó que estaria ameaçada e tem sido alvo de conflitos intensos.

Detalhe: no começou de sua carreira como líder indígena, Raoni era txucarramãe. Por razões que fogem ao humano entendimento, de repente virou caiapó. A verdade é que nem a imprensa nacional lembra que o cacique matou onze homens indefesos e muito se orgulha. Só lembra quem tem essa mania detestável de consultar arquivos do passado.

Nas duas últimas semanas, o líder indígena encontrou o presidente François Hollande e com o presidente da Comissão Europeia, João Manuel Barroso, na França, além de se reunir com representantes de associações de defesa de meio ambiente na Suíça e na Holanda. Na pauta do cacique estavam a preservação da Floresta Amazônica, a proteção dos povos indígenas e a controversa construção da usina hidrelétrica de Belo Monte cujas obras foram iniciadas em junho de 2011.

Há alguns anos, vi uma reportagem no 60 Minutes sobre uma região da Índia que abrigava quarenta milhões de habitantes. O programa começava mostrando mulheres e crianças carregando em baldes, para próprio consumo, uma água preta e lamacenta. Outras juntavam esterco de vaca, usado como combustível. Havia um projeto de uma represa para abastecer de energia elétrica e água potável a região toda. Uma ONG vetou o projeto junto ao Banco Mundial, com a argumentação de que a represa ameaçava uma espécie qualquer de tigre. A represa gorou e quarenta milhões de pessoas continuaram a beber água podre e cozinhar com esterco de vaca.

A reportagem entrevistava em Nova York, em um elegante apartamento, a porta-voz da ONG que conseguiu sepultar a represa. Não sei se a moça percebeu a ironia, mas o repórter a filma enchendo um copo de límpida água de torneira. O repórter quer saber por que privar milhões de pessoas de água limpa. A moça dizia mais ou menos o seguinte (cito de memória): não queremos que aquelas populações adquiram os hábitos de consumo do Ocidente. É como se dissesse: esses hábitos do Ocidente são privilégios de ocidentais. Vocês aí, continuem catando esterco de vaca.

Nos dias em que vivi no Paraná, durante semanas foi vedete dos noticiários televisivos um pequeno pássaro, uma espécie de pardal, que estaria ameaçado de extinção. Chamava-se curiango-do-banhado e habitava nos arredores de Curitiba. Durante longos minutos, o bichinho era exibido em seus ângulos mais simpáticos, sempre com a mensagem: corre perigo de extinção. Ano seguinte, foi a vez de uma nova espécie de tapaculo, da família Rhinocryptidae, batizada com o nome popular de macuquinho-da-várzea. Também vivia nos arredores de Curitiba. Algumas semanas mais tarde se soube ao que vinham o curiango-do-banhado e o macuquinho-da-várzea. Para preservá-los, era preciso preservar seu habitat natural. E para preservar seu habitat natural, as tais de ONGs fizeram uma ferrenha campanha para impedir a construção de uma barragem que abasteceria a capital paranaense.

Os ativistas do Primeiro Mundo sempre apoiarão qualquer vivaldino – não importa quantos tenha assassinado – que defendem causas que impedem ou retardam o desenvolvimento do Terceiro Mundo. Imagine alguém exigindo a paralisação da construção de uma usina hidrelétrica na França, Alemanha ou Estados Unidos, logo nestes dias em que a energia nuclear vem sendo contestada. Seria tido como insano. Mas se a represa – ou usina – for no Brasil, é atentado ao meio-ambiente e aos “povos da floresta”, como agora se convencionou chamar os bugres.

Toda honra e toda glória – e também euros – ao assassino Raoni.

sexta-feira, dezembro 14, 2012
 
TODO PROFETA É FALSO


Me escreve Celso Hartmann:

Prezado Janer.

Tive a satisfação de receber email contendo a sua opinião e comentários a respeito das Igrejas Milagreiras.

O seu artigo traduz com fidelidade o que os olhos do Governo não querem ver ou talvez tenham a pretensão de usufruir de algum desses "milagres". Vejo com grande preocupação o que acontece com a exploração de pobres coitados que não enxergam à grande enganação a que são submetidas por falsos representantes de Jesus Cristo, que sem procuração Dele prometem operar curas e soluções financeiras de roldão.

Ao comentar em família sobre essa ATITUDE CRISTÃ e manifestado minha indignação, minha mulher diz que na própria Bíblia menciona a respeito da vinda de falsos pastores mas que eles sabem (???) que serão castigados e que não deveremos fazer qualquer julgamento prévio desses "Santos Pastores".

Mas não me conformo. Será que os nossos governantes continuam "sem ver, sem saber e sem ouvir" e os mais diversos "Grandes Milagres" seguirem acontecendo e Catedrais da Mentira sendo erguidas?

Gostaria que a sua voz não fosse somente a de poucos que enxergam essa barbaridade ou de muitos que se calam diante desse martírio a que estão sendo submetidas essas pessoas, muitas delas ludibriadas na mais boa fé.

Que a indenização de Lajeado se confirme e que seja ela o início da "Purificação Condenatória" em larga escala apesar de que a ignorância e a fraqueza mental continuarão a imperar em solo fértil para a atividade milionária desses Santos Aproveitadores da dor alheia!

Um "quebra-costelas"


Bom, meu caro Hartmann, acho que essa gente que se deixa esbulhar, simploriamente, no fundo bem que merece ser esbulhada. O pastor Valdemiro é um gênio das finanças. Quem imaginou um dia, nesta nossa sociedade capitalista, que meias sujas poderiam dar lucro? É preciso conhecer a fundo o ser humano para conceber tal mercadoria.

Mas não há falsos pastores na Bíblia, Hartmann. E sim falsos profetas. Jeremias, no Deuteronômio, previne:

Nos profetas de Samária bem vi eu insensatez; profetizavam da parte de Baal, e faziam errar o meu povo Israel. Mas nos profetas de Jerusalém vejo uma coisa horrenda: cometem adultérios, e andam com falsidade, e fortalecem as mãos dos malfeitores, de sorte que não se convertam da sua maldade; eles têm- se tornado para mim como Sodoma, e os moradores dela como Gomorra. Portanto assim diz o Senhor dos exércitos acerca dos profetas: Eis que lhes darei a comer losna, e lhes farei beber águas de fel; porque dos profetas de Jerusalém saiu a contaminação sobre toda a terra. Assim diz o Senhor dos exércitos: Não deis ouvidos às palavras dos profetas, que vos profetizam a vós, ensinando-vos vaidades; falam da visão do seu coração, não da boca do Senhor.

Mais adiante:

Portanto, eis que eu sou contra os profetas, diz o Senhor, que furtam as minhas palavras, cada um ao seu próximo. Eis que eu sou contra os que profetizam sonhos mentirosos, diz o Senhor, e os contam, e fazem errar o meu povo com as suas mentiras e com a sua vã jactância; pois eu não os enviei, nem lhes dei ordem; e eles não trazem proveito algum a este povo, diz o Senhor.

É Mateus quem usa a expressão pela primeira vez: Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.

Quem são os falsos profetas? São os que profetizam profecias contrárias ao Deus de Israel. Acontece que não há falsos profetas. Todos os profetas são falsos. Os redatores do Antigo Testamento descobriram um método singelo de profetizar. Anunciavam fatos futuros – em verdade já ocorridos – e datavam a profecia de antes destes fatos.

O profeta Aías é emblemático. Lemos no I Reis:

E sucedeu naquele tempo que, saindo Jeroboão de Jerusalém, o profeta Aías, o silonita, o encontrou no caminho; este se tinha vestido duma capa nova; e os dois estavam sós no campo. Então Aías pegou na capa nova que tinha sobre si, e a rasgou em doze pedaços. E disse a Jeroboão: Toma estes dez pedaços para ti, porque assim diz e Senhor Deus de Israel: Eis que rasgarei o reino da mão de Salomão, e a ti darei dez tribos. Ele, porém, terá uma tribo, por amor de Davi, meu servo, e com Jerusalém, que eu escolhi entre todas as tribos de Israel. (...) Todavia não tomarei da sua mão o reino todo; mas deixá-lo-ei governar por todos os dias da sua vida, por amor de Davi, meu servo, a quem escolhi, o qual guardou os meus mandamentos e os meus estatutos. Mas da mão de seu filho tomarei e reino e to darei a ti, isto é, as dez tribos. Todavia a seu filho darei uma tribo, para que Davi, meu servo, sempre tenha uma lâmpada diante de mim em Jerusalém, a cidade que escolhi para ali pôr o meu nome. Então te tomarei, e reinarás sobre tudo o que desejar a tua alma, e serás rei sobre Israel. E há de ser que, se ouvires tudo o que eu te ordenar, e andares polos meus caminhos, e fizeres o que é reto aos meus olhos, guardando os meus estatutos e os meus mandamentos, como o fez Davi, meu servo, eu serei contigo, e te edificarei uma casa firme, como o fiz para Davi, e te darei Israel. E por isso afligirei a descendência de Davi, todavia não para sempre.

Em Mentiras Fundamentais da Igreja Católica, escreve Pepe Rodríguez:

“Deixando de lado esta profecia ter sido escrita em Judá pelo deuteronomista (o profeta Jeremias) no século VII a.C., ou seja, quase três séculos depois de se ter produzido a cisão dos reinos (922 a. C.)que anuncia, e de na data da sua redação a dinastia davídica de Judá se achar em plena revitalização – circunstâncias que por si só justificam a exactidão da promessa de Javé - , repare-se como o texto é redigido de forma sinuosa, escudando-se sempre em condicionais (“se me obedeceres em tudo quanto te ordenar”) e em truques do mesmo gênero para evitar pronunciar-se de forma clara e contundente e não se expor, portanto, ao inevitável desmentido dos verdadeiros factos. A linguagem dos profetas bíblicos é semelhante às que utilizam os videntes urbanos actuais para surripiar uns tostões à sua clientela crédula”.

Como não havia bibliotecas nem jornais nem arquivos na época, não era fácil dectetar o embuste. Pelo jeito, o Cristo era um amador nas artes de profetizar, pois como profeta foi um desastre. Para Cristo, o apocalipse era eminente, ocorreria em sua própria geração. Através de Marcos, diz:

Porquanto, qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também dele se envergonhará o Filho do homem quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos. Disse-lhes mais: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que de modo nenhum provarão a morte até que vejam o reino de Deus já chegando com poder.

Ainda em Marcos, Cristo volta ao assunto:

Então verão vir o Filho do homem nas nuvens, com grande poder e glória. E logo enviará os seus anjos, e ajuntará os seus eleitos, desde os quatro ventos, desde a extremidade da terra até a extremidade do céu. Da figueira, pois, aprendei a parábola: Quando já o seu ramo se torna tenro e brota folhas, sabeis que está próximo o verão. Assim também vós, quando virdes sucederem essas coisas, sabei que ele está próximo, mesmo às portas. Em verdade vos digo que não passará esta geração, até que todas essas coisas aconteçam.

Cristo previu o fim dos tempos a muito curto prazo. Bom profeta é aquele que profetiza para um futuro distante. Acontece que as gerações iam morrendo e o fim dos tempos não chegava.

No II Pedro, tenta-se consertar a profecia desastrada do Cristo:

(...) mas os céus e a terra de agora, pela mesma palavra, têm sido guardados para o fogo, sendo reservados para o dia do juízo e da perdição dos homens ímpios. Mas vós, amados, não ignoreis uma coisa: que um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia.

Ah bom, então tá! Se mil anos é como um dia, então o Cristo não disse bobagem.

quinta-feira, dezembro 13, 2012
 
ORTOGRAFIA TAMBÉM É GENTE


Quem me acompanha, sabe que pessoa é um de meus poetas diletos. Encontrei-me com o poeta nos anos 70, naquela edição de 1969, Poesias Completas, que até hoje me acompanha. Apesar de ter morrido em 35, naqueles dias Pessoa era poeta de iniciados. Hoje, foi vulgarizado por Caetano Veloso e virou tema de teses (isto é, de bolsas de estudos), de acadêmicos que adoram pesquisar questões transcendentes, como o uso do pronome relativo em sua obra.

Em Paris, na biblioteca da Sorbonne Nouvelle, encontrei uma tese de Doctorat d’État, redigida por uma professora brasileira, em quatro volumes. Aposto que nem os membros da banca devem ter lido todo o catatau. No máximo, um volume e olhe lá. Uma tese de Doctorat d’État exige uns oito ou dez anos de pesquisa. A moça deve ter ganho, para redigi-la, mais do que Pessoa ganhou em toda sua vida.

Pessoa foi profanado, para desalento de seus fiéis. Era bem melhor quando conhecido de poucos. Hoje, caiu até no FaceBook, onde lhe atribuem até mesmo frases de auto-ajuda. Mas o poeta continua em pé, pelo menos para o aprecia independentemente de modismos universitários. De minha parte, acho que bastaria ter escrito A Tabacaria para ser considerado gênio.

As Poesias Completas, de Pessoa, mais o Martín Fierro, de Hernández, foram os dois livros que me mantiveram em pé, nos duros dias que passei na Suécia. Em pé, frente à janela de meu quarto, olhando as ruas hirtas de neve, eu repetia:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Pessoa se revela em um de seus ensaios, Heróstrato:

“A avassaladora produção literária tornará a seleção igualmente avassaladora, pela reação. A verdadeira produção abundante de livros bem escritos fará com que muitos livros antigos pareçam menos bons do que quando se destacam de um pano de fundo de nada. (...) A competição entre os mortos é mais terrível do que a competição entre os vivos; os mortos são mais numerosos”.

Aqui o homem já diz ao que vem. Quando afirmava que o gênio é o mais comum dos homens, tão comum a ponto de passar despercebido em sua época, obviamente falava de si mesmo. Hostil à celebridade, Pessoa morreu quase inédito e considerava ser editado uma ofensa à genialidade.

O poeta foi apropriado pela universidade. Mas preserva sua revolta primeva. Diz-se que o povo é quem faz a língua. Não é o que pensam os acadêmicos, que há muito se arvoraram de donos da língua. Nestes dias em que um intelectual irresponsável promoveu uma reforma inútil e incoerente da língua portuguesa, Pessoa mantém-se irredutível. Halison Lunardi, leitor atento, me envia o que pensa Pessoa das reformas ortográficas.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu veto manto régio, pelo qual é senhora e rainha.


(...)

O argumento da uniformização é uma coisa, a base em que uniformizar é outra. Sobre as vantagens da uniformização ortográfica estamos, creio, todos de acordo; não o estamos sobre a ortografia que haja de ser a uniforme.

Também não o estaremos, suponho, sobre a imposição da ortografia. Que, tomada certa ortografia por oficial, d'ela use o Estado nas suas publicações, não é mais que inevitável e justo. Sobre o que sejam, para este efeito, «publicações do Estado» haverá um pouco mais de dúvida. Os documentos oficiais, «Diários do Governo», etc. por certo que são publicações do Estado. Os livros de estudo primário — isto é, os por onde se aprenda a ler — usados nas escolas do Estado, também o serão. Que tem, porém, o Estado com os livros que se empregam nas escolas particulares? Que tem com os livros que servem, não para ensinar a ler, mas para ensinar coisas que neles se lêem?

A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito.

No Brasil a chamada reforma ortográfica não foi aceite, nem ainda hoje, depois de assente em acordo entre os governos português e brasileiro, é aceite. Quis-se impor uma coisa com que o Estado nada tem a um povo que a repugna.


Entre nós, o Estado impôs e ninguém ousou chiar. Imprensa e universidade poderiam ter reagido. Não reagiram. Português, Pessoa defendeu com gosto sua língua. O que talvez explique a relutância dos lusos em aceitar em acordo espúrio, imposto por iniciativa de um dicionarista.

Estou pensando em tomar uma cerveja, na próxima segunda-feira, ao lado de Pessoa, na Brasileira do Chiado. Mas até hoje, quinta-feira, ainda não sei se brindarei junto ao poeta.

quarta-feira, dezembro 12, 2012
 
AS COISAS DO MUNDO
E AS COISAS DA CIDADE



Me perguntava outro dia um leitor porque me preocupo tanto com o avanço do Islã na Europa, se afinal de contas vivo no Brasil. E aqui já se engana o leitor. Posso morar em São Paulo, mas não vivo exatamente no Brasil. Nesta era de comunicações, o homem vive não em uma cidade ou país, mas no mundo. A menos que insista em limitar-se à sua cidade.

A morte de uma princesa em Paris mexe mais com o imaginário nacional que a morte de qualquer presidente brasileiro. Bodas reais na Inglaterra preocupam mais uma faxineira do que a queda de um ministro no Brasil. A destruição de duas torres em Nova York gera mais discussão do que a onda de assassinatos em São Paulo. Imagine se terroristas beneméritos explodissem aqueles dois pires do Congresso Nacional. Após uma explosão coletiva de alegria, o assunto seria logo esquecido.

Estou falando do cidadão comum, daquele que pouca ou nenhuma informação tem. Em um nível mais elevado de instrução, estamos preocupados com o cinema ou a literatura que se faz na Europa ou Estados Unidos, trate-se de best-sellers ou de bom cinema ou boa literatura. Toda inovação em matéria de leis ou costumes – casamentos homossexuais, eutanásia, ecologia – surgem primeiro lá, naquilo que chamamos de Primeiro Mundo, e só depois repercutem chez nous.

Quanto ao que acontece no Brasil, salvo futebol ou carnaval, de modo geral passa despercebido no planetinha. O Brasil não gera leis inovadoras, não gera comportamentos, não gera grande ciência nem grande arte. Se você quiser saber o que acontece na época em que vive, tem de olhar não para seu país, mas para o Exterior. Claro que não para a África.

Por estas e outras razões, sempre me preocupa mais o que acontece lá fora. O Islã, por exemplo. Desde há muito é uma religião em expansão, está transformando a Europa e já começa a incomodar no Brasil. Morto o comunismo, os muçulmanos são hoje a ameaça maior à liberdade no Ocidente. Se você quer saber como é o mundo em que vive, não pode ignorar Maomé. Como antes não podia ignorar Marx, alemão que nasceu em Trier, na Alemanha, e morreu em Londres, mas cuja influência percorreu todo século passado.

Há quem estranhe que eu, ateu, estude teologia e história do cristianismo. Nada de espantar. Tento entender o Ocidente. E Ocidente não se entende sem cristianismo. Em São Paulo, sem ser judeu passei a estudar o judaísmo. Para entender meu bairro. Sem ser marxista, li muito sobre comunismo e países comunistas. Para entender meu século. Atualmente, tenho lido sobre o Islã e países muçulmanos.

Comentava eu há pouco a adoração de Oscar Niemeyer por um russo aparentemente distante, que nasceu pequena cidade de Gori, na Geórgia, mas cujo pensamento até hoje orienta intelectuais do mundo todo, quando um conterrâneo me alertou: temos de pensar nas coisas que dizem respeito a Dom Pedrito. Como se Stalin nada tivesse a ver com Dom Pedrito.

A rigor, os pedritenses nada têm a ver com Israel, não é verdade? No entanto, um episódio ocorrido em Jerusalém, há pouco mais de dois mil anos, até hoje norteia a vida da cidade. Em meus dias de adolescente, duas cidades longínquas disputavam a cabeça dos pedritenses: Roma e Moscou. De um lado, a Igreja Católica, sempre dominante. De outro lado, o PC, então emergente. A eterna luta entre Don Camilo e o camarada Peppone, tão bem traduzida por Giovanni Guareschi. Talvez as gerações contemporâneas desconheçam este escritor italiano, mas foi talvez quem melhor descreveu o combate entre duas igrejas, poderosas e ciumentas, pelo cérebro dos habitantes do século passado. Ali, em minha cidade, germinou a peste que, dez décadas depois, gerou outra peste que iria empestar o país, o PT.

Nas pequenas cidades do país todo sempre havia uma igreja católica, um destacamento militar e uma célula do PC. Aliás, o PC brasileiro, tido como nascido em 1922, em São Paulo, na verdade surgiu em Livramento, minha cidade natal, a uma centena de quilômetros de Dom Pedrito. Em 1918, quatro anos antes da célula paulistana. Em 17 os revolucionários tomaram o Palácio de Inverno em São Petersburgo e no ano seguinte, a Idéia – como se dizia então – já estava instalada na Fronteira Oeste gaúcha. Moscou e Roma, a rigor, parecem nada ter a ver com Dom Pedrito ou Livramento. Mas mexeram mais com a cabeça dos pedritenses e santanenses do que qualquer intelectual gaúcho ou brasileiro.

Pensar nas coisas que dizem respeito a Dom Pedrito não é apenas pensar no escoamento das safras de lã ou arroz, no asfaltamento da cidade ou na contenção do Santa Maria. Muito antes deste nosso mundo computadorizado, correntes de pensamento cujo epicentro ficava a dezenas de milhares de quilômetros da cidade já estavam fazendo a cabeça dos gaúchos. Dos gaúchos e do mundo todo. As grandes filosofias e ideologias não nascem nas pequenas cidades, mas em centros culturais relevantes.

Cristo, por exemplo. Fosse crucificado em Nazaré, sua terra natal, talvez nem fosse lembrado pelo Ocidente. Mas foi morto em Jerusalém, uma das mais prestigiosas capitais do início da era cristã. Mais ainda, Cristo pouco ou nada tem a ver com o cristianismo. Cristo nasceu judeu e morreu judeu. No que dele dependesse, a nova seita sequer teria atravessado o Jordão.

Cristo tinha feeling e procurou a cidade grande. Nazaré era aldeia era desprovida de qualquer prestígio. Tanto que, em João 1:46, Natanael pergunta: "Pode haver coisa bem vinda de Nazaré?" Daí a insistência dos textos bíblicos para afirmar seu nascimento em Belém, inverdade até hoje defendida pela Igreja de Roma.

Cristo nunca foi cristão. Era judeu. Em sua época, não existia nada que se pudesse chamar cristianismo. A palavra cristianismo nem existe na Bíblia. Encontramos, isto sim, a palavra "cristãos". Mas apenas nos Atos, II, 25, bem depois da morte de Cristo:

Partiu, pois, Barnabé para Tarso, em busca de Saulo; e tendo-o achado, o levou para Antioquia. E durante um ano inteiro reuniram-se naquela igreja e instruíram muita gente; e em Antioquia os discípulos pela primeira vez foram chamados cristãos.

O cristianismo existe graças a um outro homem, Paulo, de Tarso, na Cilícia, província romana no actual território da Turquia e da Síria. Poliglota, cosmopolita e viajante, Paulo perambulou pelos países mediterrâneos difundindo a nova doutrina. Há até mesmo quem proponha que esta nova doutrina deveria se chamar paulismo.

Com Constantino, o cristianismo torna-se religião oficial do império romano e se expande. Chega ao Brasil com os descobridores. E já está presente quando Dom Pedrito ou qualquer outra cidade brasileira nascem.

Nenhuma cidade é uma ilha. Cidade alguma pode ser pensada apenas dentro de seus limites. A torre Eiffel ou o Big Ben dominam mais o imaginário pedritense que o obelisco do Ponche Verde.

Dom Pedrito – com perdão pelo óbvio – não gera pensamento. Não se ofendam os pedritenses: nem o Brasil gera pensamento. Estamos sempre a reboque da Europa ou Estados Unidos. Imagine um brasileirinho afirmando: “penso, logo existo”. Seria tomado como doido varrido. “Amalucou. Pensa que existe só porque pensa”. Ponha isto na boca de um pensador francês e o homem passa a integrar a história da filosofia e as páginas das enciclopédias.

Não faltará quem objete: mas o Vaticano é uma pequena cidade, aliás bem menor que Dom Pedrito. De fato. Mas constitui o centro de um império e está situado em uma cidade cujo pensamento dominou – e ainda domina – o mundo. Tem filiais no mundo todo.

A situação geográfica de uma cidade importa até mais que seu tamanho. Toledo, por exemplo. Até hoje é pequena. Mas já foi capital da Espanha, confluência de três civilizações e teve uma escola de tradutores de grande prestígio, que desde o século XIII vinha promovendo o diálogo entre as culturas grega, árabe e judia com o mundo latino.

Ou Veneza, se quisermos. É uma ilhota. Mas foi por mais de um milênio capital da Sereníssima República de Veneza, cujo território, incluiu boa parte da Itália, bem como das ilhas do Adriático. A partir do século X, tornou-se potência comercial e comandou um império de influência mundial comandado pelos doges, os líderes da cidade.

Mas a grandeza destas cidades decorre justamente de pensar nas coisas do mundo e não nas coisas da cidade. Outras pequenas cidades tiveram relevância na história. Porque não se encerraram em si mesmas e sempre estiveram abertas ao mundo que as envolvia.

terça-feira, dezembro 11, 2012
 
UM NINHO DE TUCANOS
PAPISTAS ENRUSTIDOS



Sobre minha crônica “Instituto Millenium, uma farsa liberal”, escreve Anselmo Heidrich:

- Janer, quem te censurou não foi a Cristina Camargo? Pois, esta administradora, ou melhor, ex-administradora, se não me engano é filiada ao PSDB e trabalha no Observatório Político, um site que concentra blogs de diferentes níveis. A época, ela me censurou em um artigo que eu discutia o ambientalismo e justificou claramente por terem mantenedores que não gostariam da minha opinião... "Anselmo, eu não posso publicar isto", um artigo chamado Vendaval de Bobagens, que a Mécia acabou publicando. E, mesmo durante sua gestão, ela relaxou. Relaxou porque não regulava com rigor segundo sua proposta e porque, se o fizesse, acho que acabaria perdendo bons articulistas. Aliás... O IMIL está bem fraco, parece que anda exagerando na quantidade de nomes, alguns dos quais publicaram um, dois ou nenhum artigo ou só pequenas notas. Parece que alguns dos nomes estão lá só porque são notáveis, que ocupam cargos de alguma influência por aí, mas não têm verve literária nenhuma. Alguns nomes são bons, como o Rosenfield, mas há uma grande heterogeneidade e parece que o negócio lá é fazer volume.

Acho que o objetivo deles é outro...

Concordo contigo em um ponto, é censura sim e se querem levantar a bandeira do liberalismo não podem se furtar a certos temas. NO ENTANTO, o que muitos entendem por "liberalismo" restringe-se a uma visão estritamente economicista, mais Adam Smith que John Locke... E, claro, há leitores de todas as estirpes, analise o que diz Rhyan Fortuna, nos comentários do teu post p.ex., que censura é só quando o estado a impõe(!!): o que está por trás disto nunca é o foco no substantivo, a censura no caso, mas em um adjetivo que é "ser estatal", "ser pró mercado" ou algo assim. Para transitar nestes grupos tem que se conhecer suas premissas inconfessas. Se tu faz parte de alguma "igrejinha" vais ser bajulado, agora se tu diverge parcial ou totalmente, será tratado como "gente esquisita", como eu já fui por um desses teus missivistas aí.

Agora, o que eu penso: eles têm direito de censurar sim, mas deveriam ser coerentes com o nome das coisas, como o de seu instituto e a proposta para a qual se orientam. Por isso que eu sempre me furto a esses rigores conceituais denominativos, quando me enchem o saco me acusando de ser isto ou aquilo ou de não ser, digo apenas que sou um mezzo liberal e estamos conversados.


Salve, Anselmo!

Totalmente de acordo. O que eles não podem é se pretender defensores da liberdade de expressão e censurar temas que não agradam aos católicos. Sim, quem me censurou foi a Cristina Camargo. Quer dizer que ela já tem currículo como censora? Sempre achei que o Imil fosse uma página para prestigiar tucanos e, pelo que me dizes, parece que não me enganei. É dessa espécie de pássaros que não ousa bicar e tenta ficar bem com todo mundo. No fundo, em muito se parecem com o astrólogo. Aliás, a alegação do Rodrigo Constantino

“Se os próprios liberais ficarem se digladiando no canal sobre tais temas, pode-se perder o foco daquilo que hoje parece mais urgente no Brasil: a defesa do estado de direito, da democracia e do livre mercado”,

em pouco ou nada difere do alerta do Aiatolavo no MSM:

POLÊMICAS INTER-RELIGIOSAS, EM ESPECIAL ENTRE DIFERENTES DENOMINAÇÕES CRISTÃS, SÃO EXPRESSAMENTE PROIBIDAS NESTE SITE. COM TANTOS INIMIGOS RONDANDO, VAMOS FICAR TROCANDO TAPAS EM FAMÍLIA?

Continua o Anselmo:

- Como esse pessoal tem medo de discutir?! O Constantino agora diz isto, mas é porque quer defender aquela seara, pois no antigo orkut ou no facebook, já discutiu, divergiu e rompeu com a garotada liberal mais radical, seus pares do Liber, um projeto de partido.

O que estou vendo, Anselmo, é um monte de jovens desmiolados, órfãos do Kremlin, que querem formar grupos onde se sintam gregários. Uns seguem o Aiatolavo, outros o Constantino, outros o Verissimo, outros o tal de Mises. É preciso seguir alguém. Ninguém ousa pensar com a própria cabeça. Já fui expulso de várias comunidades, católicas ou não-católicas, por manter um pensamento independente. (Do MSM não fui expulso. Eu mesmo me retirei porque censuraram uma crônica minha).

Certa vez, eu estava discutindo na página do Percival Puggina, que não por acaso assina no MSM, e mostrei que tanto Tomás de Aquino como Santo Agostinho aceitavam o aborto. Nossa! Foi um deus-nos-acuda! “Expulsa esse cara. Bloqueia”. O Puggina, que se pretende defensor da democracia e da liberdade de imprensa, me detonou de sua página. Já fui expulso de uma página sobre Verissimo no Orkut, porque ousei mostrar certos errinhos históricos que o filho do Erico havia cometido. E por aí vai. A defesa dos coitados é eliminar qualquer crítica.

Me escreve André Amaro:

- Janer, sou leitor antigo de suas colunas, mas apenas agora resolvi entrar em contato com você.

Achei muito bom o seu debate com membros do Instituto Millenium. Como um liberal e ateu (definição um pouco simplista, mas tudo bem), acho muito grave essa mistura de liberalismo economico com conservadorismo religioso. Vejo isso como algo tão ruim quanto esses discursos de esquerda. Em alguns pontos é até mais perigoso (ou tão perigoso quanto), porque utiliza um discurso economicamente liberal mas no fundo tenta impor uma moral religiosa (MSM, Reinaldo Azevedo etc). O trabalho deles é facil, falar mal de esquerdista qualquer um fala. Porém na hora de argumentar eles começam com essa ladainha religiosa, ai já não consigo ler.

Esse discurso de que o Millenium é uma instituição privada e pode se negar a falar sobre certos assuntos é um absurdo, tendo em vista que o instituto deveria defender a liberdade. Parece que esse pessoal que discutiu com você não entende que a liberdade de expressão deveria estar incluída nisso. Querer fugir de temas polêmicos é uma piada.

Muitos dos meus amigos liberais se associam a esse tipo de pessoa ou instituto pois eles acreditam que o liberalismo economico esta acima de tudo, mas eu não consigo. Acredito que uma economia é fundamental, mas tão fundamental quanto liberdade de expressão etc. Acho que os gays devem ter os mesmos direitos, o aborto deveria ser legalizado em qualquer caso, sou a favor de celular troncos, eutanasia, legalização das drogas (quase todas) etc. Não consigo abdicar desses direitos em favor de uma liberdade somente econômica, com uma moral religiosa escondida (ou não tão escondida assim, como no caso do MSM).


Pois, André, antes que eu começasse a escrever, dona Cristina Camargo me advertiu que todos esses temas estavam proibidos. Os tucanos são uma esquerdinha temerosa de dizer não à Santa Madre. E o Instituto Millenium começa a dizer ao que vem: é um ninho de tucanos papistas que quer convencer jovens que se trata de uma instituição liberal.

Foi o mesmo que aconteceu com o Midiasemmascara. Anunciou-se como um site que pretendia desmascar a grande mídia, o que atraiu muita gente (eu, inclusive). E logo mostrou ao que vinha: a defesa de um catolicismo obscurantista liderada por um astrólogo que ninguém sabe do que vive.

Mas a palavra tucano já está virando palavrão. Outro dia, eu advertia um leitor sobre a desonestidade do recórter hidrófobo da Veja e ele me respondeu: sei disso, ele é tucano.