¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 31, 2012
 
SOBRE JUÍZES E ADVOGADOS


Nestes dias em que começa a ser julgado o mensalão, sempre é bom relembrar Swift e as Viagens de Gulliver. Ao viajar pelo País dos Cavalos, os Houyhnhnms, Gulliver explicava ao soberano daquele reinado o funcionamento da lei em sua pátria, a Inglaterra. O texto é de 1726. Ou de hoje, se quisermos.

Eu disse existir entre nós uma sociedade de homens educados desde a juventude na arte de provar, por meio de palavras multiplicadas para esse fim, que o branco é preto e que o preto é branco, segundo eram pagos para dizer uma coisa ou outra.

Todo o resto do povo é escravo dessa sociedade. Por exemplo, se o meu vizinho tenciona ficar com a minha vaca, contrata um advogado para provar que deve tirar-se a vaca. Nesse caso, tenho de contratar outro advogado para defender os meus direitos, pois é contrário a todas as normas da lei permitir-se a um homem falar em seu próprio nome. Pois bem, nessas condições, eu, que sou o verdadeiro dono, me vejo a braços com duas grandes desvantagens: primeiro, o meu advogado, habituado quase desde o berço a defender a falsidade, está completamente fora de seu elemento quando precisa advogar a justiça, ofício não natural, em que sempre se empenha com grande inépcia, senão com má vontade. A segunda desvantagem reside em que o meu advogado tem de proceder com muita cautela, para que não o censurem e aborreçam os colegas, como a alguém que degradasse o exercício da profissão.

Donde nasce que tenho apenas dois métodos para conservar a minha vaca. O primeiro consiste em peitar o advogado de meu adversário, pagando-lhe honorários dobrados, e levando-o a trair o seu cliente, com uma insinuação de que a justiça pende para o seu lado. O segundo, em fazer o meu advogado crer que a minha causa pareça a mais injusta possível, admitindo que a vaca pertence a meu adversário e isto, se for feito com perícia,atrairá por certo o favor dos juízes.

Ora, Vossa Excelência deve saber que esses juízes são pessoas designadas para dirimir todas as controvérsias e, escolhidas entre os mais hábeis advogados, depois de velhos ou preguiçosos e, tendo o ânimo inclinado durante toda a existência contra a verdade e a equidade, vêem-se em tão fatal necessidade de favorecer a fraude, o perjúrio e a opressão, que eu soube haverem alguns recusado um pingue suborno da parte para a qual pendia a justiça, a fim de não prejudicar a corporação, fazendo uma coisa que não lhes condizia com a natureza nem o ofício.

É máxima entre esses advogados que tudo o que já foi feito pode legalmente fazer-se outra vez e têm, por conseguinte, o especial cuidado de registrar todas as decisões anteriormente tomadas contra a justiça ordinária e a razão comum dos homens. E apresentam-nos, sob o nome de precedentes, como autoridades que justificam as teorias mais iníquas; nunca deixando os juízes de decidir na conformidade delas.

Ao defender uma causa, evitam cuidadosamente entrar no mérito da questão; mas são estrondosos, violentos e enfadonhos no discorrer sobre todas as circunstâncias que não vêm ao caso. Por exemplo, no sobredito caso, não querem saber quais os direitos ou títulos que tem o meu adversário à minha vaca, mas se a dita vaca era vermelha ou preta, se tinha os chifres curtos ou compridos, se o campo em que eu a apascentava era redondo ou quadrado, se era ordenhada dentro ou fora de casas, a que doenças estava sujeita, e assim por diante; depois disso, consultam os precedentes, adiam a causa de tempos a tempos e chegam, dez, vinte ou trinta anos depois, a uma conclusão qualquer.

Importa observar também que essa sociedade tem uma algaravia ou geringonça especial que os outros mortais não entendem, e na qual são escritas todas suas leis, que eles tomam o especial cuidado de multiplicar, por onde conseguiram confundir de todo o ponto a própria essência da verdade e da falsidade, da razão e da sem razão; por maneira que são precisos trinta anos para decidir se o campo, que me legaram há seis gerações os meus antepassados, pertence a mim ou pertence a um estranho que mora a trezentas milhas de distância.

No julgamento das pessoas acusadas de crimes contra o Estado, é muito mais curto e louvável o processo; sonda o juiz, primeiro, a disposição dos que se encontram no poder; depois, não lhe é difícil enforcar ou salvar o criminoso, preservando rigorosamente as devidas formas da lei.

A essa altura, interrompendo-me, disse meu amo ser lástima que criaturas dotadas de tão prodigiosas habilidades de espírito, como haviam de ser, forçosamente, esses advogados pela descrição que eu fizera, não fossem antes estimulados a instruir os outros na discrição e no saber. Respondendo a isso, afiancei a Sua Excelência que em todos os pontos alheios ao seu ministério eram, de regra, entre a casta mais ignorante e mais estúpida; a mais desprezível na conversação ordinária, inimigas declarada de todo o saber e de todos os conhecimentos, e igualmente disposta a perverter a razão geral dos homens assim em outros assuntos como nos de sua profissão.

 
VÃO MAU AS LETRAS
JURÍDICAS DO PAÍS



A defesa de José Dirceu de Oliveira e Silva, personagem central do mensalão, vai sustentar na tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF) que "a história foi montada por Roberto Jefferson" e que o esquema de compra de apoio parlamentar "não existiu". É o que leio no Estadão de hoje. Interrogado como se sente sabendo que seu cliente é o principal réu do mensalão, responde José Luís Oliveira Lima, o advogado de José Dirceu:

- Tranquilo, pois não há nos autos nenhuma prova, nenhum documento, nenhum testemunho que incrimine o ex-ministro José Dirceu.
- Onde está o ponto fraco da acusação?
- Na inexistência do que uma parcela da imprensa chamou de mensalão. Não há nos autos, nos depoimentos que foram prestados - e foram mais de quinhentos depoimentos sempre com a presença do Ministério Público -, nenhuma testemunha que confirme as acusações levantadas pelo ex-deputado Roberto Jefferson. O Ministério Público, durante a instrução criminal, não comprovou nenhuma das acusações contra o meu cliente. E não comprovou não por incompetência ou inércia, mas sim porque meu cliente não cometeu nenhum crime.

No dia 6 de junho de 2005, o deputado Roberto Jefferson denunciou a existência do mensalão no Congresso. No dia seguinte, a denúncia é matéria de capa em todos os jornais diários do Brasil. No dia 14 do mesmo mês, em novo depoimento, desta vez ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, Roberto Jefferson diz a José Dirceu, chefe da Casa Civil, que saia do governo “rapidinho”. Dois dias depois, José Dirceu – o homem-forte do governo, o integrante do PT com maior influência sobre o presidente Lula – atende ao pedido do deputado e renuncia rapidinho.

Pergunta que se impõe: se não houve mensalão, porque o ministro renunciou rapidinho? Pobre homem, alijado de um cargo vital da nação por uma reles conspiração da mídia. Esta calúnia monstruosa, que afastou de um governo impoluto um de seus mais fiéis servidores, clama aos céus por justiça. O PT também.

A defesa dos petistas é patética. Soa como o dogma da virgindade de Maria. Credo quia absurdum. A virgindade da Maria colou ao longo dos séculos. Não seria de duvidar que a tese da inexistência do mensalão também vingasse.

- Teme que outros réus empurrem sobre José Dirceu toda a responsabilidade pelo mensalão? – pergunta o repórter.

Apesar de o capo di tutti capi ter pedido desculpas à nação pelo mensalão, a defesa de Dirceu está serena:

- De maneira alguma, pois esse fato (o mensalão) não ocorreu.

O mesmo não pensa Lula:

- Estou indignado pelas revelações que aparecem a cada dia, e que chocam o país. O PT foi criado justamente para fortalecer a ética na política e lutar ao lado do povo pobre e das camadas médias do nosso país. Eu não mudei e, tenho certeza, a mesma indignação que sinto é compartilhada pela grande maioria de todos aqueles que nos acompanharam nessa trajetória.

- Mas não é só. Esta é a indignação que qualquer cidadão honesto deve estar sentindo hoje diante da grave crise política. Se estivesse ao meu alcance, já teria identificado e punido exemplarmente os responsáveis por esta situação. Por ser o primeiro mandatário da nação, tenho o dever de zelar pelo estado de direito. O Brasil tem instituições democráticas sólidas. O Congresso está cumprindo com a sua parte, o Judiciário está cumprindo com a parte dele. Meu governo, com as ações da Polícia Federal, estão investigando a fundo todas as denúncias. Determinei, desde o início, que ninguém fosse poupado, pertença ao meu Partido ou não, seja aliado ou da oposição. Grande parte do que foi descoberto até agora veio das investigações da Policia Federal.

Oliveira Lima alega que nenhuma testemunha confirma as acusações. Não sei se o causídico notou, mas está colocando em dúvida a credibilidade do ex-chefe da nação. O que tanto faz como tanto fez. Lula, que pediu desculpas publicamente em 2005 pelo mensalão, também diz agora que o mensalão nunca existiu.

Mas não era disto que eu queria falar. E sim de artigo que li no órgão oficial do PT, a CartaCapital - revista que pretende provar a virgindade de Maria, digo, a inexistência do mensalão -, de autoria de Leonardo Massud, que se assina como advogado criminal, professor de Direito Penal da PUC-SP, mestre e doutorando pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, autor do livro "Da Pena e Sua Fixação: Finalidades, circunstâncias e apontamentos para o fim do mínimo legal".

Lá pelas tantas, o titulado causídico escreve: “Num Estado que se pretende democrático, só é possível punir mais gravemente alguém pelo que essa pessoa fez e não por aquilo que ela é. Assim, quando examinar uma circunstância que diga respeito ao autor, o juiz só poderia considerá-la se fosse para favorecer o réu, pois, do contrário, seria permitir a punição mais severamente por seu estilo de vida ou sua maneira de ser (mal vizinho, mal pagador, péssimo marido), sem relação com o que a lei quis proibir, ou seja, sem nexo com o crime”.

Falei há pouco sobre recente pesquisa segundo a qual apenas 35% das pessoas com ensino médio completo podem ser consideradas plenamente alfabetizadas e 38% dos brasileiros com formação superior têm nível insuficiente em leitura e escrita. É o que apontam os resultados do Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf) 2011-2012, pesquisa produzida pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM) e a organização não governamental Ação Educativa.

A situação é ainda mais grave do que se possa imaginar. Pois quando um advogado criminal, professor de Direito Penal da PUC-SP, mestre e doutorando pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra grafa “mal vizinho”, “mal pagador”, há muito o analfabetismo migrou do ensino superior para a pós-graduação.

Vão mau as letras jurídicas no país.

segunda-feira, julho 30, 2012
 
ONDE ME DESCOBRI TRADUTOR


A vida é uma caixinha de surpresas. Em meus dias de piá no Ponche Verde, jamais imaginaria que um dia seria tradutor. E muito menos que minha primeira tradução seria do sueco. (As traduções do francês e do espanhol viriam mais adiante). Aliás, naqueles dias, nem imaginava que a Suécia existia. E que iria me atrair poderosamente, a ponto de um outro dia, bem mais tarde, fazer minhas malas e ir morar no paraíso dos Sveas.

Só mesmo sendo jovem para fazer a loucura que fiz. Deixei em Madri, chorando, a mulher que adorava, e rumei ao norte. Ela, também chorando, rumava ao sul. Tenho certeza que hoje não teria forças para repetir tal insanidade. Eu conhecera Estocolmo há uns vinte dias. Caí lá em dezembro, em plena noite nórdica. Quatro horas da tarde, noite profunda. Me senti em Plutão e era em Plutão queria aterrissar. Eu fugia do Brasil e do Terceiro Mundo, do carnaval e do futebol, da miséria e do subdesenvolvimento. Henry Miller dizia que os verdadeiros problemas humanos só surgem depois de resolvidos os problemas do estômago. Queria conhecer aquela sociedade onde os problemas do estômago já haviam sido resolvidos.

Fui para não voltar. Estava irritado com o Brasil e desejoso de paraíso. Não que pretendesse abandonar a mulher que adorava. Pensava em levá-la para lá mais tarde, onde viveríamos juntos os verdadeiros problemas da condição humana. Mal cheguei, minha primeira providência foi encontrar um curso de sueco. Verdade que todo sueco fala inglês. Mas meu inglês era escasso. E eu queria falar a língua local.

Mas as razões que nos impelem a viajar nem sempre são as que alegamos como motivo de partida. Conscientemente, eu fugia de um continente militarizado, do Brasil, do samba e da miséria. As gaúchas recém começavam a libertar-se dos preconceitos de Roma, e eu tinha pressa. Sem falar que, na época, o mito sexual por excelência eram as "adoráveis louras nórdicas". Quando o sol cai por trás dos fiordes, dizia uma atriz, só nos resta ir para casa e fazer amor. É para lá que eu vou, pensou este ingênuo que vos escreve. Sim, ingênuo. Pois as suecas eram bem mais inacessíveis do que insinuavam os pacotes turísticos. Tanto que minha primeira "sueca", de sueca nada tinha. Era uma brava cidadã soviética, de Ashkhabad, no Turquimenistão.

Tinha pômulos asiáticos e deles muito se orgulhava. Como língua comum tínhamos o sueco, do qual conhecíamos umas dez palavras. "Jag, vacker" - me confessava Gysel, indicando seu rosto. "Eu, bonita". Acontece que eu partira em busca das louras vikings. "Du vacker i Ashkhabad", respondi. "Tu bonita em Ashkhabad". "Jag, mycket exotisk", insistia a camarada. "Eu, muito exótica". Em suma, acabei partilhando do gosto dos Sveas - que assim se chama aquela tribo que erigiu a Suécia - pelos rostos orientais. Gysel casou-se com um sueco. Não que lhe agradassem os branquelas do Norte. Ocorre que faria qualquer sacrifício para jamais voltar a seu universo soviético.

A adorável loura nórdica surgiu bem mais tarde, afinal elas não dão em cachos à beira da estrada, como imaginam os latinos. Encontrei-a em uma festa, num daqueles verões em que o sol jamais se põe e os suecos correm desvairados pelos florestas. A noite não caía, o dia não amanhecia e o vinho jamais findava. Olhando de hoje, vejo tudo como sonho. Naquela noite, corri nu atrás de uma sueca nua, numa noite branca como o dia, pelos bosques dos hiperbóreos. Deve ter sido sonho mesmo.

Se bem me lembro, naquela noite que não era noite, ensinei os nórdicos a dançar samba, logo eu que detesto samba, o que deve dar uma vaga idéia de meu estado etílico. Summa av kardemuma, como dizem os suecos: acabamos coincidindo na mesma cama. Amor? Nada disso, era puro porre. Em todo caso, daquela coincidência - como direi? - quase geográfica, resultou uma cálida amizade que embalou meus dias junto ao Ártico. Lena, a quem eu chamava de Lena Lena – lena significa doce em sueco – iniciou-me nos melhores autores suecos, e a ela devo minha descoberta de Karin Boye e a tradução de Kallocain ao brasileiro.

Desta estada, resultou um livro sobre a Suécia, O Paraíso Sexual Democrata – o primeiro a ser escrito por um jornalista brasileiro - e mais duas traduções de autores suecos, inéditos no Brasil. Pelo que sei, sou o primeiro tradutor no Brasil a traduzir diretamente do sueco. Traduções anteriores de Pär Lagerkvist e Selma Lagerlöff foram feitas a partir do inglês.

Há viagens e viagens. Conheço não pouca gente que gosta de conhecer culturas primitivas, bugres em estado selvagem. São em geral pessoas que vivem em países civilizados, ou que imitam as que vivem em países civilizados. De minha parte, prefiro a civilização. Não vejo maior encanto em tais viagens. Até já fiz uma. Em dezembro de 1975, estive no Saara argelino, mais precisamente em El Hoggar, onde vaguei por quinze dias pelo deserto, guiado por tuaregues e harratines.

Foi uma viagem fascinante, devo confessar. Nas noites ao relento nas montanhas, tomei um porre de estrelas e quase fiquei surdo com o zumbido estridente do silêncio. Ouvir os tuaregues contando histórias em torno à fogueira, em meio a uma noite gélida, é também algo que não se esquece. Diria que as viagens que mais me encantaram foram esta e mais duas navegando pelos fiordes noruegueses. Mas do Assekrem só me restaram o silêncio das noites geladas, os vultos embuçados dos tuaregues e as silhuetas das montanhas. Nada trouxe da cultura tuaregue, muito menos de sua língua, o tamahak, que já nem a falam.

Quando viajamos à civilização, o legado é outro. Da Suécia, junto com as paisagens nevadas e as noites brancas, trouxe uma língua, trouxe uma cultura distinta, mais um pouco da literatura dos Sveas. Lá, me descobri como escritor. Eu havia lido pelo menos uns quinze livros sobre o país antes de partir. Mal comecei a juntar palavra com palavra com palavra, fui descobrindo um país que não me fora mostrado pelos autores que havia lido.

São estranhos os fatores que nos levam para lá ou para cá. Meus desejos de deserto começaram lá perto do Círculo Polar Ártico. Em um exercício de vocabulário de uma aula de sueco, soube que tinha como colega uma författarina. Isto é, uma escritora. Era uma suissesse elegante e charmosa, e chamava-se Federica de Cesco. (Em 2008, saiu um filme sobre sua vida, Der rote Seidenschal). Quantos livros havia escrito? Ah - me respondeu com certo enfado - mais de cinqüenta.

Fiquei com um pé atrás. Era bastante jovem, mais de cinqüenta livros me parecia um exagero. Nunca havia visto uma författarina de perto, muito menos uma que tivesse escrito meia centena de livros. Passei no apartamento dela. Em uns dois metros de estante, ela tinha algumas das traduções de alguns de seus cinqüenta livros. Meu ceticismo caiu por terra. Perguntei qual considerava o mais importante deles.

- Ah! Só escrevo best-sellers. Nada de importante. Mas gosto muito deste aqui.

Passou-me um livro sobre El Hoggar, o país dos homens azuis. Falava da geografia dos tuaregues e harratines que habitam o extremo sul da Argélia. Havia na obra um certo deslumbramento de europeu em visita ao Terceiro Mundo. Mesmo assim, o livro incitava à viagem. O que me espantou naquele momento foi encontrar alguém que vivia de escrever, escrevia muito e não dava importância alguma ao que escrevia. Estava em Estocolmo paga por sua editora, para criar uma novela ambientada em aeroportos internacionais. Federica me deixava pasmo. A ela devo minha opção pela escritura. Se esta moça - pensei com meus botões - escreveu mais de cinqüenta livros e acha que só escreve bobagens, vou escrever pelo menos um, que não considero bobagem. Assim surgiu O Paraíso Sexual Democrata.

Assim surgiu também o tradutor. Para preservar – e testar – meu sueco, mergulhei na tradução do livro. Brindo os leitores com a versão eletrônica de minha tradução de Kalocaína, editada pela ebooksbrasil, do infatigável difusor da boa literatura, o Teotonio Simões. O livro havia sido publicado em papel em 74, no Rio de Janeiro, pela Cia. Editora Americana. Mas a edição esgotou rapidamente e hoje a obra de Boye só pode ser encontrada em sebos, e olhe lá!

Um belo dia chegou o dia de adquirir juízo. Morei com um boliviano que me dizia: "Sos un boludo, che! En Brasil hay una mujer que te quiere. Que haces en esta tierra de hombres tristes?" Voltei.

Na tarde em que me despedi de Lena Lena em Arlanda, mais uma vez chorando, ela nem desconfiava que estava exportando Karin Boye para o Brasil. É um dos mais soberbos momentos da literatura universal. Mais adiante, reproduzirei um pequeno ensaio sobre Kalocaína. Por enquanto, o leitor pode encontrar o livro em HTML em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/kalocaina.html. Ou, em PDF, em http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/kalocaina.pdf

domingo, julho 29, 2012
 
RECORDAR É VIVER


Pronunciamento em rede nacional proferido em 12/08/2005 por Sua Excelência o presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, desculpando-se pelo mensalão. Obviamente não pronuncia a palavrinha. Assume a atitude dos cornudos, que jamais pronunciam o nome do cornificador. Hoje, Lula nega o mensalão. Confia na falta de memória dos brasileiros.


Companheiros, ministros e ministras,

Estou consciente da gravidade da crise política. Ela compromete todo o sistema partidário brasileiro. Em 1980, no início da redemocratização decidi criar um partido novo que viesse para mudar as práticas políticas, moralizá-las e tornar cada vez mais limpa a disputa eleitoral no nosso país.

Ajudei a criar esse partido e, vocês sabem, perdi três eleições presidenciais e ganhei a quarta, mantendo-me sempre fiel a esses ideais, tão fiel quanto sou hoje. Quero dizer a vocês, com toda a franqueza, eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento.

Estou indignado pelas revelações que aparecem a cada dia, e que chocam o país. O PT foi criado justamente para fortalecer a ética na política e lutar ao lado do povo pobre e das camadas médias do nosso país. Eu não mudei e, tenho certeza, a mesma indignação que sinto é compartilhada pela grande maioria de todos aqueles que nos acompanharam nessa trajetória.

Mas não é só. Esta é a indignação que qualquer cidadão honesto deve estar sentindo hoje diante da grave crise política. Se estivesse ao meu alcance, já teria identificado e punido exemplarmente os responsáveis por esta situação. Por ser o primeiro mandatário da nação, tenho o dever de zelar pelo estado de direito. O Brasil tem instituições democráticas sólidas. O Congresso está cumprindo com a sua parte, o Judiciário está cumprindo com a parte dele. Meu governo, com as ações da Polícia Federal, estão investigando a fundo todas as denúncias. Determinei, desde o início, que ninguém fosse poupado, pertença ao meu Partido ou não, seja aliado ou da oposição. Grande parte do que foi descoberto até agora veio das investigações da Policia Federal.

E vamos continuar assim até o fim, até que todos os culpados sejam responsabilizados e entregues à Justiça. Mesmo sem prejulgá-los, afastei imediatamente os que foram mencionados em possível desvio de conduta para facilitar todas as investigações. Mas isso só não basta. O Brasil precisa corrigir as distorções do seu sistema partidário eleitoral, fazendo urgentemente a tão sonhada reforma política. É necessário punir corruptos e corruptores, mas também tomar medidas drásticas para evitar que essa situação continue a se repetir no futuro.

Quero dizer aos Ministros que é obrigação do governo, da oposição, dos empresários, dos trabalhadores e de toda a sociedade brasileira não permitir que esta crise política possa trazer problema para a economia brasileira, para o crescimento deste país, para a geração de empregos e para a continuidade dos programas sociais. Temos que arregaçar as mangas e redobrar esforços. Peço que aumentem, ainda mais, a sua dedicação. Se atualmente vocês, ministros e ministras, trabalham até 11 h da noite, trabalhem um pouco mais, até meia noite, uma hora da manhã, porque nós sabemos que muito já fizemos, mas muito mais temos que fazer porque o Brasil precisa de nós.

Queria, neste final, dizer ao povo brasileiro que eu não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir desculpas. O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir desculpas, porque o povo brasileiro, que tem esperança, que acredita no Brasil e que sonha com um Brasil com economia forte, com crescimento econômico e distribuição de renda, não pode, em momento algum, estar satisfeito com a situação que o nosso país está vivendo.

Quero dizer a vocês: não percam a esperança. Eu sei que vocês estão indignados e eu, certamente, estou tão ou mais indignado do que qualquer brasileiro. E nós iremos conseguir fazer com que o Brasil consiga continuar andando para frente, marchando para o desenvolvimento, para o crescimento da riqueza e para a distribuição de renda. E eu tenho certeza que posso contar com o povo brasileiro.

Muito obrigado.

sábado, julho 28, 2012
 
PORQUE FIZ OS CURSOS QUE FIZ


Leitor quer saber se fiz curso de Filosofia e doutorado em Letras apenas para defender a tese de que os cursos de Filosofia e Letras são inúteis. Nada disso, meu caro. A conclusão é a posteriori. Antes de ter feito estes cursos, não tinha noção alguma de suas inutilidades. Ocorre que, quando jovens, ao escolhermos uma universidade, não temos noção alguma do que vamos encontrar. Até pode ser que alguém nascido em família de acadêmicos possa ter uma idéia do que o espera. Não era meu caso. Eu era filho de camponeses e jamais tive quem me orientasse.

Quando você escolhe Medicina, já se imagina uma espécie de Dr. Kildare, aliviando o sofrimento dos enfermos. Entra na profissão e cai na dura realidade do pagamento ínfimo dos convênios. Tem de desdobrar-se em dois ou três empregos para levar o pão para a casa. Pode até ter sucesso na carreira e muitos chegam lá. Mas isto não é para todos. Escolhe Direito e se imagina um bem sucedido defensor dos fracos e oprimidos, usando sua tribuna para fazer justiça aos que dela necessitam. O Direito Penal sempre atrai os jovens idealistas. Quando você vai ver, se transformou em um burocrata encerrado em um escritório, analisando questões do Direito Tributário. Isso quando você não acaba dirigindo um táxi.

Em minha adolescência, li um livro de Will Durant, onde ele listava um mínimo de autores que um homem culto deveria conhecer. Começava com Platão e Aristóteles, passava por Agostinho e Tomás de Aquino, incluía Descartes, Rousseau, Montesquieu e por aí vai. Fui atrás desses autores todos. Eu vivia então em Dom Pedrito, onde havia apenas uma pequena livraria, que só tinha livros didáticos. Ainda pivete (teria uns quinze anos) viajei a Santa Maria, cidade universitária, onde havia uma sucursal da livraria Globo. Pedi para o balconista ir baixando os livros de minha listinha. Tive sorte. A editora Globo, nos anos 50 e 60, montou uma excelente coleção, a "Biblioteca dos Séculos", que continha boa parte dos livros fundamentais para um homem que se pretenda culto.

O que eu não sabia é que a Suma Teológica tinha dez volumes. Ainda bem que naquela época ainda não fora traduzida. Hoje tenho os dez volumes, em português e latim, quando quero rir um pouco volto à leitura do Boi Mudo. Não li todos os livros sugeridos por Durant, mas li muitos deles. Se hoje considero que nem todos eram fundamentais, foi bom lê-los para saber que não eram.

Daí meu apreço pela filosofia. Achei que se enveredasse por estes rumos, entenderia o homem e o mundo, em suma, a vida. Fiz vestibular também para direito. Primum vivere, deinde philosophare. Como considerava que a filosofia não me daria de comer, pensei em garantir-me com a advocacia.

Foi uma bela aventura intelectual começar com os gregos, socráticos e pré-socráticos. Os Diálogos de Platão me fascinaram, particularmente o Fédon e o Crátilo. Até hoje não esqueço – e seguidamente cito – as considerações do grego sobre as palavras. Crátilo considera que os nomes das coisas estão naturalmente relacionados com as coisas. As coisas nascem — ou são criadas, descobertas ou inventadas — e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. Já Hermógenes pensa que as palavras não são senão convenções estabelecidas pelos homens com o propósito de entender-se. As coisas aparecem ou se apresentam ao homem e este, defrontando-se com a coisa recém nascida, a batiza. O significado das coisas não é o manancial do bosque, mas o poço escavado pela mão do homem, diz Camilo José Cela, comentando Platão. O animal doméstico e familiar do qual há muitas espécies e todas ladram, poderia ter-se chamado lombriga, e o che muove il sole e l'altre stelle, de Dante, poderia chamar-se reumatismo, se assim os homens o quisessem.

No curso, fiz quatro anos de História da Filosofia. À medida que a filosofia avançava, tornava-se obscura e confusa, a ponto de confundir-se com a poesia. Foi quando perdi meu entusiasmo pela coisa. Abominei os filósofos contemporâneos. Terminei o curso por teimosia.

Quanto ao Direito, lá pelo segundo ano já tive consciência de que não conseguiria advogar. Teria de usar terno e gravata e usar linguagem de arcano. Teria também de atualizar-me o tempo todo, dada a fúria legislativa do Brasil. Sem falar que um advogado não pode afastar-me muito de seu escritório. E eu queria viajar. Optei então pelo jornalismo. Terminei o curso também por teimosia. Quando criticasse o Direito, não queria ouvir objeções tipo “ele critica o Direito porque não conseguiu concluir o curso”.

Quanto ao doutorado em Letras, como contei em crônica recente, nada tinha a ver com doutorado. Era uma chance de curtir Paris e eu queria curtir Paris. Se o preço a pagar era um ensaio de algumas centenas de páginas, eu o pagava com prazer.

Ou seja, não fiz Filosofia ou Letras só para concluir que estes cursos eram inúteis. Minha vida aventurosa me levou a estas opções. E por que são inúteis? Porque tanto Filosofia como Letras você pode estudar no conforto de sua casa, sem ter de ouvir aulas monocórdias nem ler livros inúteis. Em um curso acadêmico, você será obrigado a ler disciplinas e obras que não interessam. Em Letras, por exemplo, terá de fazer cadeiras de Teoria Literária e Lingüística, puro lixo intelectual que só serve para dar emprego a professores de Teoria Literária e Lingüística. Se optar pelo autodidatismo, você pode se dar ao luxo de ler apenas o que lhe traz prazer.

Tenho um amigo, o Carlos Freire do Amaral, que hoje fala cerca de cem línguas. Deve ter estudado regularmente umas dez. As outras, ele as aprendeu por conta própria. No aprendizado de línguas, o mais difícil são as primeiras quinze línguas. Depois, como diria Heráclito, panta rei. Tudo flui.

Considero um absurdo, por exemplo, cursos universitários de espanhol para brasileiros. Quatro anos para aprender uma língua que se aprende em seis meses. Sem precisar professor algum. Pegue livros e jornais em espanhol, ouça música para adquirir a pronúncia e consulte uma gramática para pegar algumas regrinhas. Em quatro anos, pode-se aprender muito bem quatro ou cinco línguas. Jamais fiz curso de espanhol e devo ter traduzido uns quinze livros do espanhol.

Um outro leitor acha que estou sendo muito utilitarista, afinal nem só de pão vive o homem. Quanto à última premissa, de acordo. Que as pessoas estudem o que lhes dá mais prazer, seja sânscrito ou grego, seja metafísica ou matemática profunda. O que afirmo é que muitas áreas do conhecimento dispensam universidade.

Admito até que alguém postule uma bolsa no estrangeiro para estudar coisas inúteis. Sempre voltará com um acervo útil: o conhecimento eficaz de uma outra língua e de uma outra cultura. Foi o que fiz. Minha tese é de utilidade ínfima, apenas esclarece um pouco uma obra literária. O mais importante foi conhecer Paris, França e Europa. E este é o legado mais importante de uma bolsa.

sexta-feira, julho 27, 2012
 
FÉ REMOVE MENSALÃO


Seguidamente, leitores me pedem opinião sobre candidatos. Ora, a vida me ensinou que é mais seguro opinar sobre o bóson de Higgs do que sobre um candidato. O sistema eleitoral brasileiro é falho, somos levados a votar em pessoas que desconhecemos. Voto distrital que é bom sempre é defendido pelos políticos, mas jamais aprovado. Políticos sabem, por instinto, que não é bom ser conhecido de perto.

Político, por definição, é um homem que mente. As regras do jogo o impelem necessariamente a mentir. O que importa é arrebanhar votos. Político diz o que cada platéia pede. E omite tudo o que cada platéia rejeita. Se não mente por intenção, mente por omissão. Se não mente hoje, mentirá amanhã. Políticos pertencem a partidos. Precisam seguir a política de seus partidos, mesmo que dela discordem. Se o partido decide fazer coligação com um canalha, o candidato tem de aderir ao canalha. Vimos isto recentemente, com todas as letras, o impoluto Lula abraçando o malvado Maluf, procurado em todos os países – menos no Brasil – pela Interpol. Vimos também seu delfim para a prefeitura paulistana, o tal de Haddad que quase ninguém conhece, tendo de engolir a ignomínia.

Faz mais de vinte anos que não voto. Meu último voto, confesso sem pejo algum, eu o dei a Collor. Não por seus belos olhos. Mas porque o outro candidato era Lula. Hoje, se ainda votasse, entre Lula e Maluf, votaria no “esforçado filho do imigrante árabe”, como já foi chamado. No que, suponho, não seria reprovado por nenhum petista. Afinal, Maluf hoje é unha e carne com Lula.

Há quem julgue que o PT tem origens operárias. Outro dia, encontrei na rua meu urologista predileto – aquele das leituras teológicas – e ele me perguntou:

- Sabias onde o PT foi fundado?

Sabia. Foi em um colégio de elite de meu bairro, o Sion. Onde estudou a aristocrática Marta Teresa Smith de Vasconcelos Suplicy. Meu urologista imaginava que fosse num sindicato do ABC, como muitos imaginam. PT nada tem a ver com trabalhador. Tem a palavrinha na sigla por devoção a um mito do século XIX, o de que a redenção da humanidade residiria na classe proletária. Nunca residiu. O século passado o demonstrou sobejamente.

Antes mesmo de o PT existir, eu denunciava o PT. Explico. O PT nasceu em 1980. Ora, desde 75, quando colunista da Folha da Manhã, em Porto Alegre, eu desfechava minhas baterias contra senhores como Marco Aurélio Garcia, Tarso Genro, Flávio Koutzii, Luiz Pilla Vares, os pais fundadores do partido no Rio Grande do Sul. Sem falar no que escrevi contra a ideologia que os alimentava. Contra o Tarso, o que escrevi daria uma pequena antologia. Que eram todos comunistas, até as pedras da Rua da Praia sabiam. Mas ai de quem dissesse que eram comunistas! Era um infame delator, um reles dedo-duro. Em pleno regime militar, ser comunista servia como escudo protetor.

Entendo que um adolescente, lá pelos anos 80, votasse no PT. Um jovem ainda não teve tempo de ler o necessário para visualizar o DNA do partido. O PT é filho de uma partouse entre a Igreja Católica e os diversos grupos comunistas e anarquistas que vicejavam no Brasil. Conseguiu consolidar-se uma década antes da queda do Muro. Tivesse surgido depois dos anos 90, não teria cacife para chegar ao poder.

Que pobres diabos que se beneficiam de esmolas estatais votem no PT, isto também entendo. O que não se entende é ver pessoas adultas e bem informadas, intelectuais, funcionários públicos e professores universitários votando em um partido que nasce obsoleto, em um candidato tosco e semi-analfabeto. Pior ainda, que ostenta como virtude sua falta de instrução. Verdade que desde fins do século XIX alimentou-se o mito da salvação pelo proletariado. Ora, os eleitores de hoje tiveram mais de um século para constatar que proletários não salvam ninguém.

O PT nasceu no Estado mais politizado do país, embalado pela USP e pela Igreja. Por essa mesma USP que foi a grande difusora do marxismo no Brasil e por essa mesma Igreja que o adotou através da sedizente Teologia da Libertação. A eleição de Lula, apoiada pelas elites intelectuais do país em pleno século XXI, significou que estas elites ainda vivem espiritualmente no século XIX.

Mesmo assim, certa vez dei meu voto ao PT. Não que vote em partidos. Nas raras vezes em que votei, votei em pessoas. Nos anos 70, havia em Porto Alegre um engraxate, uma dessas figuras que lê sem método algum, o que não era incomum naqueles anos. Imbuído de um marxismo vulgar misturado a certas idéias anarquistas, tinha uma cadeira na praça da Alfândega. Enquanto lustrava sapatos, discorria sobre o homem e o mundo. Resolveu candidatar-se a vereador. Pelo PT. Considerei que se sentiria melhor sentado em uma curul na Câmara Municipal do que engraxando ajoelhado ante sua cadeira na praça.

Votei nele. Foi eleito. Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza. O poder subiu-lhe à cabeça. Algumas semanas depois, já andava caçando empregadinhas na rua, em seu carro funcional. Morreu de forma infame o pobre diabo, esfaqueado em uma briga com um seu vizinho. Descobri então que, em se tratando de política, nem em engraxate se pode confiar.

Nos últimos anos, nutri simpatias por um deputado federal paranaense, eleito pelo PSDB. Em seus pronunciamentos, era sempre objetivo, correto, preciso, sem jamais apelar ao bla-bla-blá de políticos. Se um dia voltasse a votar, pensei, tenho um nome. Esse homem é honesto.

Era. Hoje está flertando com o PT. Nada como o tempo para ensinar. Ainda bem que havia tomado a decisão de não votar. Se houvesse votado neste senhor, hoje estaria envergonhado de ter sido enganado como uma criancinha depois de velho. Político, quando não faz na entrada, faz na saída.

Os franceses fazem uma distinção entre politique politique e politique politicienne. Por politique politique, entende-se a grande política, a administração da polis. Por politicienne, a pequena política, a politicagem. Ontem, zapeando no Facebook, encontrei uma conclamação a participar de política. Não da politique, mas da politicienne.

Alguém aventou: política é sinal de corrupção. A interlocutora que teclava do outro lado reagiu: “é esse o senso comum que a mídia com muita competência, faz as pessoas acreditarem, que nenhum político presta, daí os corruptos podem fazer o que lhes der na cabeça e os ignorantes políticos permitem isso com essa posição. Então indiretamente quem não se envolve em política também, é responsável por toda essa lama de corrupção que felizmente, não são todos os políticos que se envolvem não”.

Tomado de um espírito de porco que às vezes me acomete nas madrugadas, decidi divertir-me um pouco. Desconfiei que se tratava de mensagem de petista. Não deu outra. Militante se queixando da mídia, só podia ser petista. Mídia era bom quando denunciava as corrupções do Sarney, Collor, quando denunciava o plano real. Quando denuncia as corrupções do PT, a mídia vira burguesa. Lá pela meia-noite, decidi provocar:

- Não é bem que nenhum político preste. E sim que nenhum político do PT presta. Os outros, de modo geral, também não prestam. De vez em quando se salva algum. Mas uma só andorinha não dá quorum.

A resposta veio de bate-pronto:

- Os politicos do PT sao os que prestam os outros sao uma corja que por muitos anos depenaram esse pais, só nao ve isso quem é muito ignorante mesmo ou então que é igual a eles. mas quem ta na "sorbonne" não ve nada disso só ve e ouve a mídia burguesa e aquilo que quer ver e ouvir,portanto sua opinião pra mim não vale nada.

Não sei o que me causou mais perplexidade. Se ouvir dizer que “os politicos do PT sao os que prestam” ou ouvir falar em mídia burguesa. Burguesia é palavrinha que hoje só alguns desvairados ao estilo de Luciana Genro ou demais militantes do PSOL ainda usam.

- Ok! – respondi -. Então por favor cite um só deputado do PT que condene os mensaleiros. Ou você é daqueles militantes que acham que o mensalão é criação da imprensa? Você fala em mídia burguesa. Ora, burguesia é palavra que morreu com o muro de Berlim. Nem o Zé Dirceu ousaria pronunciar hoje a palavrinha.

A reação foi surpreendente:

- vc é a própria figura da burguesia, e não vou te citar deputado do pt contra o mensalão, porque todos que são inteligentes, sabem bem que é mesmo um produto da mídia e que sempre foi usado por governos anteriores e ninguém falava nada.O próprio Roberto Geferson ja reconheceu que o mensalão foi um bom produto de marketing.

Essa agora! Mensalão é produto da mídia burguesa. A gente vive e não ouve tudo. Aventei que até Lula, o líder máximo das hostes petistas, já havia pedido desculpas pelo mensalão. E citei seu discurso de agosto de 2005:

“Queria, neste final, dizer ao povo brasileiro que eu não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir desculpas. O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir desculpas, porque o povo brasileiro, que tem esperança, que acredita no Brasil e que sonha com um Brasil com economia forte, com crescimento econômico e distribuição de renda, não pode, em momento algum, estar satisfeito com a situação que o nosso país está vivendo”.

A moça, que afinal de contas não era tão moça assim, que o diga seu vocabulário pré 1989, reagiu violentamente:

- Vi esse video agora e vi também a entrevista na época. Se vc fosse inteligente ou bem intencionado, saberia interpretar o pedido de desculpas do nosso presidente, que não tem nada a ver com essa coisa toda, mas ja vi que vc só sabe ver, ouvir e interpretar o que interessa à tua ideologia, deve ser isso que a "sorbonne” te ensinou né, fazer o que?

Isto é, um pedido óbvio de desculpas pelas falcatruas do PT exige agora um hermeneuta. Precisa ser interpretado. Suponho que seja inclusive esta a posição de Lula. Pois, apesar de ter se desculpado pelo mensalão há sete anos, hoje tem afirmado que o mensalão nunca existiu e é produto da mídia. O analfabeto-mór confia na falta de memória dos brasileiros. Imbuído do espírito de porco que me acometera na madrugada, perguntei à petista atroz de que Lula se desculpava. Estava pedindo desculpas à nação por algum verbo mal conjugado ou plural mal flexionado? Que me dissesse então de que ele se desculpava.

- Não vou mais perder meu tempo com alguém que além de desagradável, é muito ignorante, que não sabe interpretar o que le, e ainda: se acha o tal , não aceita que um trabalhador seja presidente e usa a palavra MENSALÃO com tanta vontade que deve ser um dos defensores do mesmo nos governos anteriores. Prefiro um LULA que não conjugue verbos com tanta facilidade do que um BURGUES, NEOLIBERAL e REACIONÁRIO ... ah ainda bem que não somos amigos nem aqui no face.... só mais uma coisa: se quer saber do que o LULA se desculpou, procure uma professora que o ensine a interpretar!!!!!

Acontece que, em meio à madrugada, eu não tinha professora ao alcance da mão. Mas aquele “burguês, neoliberal e reacionário” me rejuvenesceu. Transportou-me aos anos 70, quando eram os palavrões ideológicos prediletos das esquerdas. Menos o neoliberal, que surgiu mais recentemente.

Daqui a uma semana, começa a ser julgado o mensalão que nunca existiu. O PT confia na fé de seus militantes. Só mesmo uma fé, firme e cega, para remover mensalões.

quinta-feira, julho 26, 2012
 
VAI! *


Viagens. Minha primeira foi de bicicleta, 60 quilômetros de areia e barro, de Upamaruty, distrito rural de Livramento, a Dom Pedrito. Certamente foi a mais significativa. Eu teria dez anos e não conhecia cidade. Em meu imaginário, fruto talvez de contos de fadas, as cidades seriam douradas e brilhantes. Pedalando, avancei pela estrada real e, por mais que aguçasse a vista, não conseguia ver nada de dourado nem brilhante. Fui penetrando aos poucos por seus arrabaldes poeirentos, entrei pelas ruas de paralelepípedos e só apoiei o pé no chão frente a igrejinha da praça. Então aquilo era cidade? Fosse como fosse, seria minha nova geografia. Meu universo rural já pertencia ao passado.

A segunda mais significativa foi de navio, no finado Eugenio C. Estava abandonando o Brasil e não fazia parte de meus projetos voltar. No salão Opala, encontrei uma francesa que voltava da Amazônia, fascinada. C'est magnifique, me repetia com olhar sonhador. Eu não conseguia entendê-la. Mas na Amazônia só há árvores, índios e bichos - objetei. C'est ça! - me respondeu. Ela, oriunda de um mundo milenar e cosmopolita, queria ver o que ficara à margem da civilização. Eu, que nascera naquelas margens, queria a civilização propriamente dita.

Brasileiro, de índios só quero distância. Com eles nada tenho a ganhar, culturalmente. Que antropólogos os adorem, entendo. Índio, hoje, é o ganha-pão da antropologia. A francesa, européia e cosmopolita, queria ver atraso e primitivismo. Eu, vizinho do atraso e primitivismo, queria ver o presente e o futuro.

Fui, vi e voltei. Como Chesterton, considero ser impossível conhecer uma catedral olhando-a apenas por dentro. Se você quiser conhecer seu país, saia logo de seu país. O homem só conhece comparando. Nutro profunda lástima por essa espécie de patriotas, que louva o Brasil sem jamais dele ter saído. Hoje, um de meus prazeres diletos é incitar amigos ao viajar e já consegui convencer alguns a fazer malas e enfrentar oceanos. Mas atenção. Há viajar e viajar. Excursão não é viagem. É uma bolha de seu próprio país que o envolve, e dela você não sai. (Há exceções, é claro. Você não pretenderá, por exemplo, enfrentar a China ou o Sahara sozinho). Viajar é largar-se na aventura, buscar geografias distantes, tentar entender e fazer-se entender em línguas esdrúxulas, perder-se por ruelas e tentar encontrar-se por mapa. Por tais razões, não vejo sentido algum em viajar por país em que todos falam nossa mesma língua, assistem à mesma novela nos mesmos horários e bebem as mesmas bebidas e comem as mesmas comidas que se bebem e comem em sua geografia nativa. Isto é: viajar pelo Brasil não é viajar. É mesmice. Claro que o Rio merece uma visita. Mas você não estará viajando. Apenas foi do quarto para a sala do mesmo apartamento.

Viajar, hoje, não mais é privilégio de milionários. Por pouco mais que o preço de um televisor de 29 polegadas você já está na Europa. Pelo preço de um carro de porte médio, você passa um mês na Espanha, Itália ou França. Uma casa na praia rende mais de uma volta ao mundo. Não estamos mais na época em que só os barões do café podiam permitir-se o estrangeiro. Nos anos 70, milhares de jovens sem maiores posses fizeram a Europa, eu entre eles. Muitos embarcaram literalmente sem nenhum vintém. Para pagar a passagem, trabalhavam em navios. Chegando lá, sempre havia algum restaurante onde se podia lavar pratos. Nem todos se deram bem e suicídios não faltaram. Mas coragem sobrava. Esta tradição de viajar sem um vintém é antiga e por ela optaram nomes ilustres, como Henry Miller e George Orwell. A luta de Miller para matar a fome de todos os dias está em seus Trópicos. A odisséia de Orwell está em Down and Out in Paris and London.

Mas se você acha melhor aplastar-se diante de uma televisão, tudo bem: fique em casa a ver novelas na telinha. Se preferir comprar um monte de lata para arriscar a vida nas estradas ou assaltos nas ruas, melhor ficar por aqui e irritar-se com o tráfego, com assaltantes e com as multas. Você pode também preferir uma casa para usar um mês ou dois durante o ano e renunciar ao vasto mundo. Falo de pessoas que apertam seu orçamento para conquistar estes mesquinhos sinais de status, mesquinhos mas indispensáveis à auto-estima de quem não tem personalidade. Quem tem tudo isto e folga econômica para viajar - e não são poucos - está excluído desta reflexão.

Bem entendido, nunca tive carro nem casa na praia. A cada vez que pensava em carro, juntava meus trocados e atravessava o oceano. Com um carro não se vai longe. A pé, o mundo não tem fronteiras. Usufrui também de bolsas e viagens patrocinadas por consulados. Bolsa também exige fazer opções. Ou você fica, segurando seu lugar no mercado. Ou parte, sem saber onde cair na volta. Quando voltar, seus colegas e amigos estarão empoleirados em altos cargos e dificilmente lhe darão colher de chá. Quem o mandou gozar o mundo enquanto eles mourejavam? Ocorre que o mundo é grande e a vida é breve. Além disso, não tem estepe.

Em meu dia-a-dia paulistano, tenho encontros esporádicos com pessoas de alto poder aquisitivo, para quem viajar é, no máximo, ir a praias no Nordeste. Constituem aquele tipo padrão que considera o Brasil o melhor país, sem nada conhecerem do mundo. Alguns, mais audazes, já foram a Cancun ou Orlando. Isto é, a locais exclusivamente turísticos, onde não existe o que se poderia chamar de nacional.

Se você é jovem, parta logo, antes que o mercado o escravize. Se é adulto, aproveite sua maturidade e vigor para explorar o planetinha. Está aposentado e se aproximando da velhice? Vá logo, antes que seja tarde. Kafka tem um apólogo, onde fala de casas onde se pode entrar a qualquer hora, encontrar ou não encontrar pessoas, ficar ou sair quando bem entender. Essas casas existem mundo afora. Nelas, milhares de pessoas o esperam, de bandeja na mão, prontas a recebê-lo com carinho e prestimosidade.

Ergue o traseiro desse sofá, leitor. Dá férias a teu medo do desconhecido. Esquece essa luta inglória por sempre mais dinheiro. E vai.

* 27/10/2003

quarta-feira, julho 25, 2012
 
SOBRE OS PRAZERES DA TEOLOGIA


Pelo jeito, deixei um conterrâneo inquieto em crônica passada. J. Valdério Santos me pergunta:

- Janer, uma duvida me inquieta: Como alguém que não crê em Deus se motiva a dedicar tanto tempo nas coisas Dele? É a luta por alguma causa beirando como que o fervor religioso ao praticar o proselitismo ou a inquietação da alma que põe à prova as suas convicções? Será que alguém que não acredita em Papai Noel demoraria tanto tempo estudando sobre o mesmo e tentando mostrar a uma singela criança que ele não existe?

Bom, eu considero que sem estudar história das religiões é difícil entender o mundo. E particularmente o Ocidente, que foi formatado pelo cristianismo. Respiramos cristianismo todos os dias, toda a hora. A ética e cultura ocidentais, instituições e ensino derivam do cristianismo. Há muito defendo a idéia de que história das religiões deveria ser ensinada a partir do secundário. Mas atenção: história das religiões e não religião. Como as religiões são milhares, melhor ater-se à história do judaísmo, cristianismo e mesmo a do Islã, cada vez mais influente no mundo atual e inclusive no Ocidente.

Papai Noel é uma lenda que não teve influência alguma. Hoje só serve para estimular o consumo e fazer girar a roda do comércio. Santa Klaus não impõe uma ética nem influencia legislações. É apenas um penduricalho do Ocidente.

Gosto de ler a Bíblia. Tenho treze em minha biblioteca, para comparar traduções. Desde a Tanak judia à Bíblia de Jerusalém, que se pretende uma tradução ecumênica. Aí se pode ver como os textos bíblicos foram adaptados conforme os interesses sacerdotais ou políticos da época. Cada um puxa brasa para seu assado. Entre minhas bíblias, tenho inclusive uma nítidamente marxista, publicada pelas edições Paulinas. Com imprimatur de Dom Vital J. G. Wilderink, bispo de Itaguaí. Os tradutores mexeram de tal modo no texto, que a transformaram num panfleto marxista.

Adoro ler teologia, ver as acrobacias e os arabescos colaterais que os teólogos fizeram para justificar o injustificável. Se há algo que me diverte na história da Igreja Católica, são os dogmas. Verdades reveladas por deus, são imutáveis e definitivos. Justo por isto nos causam tanta perplexidade.

Os dogmas são mais de quarenta e os católicos em geral não os conhecem. Um dos que gosto de enunciar é o da transubstanciação da carne, promulgado oficialmente em 1551 pelo Concílio de Trento. Os católicos, de modo geral, acreditam que o pão e vinho consagrados durante a missa são símbolos do corpo e sangue de Cristo. Ora, quem assim pensar, está cometendo heresia. Para o Magistério da Igreja, transubstanciação significa a conversão literal do pão e do vinho na carne e no sangue de Cristo. Sei que é duro, para um homem contemporâneo, admitir que a cada comunhão está praticando um ato de canibalismo. Mas dogma é dogma e estamos conversados. Todo católico é um hematófago profissional.

Outro dogma divertido é o da Santíssima Trindade. Javé, o deus ancestral dos judeus, passa a partilhar sua divindade com o Jesus dos cristãos e mais um terceiro personagem imaterial, o Espírito Santo, que os textos joaninos preferem chamar de Paráclito. Mas o deus hebraico, nos textos antigos, não tem filho algum. Quem reivindica essa paternidade - à revelia do pai, diga-se de passagem – é o Cristo. O feroz Javé assume então a face de um pai amoroso. Ocorre que aí já temos dois deuses. Isso sem falar no Espírito, o ruah hebraico, que pode ser traduzido como ar em movimento, hálito ou vento. De onde viria talvez o terceiro elemento da deidade.

Para Harold Bloom, em seu excelente Jesus e Javé, a unificação destes três em um só, isto é, o dogma da Trindade, "sempre constituiu a linha crucial de defesa da Igreja contra a imputação judaica e islâmica de que o cristianismo não é uma religião monoteísta". É um achado da Igreja, saliente-se, pois a palavra trindade não consta da Bíblia. O máximo que encontramos é Javé falando no plural, ou Paulo apresentando Jesus e o Espírito como intimamente ligados a Deus, indicando assim que, na Divindade, Deus, Jesus e o Espírito formam uma unidade. Tudo isto para fugir a qualquer semelhança com as tríades divinas das religiões pagãs, chupadas pela Igreja Católica, em que um deus-pai, uma deusa-mãe e um filho formam uma família de deuses, sendo muitas vezes mencionados juntos, como Osíris, Isis e Hórus no Egito. Ou o deus lunar, a deusa solar e a estrela Vênus na Arábia. Ou ainda Brama, Rudra e Vixnu da Índia.

É por pressão do imperador Constantino (306-337) que se cria nessa época o dogma da Santíssima Trindade. Constantino precisava de um deus forte para seu império e adotou a nascente religião. Ao ver que o cristianismo estava resvalando rumo ao politeísmo, com a história do Pai, Filho e Espírito Santo, o imperador manipulou as discordâncias teológicas existentes entre Arius (Cristo é um ser criado) e Atanásio (Cristo é igual e eterno como seu Pai) e coagiu os bispos do império a assumir a doutrina de Atanásio. “Adoramos um só Deus em Trindade… O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e contudo eles não são três deuses, mas um só Deus”. O que deve ter dado origem, séculos depois, àquele aparelho de som da Gradiente, o três-em-um. O aparelho da Gradiente sumiu do mercado. O três-em-um do Atanásio continua tendo muita demanda. Mas isto já é outra história.

Outra questão divertida é a do filioque.Tivessem os teólogos se contentado com este malabarismo conceitual para construir um sistema religioso monolítico, até que o dogma da Trindade não seria de difícil intelecção. Ocorre que os teólogos são minudentes e uma complicada peripécia iria provocar uma violenta cisão na cristandade em 1054.

Segundo o Evangelho de João, o Espírito Santo procede do Pai. Assim o entendeu o Credo niceno-constantinopolitano, que no ano de 381 já repetia esta profissão de fé. Sabe-se lá porque cargas d'água, os latinos acrescentaram ao Credo a partícula filioque, professando que o Espírito procede do Pai e do Filho. Os cristãos orientais acusaram então os latinos de haver alterado os símbolos da fé. Em 444, Cirilo da Alexandria afirmava que o "Espírito é o Espírito de Deus Pai e, ao mesmo tempo, Espírito do Filho, saindo substancialmente de ambos simultaneamente, isto é, derramado pelo Pai a partir do Filho". São inúmeros os teólogos que eram do mesmo aviso. Mas os cristãos gregos não conseguiam aceitar a polêmica conjunção, o e (em latim, que. Daí filioque).

O caldo engrossou quando o Concílio de Toledo, em 589, oficializou o símbolo da fé com o filioque, e considerou anátema a recusa da crença de que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Não bastasse o absurdo conceito do três-em-um - inteligível se levamos em conta a preocupação de fugir ao politeísmo - discutia-se agora a relação de um com os outros dois. Pensamento dogmático é assim mesmo.

O debate percorreu os séculos. As comunidades se cindiram em 1054 e até hoje não chegaram um acordo sobre esta questão literalmente bizantina. Ainda recentemente, em 1995, João Paulo II tentava esclarecer a questão do filioque com o patriarca Bartolomeu I, numa tentativa de melhorar as relações com os orientais. Daí se originou a expressão “questões bizantinas. Isto é, discussão de sutilezas inúteis. Inúteis, mas partiram a Igreja em dois no início do primeiro milênio.

Os ateus são pessoas que lêem muito sobre religião. O crente crê e basta. O ateu procura entender. Não por acaso, a mais reputada história do cristianismo, em sete volumes, foi escrita por um ateu. Em História das Origens do Cristianismo, Ernest Renan traça o percurso da triunfante seita dissidente do judaísmo, desde Cristo até o reinado de Constantino, que “inverteu os papéis, e fez do mais livre e espontâneo religioso um culto oficial, sujeito ao Estado e não já perseguido, mas perseguidor”.

Não satisfeito, Renan escreveu ainda uma colossal história do judaísmo em outros sete volumes. Não imagine o leitor que Renan, sendo ateu, seja hostil ao cristianismo. Pelo contrário, é fascinado pela figura humana do Cristo, e sua Vida de Jesus - primeiro volume da história do cristianismo - hoje é um clássico para quem queira entender a trajetória do nazareno. Renan era tão fascinado pelo Cristo a ponto de sua obra ter sido incluída no Index Prohibitorum da Igreja Romana. Toda pessoa fascinada pelo Cristo sempre vai bater de frente com os papistas.

Nunca fiz proselitismo, jamais convidei alguém a participar de minha visão de mundo. Ser ateu exige uma fibra que muitos não possuem. O cristão se porta com honestidade para merecer a recompensa eterna. Nós somos honestos sem esperança de recompensa alguma. Não nos apoiamos em bengalas. Na hora de morrer, não pedimos água à nenhuma divindade. Isto não é para todos.

Mas me reservo o direito de fazer perguntas. Exerço apenas o sagrado direito da expressão de pensamento, hoje consagrado em todas as democracias do Ocidente.

terça-feira, julho 24, 2012
 
A OBJEÇÃO DE LAÍS LEGG


De Laís Legg, psiquiatra e boa amiga, recebo:

Oi, Janer:

Não li a matéria da Folha, mas sei lá como os leigos trataram do assunto. Mas a oniomania nada mais é que uma faceta do portador de Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), antigamente denominado de Psicose Maníaco-depressiva (PMD). É um transtorno psiquiátrico grave, só perdendo para a esquizofrenia.

Devido aos desarranjos bioquímicos de substâncias cerebrais (catecolaminas), a pobre criatura oscila entre estado onipotente e impotente, permanecendo pouco tempo no estado potente, isto é, de poder fazer as coisas normalmente. A doença é difícil de tratar (30% dos portadores não apresentam resposta adequada aos psicofármacos) e causa grande sofrimento ao portador e seus familiares.

Quando em estado de onipotência (por causas químicas), o portador fica hiperssexualizado, dorme muito pouco, tem idéias mirabolantes de enriquecimento, fuga de idéias, taquilalismo e taquipsiquismo. Eles são a alegria das lojas, agiotas, bancos, supermercados e shoppings, pois gastam sem medir consequências. Com o advento do cartão de crédito, o sintoma de prodigalidade expandiu-se de forma assustadora, pois ficou mais fácil comprar. O final de quase todos é a interdição judicial, pois acabam com o patrimônio familiar.

O lado oposto da fase maníaca é a depressão profunda. Os portadores de TAB são os que mais se suicidam, no mundo. Cerca de um milhão de pessoas se suicidam, por ano, segundo a OMS. E a maioria são portadores de TAB. Muitos são, também, homicidas, devido ao descontrole do impulso.

O tratamento é árduo, com necessidade de combinações farmacológicas do tipo estabilizadores do humor, antipsicóticos, antidepressivos e indutores do sono e, muitas vezes, é necessário empregar a ECT (eletroconvulsoterapia – o popular eletrochoque) para que se possa reverter o quadro. Há, também, os cicladores rápidos, aqueles que apresentam estado maníaco e estado depressivo num mesmo dia. Também há os que apresentam virada maníaca, isto é, quando em depressão profunda, recebem medicação antidepressiva e vão rapidamente para o estado maníaco, deixando o médico louco. E há necessidade de muitas internações psiquiátricas ao longo de suas vidas.

Espero ter ajudado um pouco, pois sei que este mundo obscuro é pouco conhecido fora do âmbito da medicina.

Bjs,
Laís


Touché, Laís!

Não vou discordar. Mas não se confunda a doença com mania de ostentação. O que mais tenho visto em torno a mim são pessoas comprando o que não podem para ostentar um status que não têm. Contraem dívidas estratosféricas e depois tratam de “rolar” o devido. Na hora de “rolar”, são muito racionais e saudáveis. Mencionei o caso da subprime nos EUA. Seriam os “ninjas” (no income, no job, no assets) todos doentes mentais? Se assim foi, a crise de 2007 não passou de uma questão de saúde psíquica nacional.

Os imigrantes, que pouco ou nada compravam em seus países – pelo simples fato de que não tinham como pagar – e na Espanha passaram a comprar apartamentos de 500 mil euros, teriam contraído a doença ao migrar? Serão oniômanos os europeus todos que vivem pendurados no cartão de crédito? Serão os cartões de crédito a origem do mal? Posso alegar a um banco: “Sabe, sr. gerente, aquele empréstimo? Comprei uma lancha e não posso honrá-lo. Mil perdões, sr. gerente. Sou oniômano, nada posso fazer”?

Segundo os juristas, em uma sociedade marcada pelo constante convite ao consumo, “torna-se cada vez mais comum a existência de pessoas cujas despesas referentes a um determinado período habitualmente superam as receitas daquele mesmo período. Partindo-se desta premissa, tem-se que é uma constante o estado de insolvência, ainda que apenas de fato ou transitório, de grande parcela da sociedade. Diante desta constatação faz-se necessário o estabelecimento de critérios objetivos e científicos para que seja possível distinguir, com o maior grau de segurança possível, as pessoas consideradas "pródigas", e com isso sujeitá-las à interdição judicial, visto que serão relativamente incapazes, e aquelas que serão consideradas como "superendividadas", cujo tratamento jurídico será menos severo, ensejando, inclusive, a possibilidade de revisão de contratos e maiores benefícios na negociação de seus débitos”.

Serão os novos oniômanos os antigos pródigos? O Código Civil não contempla o que se chama de oniômanos e tipifica os pródigos como relativamente incapazes (Lei nº 10.406/02). Terão os juízes contemporâneos equiparado os oniômanos aos pródigos? Pode ser. Mas o Código Civil não vê os pródigos como doentes.

Seja como for, a questão gera perguntas. Como a encara o Direito das Obrigações? Se a interdição judicial protege o patrimônio familiar, quem ou o quê protege o credor? Sendo o endividamento um transtorno psiquiátrico grave, este tipo de devedor é legalmente responsável pela dívida? Esta pode ser remida em função da doença? Ou é transferida a pais ou filhos? Como podem se precaver o comércio ou as instituições de crédito deste tipo de doente? Pode a economia de uma nação flutuar ao sabor de doenças psíquicas?

Questões que ficam no ar.

Baci!

Retorna a Laís:

Oi, Janer:

Apenas quis te mostrar que, dentro dos devedores contumazes, existe um percentual de bipolares. Obviamente, há aqueles gastadores que vivem somente para ostentar. Fico arrepiada só em pensar na quantidade de mulheres fúteis que adoram desfilar com bolsas caríssimas ou homens que se sacrificam para ter um carrão.

Por este motivo, abandonei a psiquiatria clínica, pois não tolero burros. Hoje, sou psiquiatra forense e só lido com casos judiciais, preferi me preservar mentalmente. Quanto aos interditados, a coisa só ocorre (quando ocorre) lá pelos 40, 50 anos. E o juiz desfaz os negócios mirabolantes do momento, o que passou, passou. Para teres idéia, periciei um usuário de “crack”, declarei-o incapaz para o trabalho de forma definitiva e sugeri a interdição judicial dele. A família não aceitou a interdição, ele foi aposentado por invalidez e vendeu os R$ 40.000,00 que iria receber nos meses seguintes por R$ 9.000,00 (sim, existem atravessadores que só vivem disso – a maioria advogados) e foi direto para a boca de fumo, onde torrou todo o dinheiro. A mãe procurou o juiz, este desfez a venda (considerando a minha indicação de interdição) e os R$ 9.000,00 foram para a estratosfera, o esperto se deu mal. Também deves saber que os traficantes ficam com centenas de cartões de benefícios previdenciários dos usuários aposentados ou em benefício INSS – é o governo financiando, diretamente, o tráfico de drogas. Os usuários? São os bipolares que te falei.

Como vemos, a teia é complexa. Tens toda a razão naquilo que falas, mas eu também te mostro outro lado. E o vigarista se dá bem.

Bjs
Laís

segunda-feira, julho 23, 2012
 
QUANDO CALOTE
VIRA ONIOMANIA



As piadas antigas são sempre atuais. Quem não lembra daquele senhor que foi queixar-se ao médico de que tinha sarna?

- Que sarna que nada – disse o médico –. Um homem de sua condição social tem escabiose.

A Folha de São Paulo de hoje traz um caso interessante sobre como pintar com palavras eruditas o que vulgarmente atende por um nome bem banal. Nos traz a notícia de um contador de 31 anos que não conseguiu mais pagar a comida nem o passe de ônibus:

"Cheguei ao fundo do poço em três anos. Devia cerca de R$ 35 mil quando ganhava R$ 1.000 por mês." O contador, que não quer se identificar, participa de reuniões do Devedores Anônimos em São Paulo, um grupo de apoio a pessoas que sofrem de compulsão pelas compras (oniomania).

Em meus dias de guri, isso tinha outro nome. Quem assim se portava, só por eufemismo chamávamos de irresponsável. Na verdade, era um caloteiro. E merecia ser punido. Hoje é um oniômano. E faz terapia. Desde 2010 – prossegue o jornal - três grupos desse tipo foram abertos na capital paulista, na Grande São Paulo e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o grupo mais antigo, que funciona nos Jardins desde 1998, aumentou o número de encontros de um para dois por semana desde janeiro.

Pelo jeito, ao lado dos equoterapeutas e bototerapeutas, temos agora os oniomanoterapeutas. Nestes dias de crédito fácil, a profissão tem futuro. Me pergunto como serão as reuniões desses grupos. Vai ver que discutem as melhores fórmulas de como rolar a dívida, de banco a banco, de cartão a cartão.

Ainda não decidi se sou honesto ou bobalhão. Nunca tive dívidas em minha vida. Jamais comprei além do que poderia pagar. Deve ser herança de meu pai. Camponês, se horrorizava ante a idéia de dever algo para alguém. É fácil. Basta não pretender dar passo maior que as pernas. Isso de comprar o que não se pode comprar está minando a economia de muitos países. Só vim a usar cartão de crédito há poucos anos. E isso porque hoje é impossível viajar sem cartão, mesmo que você tenha dinheiro a granel.

Foi esta mania que gerou a chamada crise do subprime nos Estados Unidos, desencadeada em 2006. Segundo leio na rede, os subprimes incluíam desde empréstimos hipotecários até cartões de crédito e aluguel de carros, e eram concedidos, nos Estados Unidos, a clientes sem comprovação de renda e com histórico ruim de crédito. Eram os chamados clientes ninja (no income, no job, no assets): sem renda, sem emprego, sem patrimônio. Essas dívidas só eram honradas mediante sucessivas "rolagens", o que foi possível enquanto o preço dos imóveis permaneceu em alta.

Quando os juros dispararam nos Estados Unidos - com a conseqüente queda do preço dos imóveis - houve inadimplência em massa. O que arrastou vários bancos para uma situação de insolvência, repercutindo fortemente nas bolsas de valores de todo o mundo.

A mesma mania está na origem da crise espanhola, o que fez muita gente devolver imóveis de alto preço que haviam comprado sem ter lastro. Sem ser economista, suponho que o mesmo fator terá gerado a crise na Grécia. O Brasil vai em bom caminho. Com São Paulo na liderança. Abençoado país este nosso. O que no Primeiro Mundo gera crise econômica, no Brasil é tratado como doença passível de terapia.

Não por acaso São Paulo abriga três grupos de Devedores Anônimos. Confesso jamais ter visto cidade onde tanta gente vive de aparências. Foram picados pela mosca azul, como diria o Machadinho. Status oblige. Conheci não poucos casos de perto. O mais emblemático foi o de um vizinho de bairro, em cujas festas caí meio por acaso. Era pessoa culta e generosa, gostava de gente em torno a si e de cozinhar para a alegria de seus convivas. Vivia confortavelmente em um apartamento de uns 150 m2, onde pelo menos uma vez por mês reunia seu povo. Sua mosca azul terá sido uma belíssima baiana. Que um dia deve ter-lhe sussurrado: quem sabe a gente compra uma casa em Alphaville?

Comprou. Agora havia mais espaço para os convivas, que podiam dançar em torno à piscina. Várias vezes fui convidado para tais festas, o que me gerava um problema. Não tenho carro e acabava pagando uns 300 reais de táxi. Ou seja: comer de graça chez mon hôte me custava bem mais caro do que pagar uma refeição em um bom restaurante. Mesmo assim, eu rumava a Barueri, que mais não fosse pelo prazer da festa.

Mon hôte era obcecado pelas cabrochas. “Foi por elas que vim para o Brasil”, costumava dizer. Suas festas eram sempre ornadas por negras tão lindas quanto sua companheira. Contratava garçons e banda de música. Mas o que é bom dura pouco, dizem as gentes.

Sufocado por dívidas, sem poder sequer pagar o condomínio, recorreu aos convivas. Fui sensível a seu drama. Em um primeiro momento, pensei em contribuir com cinco mil reais, a fundo perdido, em memória daqueles dias de festa. Na caminhada rumo ao banco, pensei melhor: peraí, eu não vivo em condomínio de luxo, não tenho carro nem piscina. Quem precisa de ajuda sou eu. Minha generosidade diminuiu para mil reais. Na hora de depositá-los, pensei mais uma vez: tampouco tenho condições de dar festas para 50 ou 60 pessoas. Repassei apenas 500 reais.

Pelo que sei, boa parte de seus convivas dele se afastaram. Se não todos. Houve quem contribuísse com remédios, mas não com dinheiro para a vida farta. Ele deve ter considerado que, na hora do infortúnio, os “amigos” se revelam como são e desaparecem. Ocorre que fere o bom senso pedir ajuda para viver em condomínio de luxo a pessoas que não têm condições de viver em condomínio de luxo. E que talvez neles jamais viveriam, mesmo que as tivessem.

O mal parece ser universal. Na rica Suécia, me dizia um político: “Todo mundo é rico aqui, não é verdade? Todos têm carro, casa secundária, iate ou veleiro, não é verdade? Não é. Todos estão pendurados em empréstimos que jamais poderão pagar”.

Não tenho idéia do que foi feito deste – como direi? – oniômano. Certamente não estará freqüentando grupos de devedores anônimos, não era homem de iludir-se com modismos. Tampouco tinha contatos com o poder, a ponto de viver de corrupção. Homem de saúde frágil e bastante além del mezzo del cammin di nostra vita, deve ter encontrado sua selva escura. Se é que ainda vive.

Eles são legião em São Paulo. O crédito fácil lhes dá uma ilusão de riqueza. Pelo menos por alguns anos. Até que a fonte seca. A imprensa fala em consumo compulsivo. Vá lá! Mas no fundo, no fundo mesmo, o que os impele a gastos além das posses é a maldita mania de status.

Deste mal não sofro. Nunca me ative a bens. Respeito o homem rico que vive com inteligência, mas estes são raros. O que mais grassa neste mundinho são os novos ricos, que vivem de aparências. As posses que uma pessoa possa possuir não me impressionam. Mas me rendo a uma virtude cada vez mais rara, a cultura. Virtude que não exige muito dinheiro. Mas é cada vez mais escassa. Meu anfitrião era homem culto. Mas deixou-se picar pela mosca azul. Ou talvez pelas cabrochas.

Clínicas privadas estão tratando a nova “doença” junto com a dependência química. Ora, dependência química é orgânica, ataca o organismo do doente. Consumismo depende de volição. Não ter vontade suficiente para deixar de consumir o que não se pode consumir, não me parece ser doença, mas falta de caráter.

Mas, obviamente, tratar falta de caráter como doença é sempre mais civilizado.

domingo, julho 22, 2012
 
MORTE ÀS PEDAGOGAS!


Do professor Jacques Duílio Brancher, recebo:

Janer,

Já há muito venho apregoando que o problema do ensino brasileiro é justamente a pedagogia. Se há um curso onde o onanismo é prática habitual, é lá. Há muitos anos atrás assisti uma palestra de uma dileta professora da área, que hoje está em Brasília decidindo parte dos rumos do país na área de educação, e a cantilena era uma só: "Relato de experiência". O povo inventava uma porcaria qualquer e o gado ia lá discutir. É muitíssimo comum em cursos de pedagogia a professora fazer um círculo com os alunos e passarem horas e horas discutindo sobre quase nada.

Aliado a isto, quem busca a pedagogia? Via de regra, são as pessoas que não gostam de matemática, e que estão lá por conta do seu ódio ao negócio. Esta turma vai dar aulas para quem está começando e a primeira coisa que fazem é ensinar as crianças a ODIAR a matemática.

Por fim, todos os dias agradeço o fato de ter tido uma educação caseira que me livrou destes males. Me exercitava todos os dias com meu pai em questões que ele chamava de "cálculo mental". Experimente pegar um egresso de pedagogia e pedir para ele fazer uma série de contas complexas sem usar a calculadora (10 + 5 - 8 + 9 -3 - 2 = 11). O desgraçado vai sentar no chão e chorar. Mas acho que temos uma saída sim, que é fazer uma campanha nacional pelo fim da pedagogia.


Pois, Jacques, os métodos da incompetência parecem ser universais. Também passei por esses círculos de aluno, os famosos trabalhos em grupo. Para as pedagogas - elas são sempre no feminino e em geral têm cara de quem nunca teve um orgasmo - é muito confortável: ficam fofoqueando entre elas e não precisam dar aula. Nem poderiam: não têm nada a dizer.

Entre as técnicas de ensino ridículas pelas quais passei havia o tal de zum-zum. Isto é, um aluno segredava algo ao ouvido de outro, que repassava o que fora sussurrado a um terceiro e assim por diante. Até parecia brincadeira de criança. Protestei violentamente contra estas vigarices e deu no que deu: fui reprovado. Foi a única reprovação de minha vida e a guardo como comenda.

Por acaso, reviso alguns textos de uma amiga petista e tenho algum contato com as novas técnicas pedagógicas. Os "relatos de experiência" chamam-se agora histórias de vida. Professores não são mais professores. São facilitadores. Professor é uma palavra muito arrogante. Politicamente incorreta. Não por acaso, a moça milita nas hostes do PT.

Quanto à incapacidade de calcular somas elementares, esta é antiga. Republico excerto de crônica que escrevi em 1977 – há mais de três décadas, portanto – onde manifesto minha perplexidade:

JURO QUE VI!

Vi uma moça solicitando crediário. E vi a balconista atendendo a moça. E a última ficha de crediário era de número 40.649. E a moça preencheria a seguinte. E ouvi a balconista chamar outra balconista. E ouvi perguntar qual seria o número da ficha seguinte. E vi a outra balconista emudecer. E vi a moça sugerir às balconistas: “não será número 40.650?” E vi as duas se entreolharem surpresas. E ouvi uma confirmar: “claro, é 40.650!” Com o que concordaram todas.

E fui ao correio postar uma carta. E perguntei à funcionária quanto pagaria em selos. E ouvi vinte cruzeiros como resposta. E paguei os vinte. E levei a carta para registro. E a outra funcionária me informou que eram 31 cruzeiros. E voltei ao guichê anterior para pagar o restante. E vi a moça manipular uma calculadora eletrônica. E vi registrar 31. E calcar a tecla de subtração. E depois 20. E vi a moça ler no visor: 11. Perplexo, paguei os 11.

E fui a uma farmácia. E vi um cliente pagando sua compra. E a conta era de Cr$ 13,60. E ouvi a caixa perguntar se o cliente não teria 60 centavos. E ouvi o cliente dizer que não. E vi a moça dar-lhe dois comprimidos de Melhoral. E ouvi o cliente reclamar: não queria Melhoral. E ouvi a moça dizer: vou dar um jeito. E a vi sair do caixa e ir até o balcão. E vi a moça voltando com Pondicilina. E ouvi o cliente furioso exigindo seus 40 centavos. E vi a moça confusa tentando encontrar uma solução. E ouvi a moça chamar o chefe. E vi o chefe providenciando o troco. E vi o cliente receber 36 centavos. E muito mais coisas eu vi, juro que vi!

E nisto estamos, Jacques. Sem falar que, de lá para cá, o nível de ensino decaiu muito mais. E ainda há quem queira criar Brasil grande com tais professores. Morte às pedagogas. Ninguém chorará por elas.

sábado, julho 21, 2012
 
ESQUERDAS ANALFABETIZAM UNIVERSIDADE


Após terminar Direito e Filosofia, comecei a trabalhar em jornal e passei duas décadas afastado da universidade brasileira. Digo da brasileira, porque nesse período tive quatro anos na Université Sorbonne Nouvelle, em Paris. Da qual também mantive distância. Nesses quatro anos, tive só 16 horas de aula, das quais apenas quatro foram muito úteis. Em verdade, nunca pensei em fazer doutorado. Queria apenas curtir Paris. Se a condição para uma bolsa era defender uma tese, tudo bem. Foi o que fiz. Só então fiquei sabendo que um doutorado servia para lecionar.

Em 81, a Folha da Manhã fechou as portas. A Caldas Júnior estava à beira da falência. Eu, que enviava uma crônica diária para Porto Alegre, fiquei pendurado no pincel. Às margens do Sena, mas desempregado. Meu orientador ofereceu-me mais um ano de pesquisa, mas recusei. Estava longe de minha mulher – que tivera de retomar seu trabalho após dois anos comigo em Paris – e com vontade de voltar. Acabei mudando de mala e cuia para Florianópolis, onde passei a lecionar literatura na UFSC, como professor visitante. Foi meu retorno à universidade.

Fiquei perplexo. Boa parte de minhas aluninhas, em final de curso – de Letras – não tinha noções mínimas de vernáculo. A meu ver, não podiam sequer ter entrado na universidade. (Digo aluninhas, pois os varões eram raros). Certa vez, ao reprovar uma negrinha em último ano de curso, tive de ouvir choro e ranger de dentes. “Racismo, professor, racismo. Eu nunca tirei zero nesta universidade”.

Então é porque teus professores não lêem tuas provas – respondi. Chamei-a ao estrado. E mostrei a ela o colar de zeros que havia distribuído a mais doze alunas brancas. Não fossem elas, provavelmente seria processado por racismo.

Mais tarde, reprovei a sobrinha de um deputado. Foi, a meu ver, o gesto que me fez ser ejetado da universidade. Não sabia que a festa de formatura da moça seria a festa do ano da cidade, e que 300 convites já haviam sido enviados. Se soubesse, com mais prazer a teria zerado. Resumindo: ao voltar à universidade, nos anos 90, descobri que tivera melhor formação no ginásio Nossa Senhora do Patrocínio, em Dom Pedrito, no início dos 60. Em trinta anos, o ensino universitário havia decaído irremediavelmente.

Leio recente pesquisa segundo a qual apenas 35% das pessoas com ensino médio completo podem ser consideradas plenamente alfabetizadas e 38% dos brasileiros com formação superior têm nível insuficiente em leitura e escrita. É o que apontam os resultados do Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf) 2011-2012, pesquisa produzida pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM) e a organização não governamental Ação Educativa.

Ou seja, mais de um terço dos universitários são analfabetos funcionais. O que não me espanta. Isto eu já havia constatado na universidade, há mais de vinte anos. Segundo outra pesquisa também recente, Lula está em primeiro lugar em votação do programa televisivo “O Maior Brasileiro de Todos os Tempos”. Quando um analfabeto é considerado o maior brasileiro de todos os tempos, isto significa que para os brasileiros ser culto é o que menos importa. O que importa é ter sucesso.

A História é uma eterna luta entre alfabetizados e analfabetos, dizia Nestor de Hollanda, de saudosa memória. Em seu livro A Ignorância ao Alcance de Todos, o autor defendia a tese de que os analfabetos estavam avançando inexoravelmente em todas as áreas. Dito e feito. Agora tomaram os campi de assalto. Por obra dos legisladores nacionais, um analfabeto de pai e mãe já pode ostentar em seu currículo um diploma de curso superior. A reprovação, único instrumento eficaz de controle da qualidade de ensino, virou coisa do passado. Se no secundário está se tornando proibida, nos cursos superiores é cada vez mais rara e mesmo inexistente.

Conta-me um amigo, professor de universidade privada, que não pode reprovar nem mesmo alunos que jamais assistiram a suas aulas. O ensino virou um teatro, onde o aluno finge que aprende e o professor finge que ensina - disto está consciente todo professor que costuma olhar-se no espelho antes de entrar em sala de aula. Mas, segundo Hollanda, havia alguma esperança. Alguns alfabetizados já haviam se infiltrado nos quartéis.

Em recente postagem no Facebook, Anselmo Heidrich retomou uma entrevista de Veja, de novembro de 2008, que explica em boa parte a decadência do ensino nacional. Segundo a antropóloga Eunice Durham, professora da USP e ex-secretária de política educacional do Ministério da Educação (MEC) no governo Fernando Henrique, a responsabilidade desta catástrofe deve ser atribuída aos cursos de pedagogia.

- As faculdades de pedagogia formam professores incapazes de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais grave ainda, muitos desses profissionais revelam limitações elementares: não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples nem expor conceitos científicos de média complexidade. Chegam aos cursos de pedagogia com deficiências pedestres e saem de lá sem ter se livrado delas. Minha pesquisa aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é a mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria e menospreza a prática. Segundo essa corrente acadêmica em vigor, o trabalho concreto em sala de aula é inferior a reflexões supostamente mais nobres.

Não por acaso, só fui reprovado uma vez em minha vida em meus cursos universitários. Foi na Filosofia da UFRGS – então URGS – na cadeira de pedagogia. A faculdade só oferecia licenciatura e os alunos foram obrigados a assistir às aulas das pedagogas. Masturbação acadêmica total. As professoras, que não tinham conteúdo nenhum a oferecer, abominavam as aulas expositivas e se compraziam a ensinar ridículas técnicas de ensino, em geral de extração ianque. Me opus violentamente ao embuste e fui solenemente reprovado. Devo ter sido o primeiro – e talvez o único – acadêmico a ser reprovado naquele curso.

Tive de repetir a cadeira. A situação era tão tensa que, ao encontrar-me com a professora, eu e ela éramos acometidos de taquicardia. “Professora – sugeri – acho melhor aprovar-me logo, esta situação faz mal para nós dois”. Ela concordou comigo. Fiz, no ano seguinte, uma formatura individual.

O problema ocorre basicamente nas tais de ciências humanas. Cursos que, a meu ver, se fossem extintos seria uma benção para o país. Prossegue a professora Durham:

- Há dois fenômenos distintos nas instituições públicas. O primeiro é o dos cursos de pós-graduação nas áreas de ciências exatas, que, embora ainda atrás daqueles oferecidos em países desenvolvidos, estão sendo capazes de fazer o que é esperado deles: absorver novos conhecimentos, conseguir aplicá-los e contribuir para sua evolução. Nessas áreas, começa a surgir uma relação mais estreita entre as universidades e o mercado de trabalho. Algo que, segundo já foi suficientemente mensurado, é necessário ao avanço de qualquer país. A outra realidade da universidade pública a que me refiro é a das ciências humanas. Área que hoje, no Brasil, está prejudicada pela ideologia e pelo excesso de críticas vazias. Nada disso contribui para elevar o nível da pesquisa acadêmica.

Tampouco por acaso, o rebotalho da História – os velhos marxistas – até hoje dominam “as Humana”, como se dizia – e escrevia, juro – na UFSC. Foram “as Humana” da USP que difundiram o marxismo no ensino universitário brasileiro, em detrimento de conhecimentos banais – mas fundamentais - como o bom manejo do vernáculo.

A repórter pergunta o que, exatamente, se ensina aos futuros professores. Responde Durham:

- Fiz uma análise detalhada das diretrizes oficiais para os cursos de pedagogia. Ali é possível constatar, com números, o que já se observa na prática. Entre catorze artigos, catorze parágrafos e 38 incisos, apenas dois itens se referem ao trabalho do professor em sala de aula. Esse parece um assunto secundário, menos relevante do que a ideologia atrasada que domina as faculdades de pedagogia.
- Como essa ideologia se manifesta?
- Por exemplo, na bibliografia adotada nesses cursos, circunscrita a autores da esquerda pedagógica. Eles confundem pensamento crítico com falar mal do governo ou do capitalismo. Não passam de manuais com uma visão simplificada, e por vezes preconceituosa, do mundo. O mesmo tom aparece nos programas dos cursos, que eu ajudo a analisar no Conselho Nacional de Educação. Perdi as contas de quantas vezes estive diante da palavra dialética, que, não há dúvida, a maioria das pessoas inclui sem saber do que se trata. Em vez de aprenderem a dar aula, os aspirantes a professor são expostos a uma coleção de jargões. Tudo precisa ser democrático, participativo, dialógico e, naturalmente, decidido em assembléia.

Se hoje um terço dos universitários são analfabetos funcionais, não é preciso ir muito longe para saber quem os analfabetizou. O pior é que a peste, apesar da queda do muro de Berlim e do desmoronamento da União Soviética, não dá sinais de arrefecer neste país que aspira a pertencer ao Primeiro Mundo, mas ainda vive a reboque da História.

sexta-feira, julho 20, 2012
 
A ÚLTIMA PRESCRIÇÃO
DE MEU UROLOGISTA



Por mais afável e simpático que um médico seja, não é exatamente por prazer que o procuramos. Quando os procuramos no consultório, sempre é sinal de problemas. Tenho um médico, no entanto, que me apraz consultar. É meu urologista.

Sempre que ando na rua, levo leitura debaixo do braço. Nunca se sabe quanto vamos esperar em um bar ou consultório e não suporto ficar olhando o nada. Sem falar que sempre estou com leituras atrasadas. Há alguns anos, quando visitava o urologista, levava comigo um tratado de teologia.

- Ah, você gosta disso? – me perguntou.

Gostava. De lá para cá, nossos encontros terminam sempre com troca de bibliografias. Ele é judeu, ateu e vive imerso em leituras religiosas. Quando termina minha consulta propriamente, ele puxa uma pasta cheia de livros e me convida ao bom diálogo:

- Vamos agora ao que interessa.

Enquanto discutimos a origem dos deuses, as contradições dos textos bíblicos, as peregrinações de Paulo pelo Mediterrâneo, as deturpações dos preceitos do Antigo Testamento pelos redatores do Novo, a papisa Joana e o estercorário, seus clientes se amontoam no consultório. Sempre saio da consulta com uma prescrição... de livros. Há um café Frans no shopping aqui perto de casa. Se passo por lá entre 11hs e meio-dia, é certo que vou encontrá-lo absorto em seus leituras. Quando coincidimos na rua, ele já vai puxando de sua pasta seus mais recentes achados.

Em minha última consulta, enquanto seus pacientes pacientavam, entre outros títulos, prescreveu-me um que julgo excelente. Interrompi minhas outras leituras e dediquei-me ao ensaio de Pepe Rodríguez, Mentiras Fundamentais da Igreja Católica. É obra na trilha de O que Jesus disse? O que Jesus não disse, de Bart Ehrman, teólogo que perdeu a fé pesquisando as cópias existentes dos textos bíblicos. Mas Rodríguez é bem mais abrangente. Pretende mostrar como a Igreja Católica mentiu ao se apropriar dos textos do Antigo e Novo Testamento. Em verdade, o título fica aquém das dimensões da obra, que mostra deturpações dos livros biblícos em função de interesses de poder ou rivalidades entre sacerdotes, muito antes de a Igreja existir. À guisa de degustação, transcrevo dois trechos. O livro é em espanhol. Cito a tradução portuguesa:

Deus, plenamente ciente do que fazia, ocultou ao seu povo eleito o advento futuro do seu Filho, o Salvador, obrigou-o a odiar as nações vizinhas sabendo que o seu Filho pregaria justamente o contrário, forjou de si próprio uma imagem com as suas respectivas atribuições divinas, atribuições essas que, agora, no seu novo testamentum, há-de modificar, obrigou-o a cumprir leis e rituais que seu Filho abolirá, por os considerar inúteis, levou-o a seguir sacerdotes que nos novos tempos surgirão como falsos – senão hereges -, estenderá o seu manto protector a toda a humanidade, etc. Não nos podemos deixar de perguntar: por que não o fez antes?

Não eram também criaturas de Deus os demais povos da Terra quando os excluiu da sua “aliança eterna”? Ao alterar suas posições, não reparou que causava um dano profundo ao seu povo hebreu? Se o Deus do Velho Testamento é o mesmo Deus que inspirou o Novo, é evidente que alguém, antes ou depois, terá vergonhosamente mentido.


Sobre os critérios de seleção dos quatro evangelhos, entre os sessenta existentes:

A seleção dos evangelhos canónicos foi feita no concílio de Niceia (325) e ratificada no de Laodiceia (363). O modus operandi ou o processo utilizado, para distinguir entre textos verdadeiros e falsos foi, segundo a tradição, o da “eleição milagrosa”. Foram apresentadas, de facto, quatro versões para justificar a preferência pelos quatro livros canónicos:

1) depois de os bispos terem rezado muito, os quatro textos voaram por si sós e foram pousar-se sobre um altar;
2)puseram todos os evangelhos em competição sobre um altar e os apócrifos caíram ao chão, enquanto os canónicos não se mexeram;
3)depois de escolhidos, os quatro foram colocados sobre o altar e foi pedido a Deus que se neles houvesse qualquer palavra falsa os fizesse cair no chão, o que não ocorreu;
4)o Espírito Santo, na forma de uma pomba, penetrou no recinto de Niceia e pousando no ombro de cada bispo sussurrou a cada um deles quais eram os evangelhos autênticos e quais os apócrifos. Esta última versão revelaria, além do mais, que uma boa parte dos bispos presentes no concílio eram surdos ou muito incrédulos, visto ter havido grande exposição à seleção – por voto maioritário, que não unânime – dos quatro textos canónicos actuais.

Santo Irineu (c. 130-200) procurou fundar em bases intelectualmente sólidas a selecção dos livros canónicos quando escreveu que “o Evangelho é a coluna da Igreja, a Igreja está espalhada por toda a Terra, a Terra tem quatro direcções, e como há quatro ventos cardiais, é necessário que existam quatro Evangelhos. (...) O Verbo criador do universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, e é aqui que o Verbo nos obsequiou com quatro Evangelhos.


Sobre estes últimos arrazoados, o autor comenta:

Esta ciência espantosa baseia-se no seguinte texto do Apocalipse: “Depois disto vi quatro anjos que estavam de pé nos quatro ângulos da terra, e retinham os seus quatro ventos para que não soprasse sobre a terra vento algum...” (Ap 7, 1). Apesar de esta informação proceder da inspiração de Deus, não passa de um atestado da enorme ignorância que reinava então. Hoje, que sabemos que a Terra é redonda e não tem os quatro ângulos que se lhe atribuía ao imaginá-la plana, com quantos evangelhos nos deveria obsequiar o Verbo para se pôr em dia com o mundo actual?

Para quem se sentiu incitado à leitura, um pouco mais de Pepe Rodríguez:
http://migre.me/a4u4k

quinta-feira, julho 19, 2012
 
MUITA ÁGUA SOB A QUILHA


Kafka tem um belo apólogo. Fala de um homem que busca a Lei. Diante da Lei está um porteiro. Um homem do campo acerca-se dele e pede-lhe que o deixe entrar na Lei. Mas o porteiro diz-lhe que agora não pode deixá-lo entrar. O homem reflete e pergunta se poderá, então, entrar mais tarde. «É possível», diz o porteiro, «mas agora não». Como o portão da Lei se encontra, como sempre, aberto, e o porteiro se afasta para o lado, o homem inclina-se e olha para dentro através do portão. Assim que o porteiro repara nisso, ri-se e diz-lhe: «Se te atrai assim tanto, experimenta então entrar, apesar da minha proibição. Mas repara: eu sou forte. E sou apenas o porteiro mais ínfimo. De sala para sala há, porém, outros porteiros, cada um deles mais forte do que o outro. Até eu próprio já não consigo suportar o aspecto do terceiro porteiro».

Resumindo: o camponês espera a vida toda. O porteiro reconhece que ele já está próximo do seu fim. Para alcançar o seu ouvido moribundo, berra-lhe: "Aqui mais ninguém poderia ser admitido, pois esta entrada era apenas destinada a ti. Agora vou-me embora e fecho-a."

Este apólogo marcou-me fundo e sempre tive medo de estar diante de minha porta, de minha única porta, e de não ter a coragem de forçá-la. Camponês e filho de camponeses, terá sido este medo que me impeliu deste cedo a viajar. Via uma porta aberta? Entrava logo, bem que podia ser a minha. Assim, sem ser rico, tive a ventura de conhecer o melhor do Ocidente e viver em suas cidades mais esplendorosas. Quem faz esta opção acaba perdendo empregos, cargos, carreira e patrimônio. Paciência. Ganhei o mundo e sua memória.

Recebo mail de uma amiga, viajada e cosmopolita, que há horas mora nos Estados Unidos. Para minha surpresa, confessou-me não conhecer Paris nem Roma. Em um primeiro momento, manifestei minha perplexidade. Paris e Roma, hoje, já não são distantes. Já no segundo momento, pensando melhor no assunto, uma pontinha de inveja começou a corroer-me por dentro. Lembrei-me de quando não conhecia a Europa e da excitação com que vi o continente cada vez mais perto de meus pés.

Explico. Minha primeira viagem foi de navio. Ao final de dez dias de navegação, no horizonte foi-se delineando a silhueta do litoral português. Mais algumas horas e já se via a ponte sobre o Tejo. A ponte foi-se se tornando cada vez mais nítida e mais próxima e eu, Colombo às avessas, mesmo vendo a velha e boa terra, não conseguia acreditar que dentro de mais outras horas estaria pisando solo europeu. Devo confessar que só acreditei mesmo depois de fincar os pés no porto. Esta sensação, só temos uma vez na vida. Colombo que o diga.

Outras há que também não se repetem. Entrar lentamente de trem em Paris, vendo cruzar na janela aqueles telhados e chaminés que sempre repousaram nalgum escaninho de nossa memória. Ouvir o chiado dos próprios pés numa viela noturna e silente em Veneza. Quebrar pela primeira vez a crosta de um mar congelado rumo ao Norte. Perfurar pela primeira vez um deserto branco, pleno de neve e silêncio, para cair finalmente, também pela primeira vez, numa densa noite ao meio-dia. Penetrar em um fiorde em uma meia-noite clara como dia. Atravessar as pontes sobre o Neva nas noites brancas de São Petersburgo.

Ouvir o silêncio da noite gelada, no pico de uma montanha enluarada no Sahara. É um silêncio estridente, que fere os ouvidos acostumados aos ruídos urbanos, só entrecortado pelas escassas palavras dos tuaregues contando lendas ao redor de uma fogueira. Se os deuses houveram por bem conceder-me a ventura dessas paragens, hoje tudo isto adquiriu um ar de déjà vu. Certo dia, atravessando o Pont Saint Michel, minha mulher me alertou: notaste que aquilo ali à direita é a Notre Dame? Eu sequer a havia visto. Residira quatro anos em Paris e já não mais a via. Se hoje deploro a condição de quem ainda não passou por estes momentos mágicos, ao mesmo tempo a invejo. Este deslumbramento, eu o perdi para sempre.

Ante as urbes prodigiosas, os viajores do século XIX sofriam uma reação física semelhante a dos peregrinos perplexos ao nelas entrarem. Os visitantes caíam de joelhos em Florença, Roma e Atenas. No caso dos peregrinos, recorria-se à histeria e à doença de San Vito para explicar as convulsões. O mesmo não se diria de hordas mais sensíveis. Em 1817, quando ia entrar na igreja de Santa Croce, em Florença, Stendhal foi tomado por uma espécie de pasmo, teve o pulso acelerado e lhe tremeram as pernas... isso só de antever o que veria lá dentro. A esta experiência, que o escritor francês narra em sua correspondência, convencionou-se chamar de síndrome de Stendhal, a perturbadora agitação do viajante ante a contemplação da beleza.

Esta crise acometeu-me em Cuenca, quando a beleza das cidades da Espanha já começava a saturar-me. Subindo a encosta do penhasco, ao olhar para o alto vi os prédios inclinados que pendiam sobre minha cabeça. Aos poucos, fui perdendo o sentido da verticalidade. Para não cair, olhava só para baixo. Ao chegar, de pernas bambas, à frágil ponte que varava o abismo, não consegui mais manter-me em pé. Sentei no chão e enrolei-me em posição fetal. Crianças saltitavam sobre o vazio, sem medo algum ou espanto. Haviam nascido ali. Para minha satisfação, vi outros estrangeiros apoiando-se nas paredes de rocha para não cair. Isto também só se vive uma vez. Dia seguinte, após tomar um bom vinho na sacada de uma das casas colgadas, enveredei pela ponte e saltitei como as crianças. Vencera Cuenca.

A moça que não conhece Paris não deixa de ser pessoa afortunada: tem ainda síndromes pela frente. A ela, repasso esta saudação de marujos: muita água sob a quilha. Que vasto é o mundo e breve nossa passagem. Santé, Milla!

quarta-feira, julho 18, 2012
 
AINDA OS EQUOS


Declaração enviada ao jornal eletrônico Baguete, onde publiquei crônica comentando a equoterapia:

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EQUOTERAPIA, cuja sigla oficial é ANDE-BRASIL, foi fundada em 10 de maio de 1989 e é uma entidade civil sem fins lucrativos, de caráter filantrópico, assistencial e terapêutico. Tendo sede em Brasília – DF, atua em todo o Território Nacional e foi criadora da palavra Equoterapia e responsável pela implantação das bases metodológicas da Equoterapia no país, enquanto método de reabilitação biopsicossocial. É responsável pela divulgação deste método, apoiando a criação de Centros de Equoterapia por todo o território nacional, cujo funcionamento é normatizado e acompanhado de perto pela própria associação, responsabilizando-se pela capacitação dos profissionais que compõe as equipes de atendimento. As equipes são formadas minimamente por fisioterapeutas, psicólogos e professores de equitação.

Sendo a ANDE-BRASIL uma entidade sem fins lucrativos, o atendimento em Equoterapia no seu centro, o qual funciona na mesma área ocupada pela associação nacional, é totalmente gratuito. Seus centros filiados, espalhados pelo país, se comprometem a manter 20% de seus atendimentos gratuitos. Muitos centros de equoterapia que possuem vínculos com entidades ou organizações mantenedoras promovem seus atendimentos gratuitamente.

Esclareço ainda, que a equoterapia não é moda, já que o uso do cavalo com finalidades terapêuticas tem origens remotas anteriores a Era Cristã. Além do mais, os profissionais que atuam nessa área, são possuidores de cursos superiores (fisioterapia, psicologia, fonoaudiologia, pedagogia, dentre outros) participam de formação complementar apropriada por meio de Cursos Básicos, Avançados e Especializações em Equoterapia para aprofundamento dos conhecimentos, não sendo, portanto “ditos terapeutas”, mas sim, profissionais habilitados para esse fim.

No que diz respeito à Equoterapia, convém esclarecer que se trata de um método terapêutico que utiliza o cavalo dentro de uma abordagem interdisciplinar nas áreas de saúde, educação e equitação, buscando o desenvolvimento biopsicossocial de pessoas com deficiência e/ou com necessidades especiais. É imperioso destacar que o tratamento só poderá ser iniciado após criteriosa avaliação e indicação médica, fisioterápica e psicológica, realizada por profissionais capacitados e credenciados pelos respectivos Conselhos.

O método emprega o cavalo como agente promotor de ganhos no nível físico e psíquico. Esta atividade exige a participação do corpo inteiro, contribuindo, assim, para o desenvolvimento da força muscular, relaxamento, conscientização do próprio corpo, aperfeiçoamento da coordenação motora, do equilíbrio e da autoestima. A andadura do cavalo, ao passo, apresenta um movimento tridimensional reconhecido cientificamente e testado ao longo dos tempos, trazendo inúmeros benefícios ao paciente/praticante. Tal método é reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina (6 de abril de 1997), Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (27 de março de 2008) e Sociedade Brasileira de Medicina Física e Reabilitação (11 de agosto 1993).

Além da aprovação por esses órgãos deliberativos, a equoterapia já é reconhecida por um vasto número de profissionais brasileiros e estrangeiros, que atuam em reabilitação humana e em outras áreas do conhecimento científico, em países onde, aliás, esta atividade adquiriu várias denominações, ao longo dos mais de 50 anos de sua existência. Na Alemanha, esta modalidade de terapia surgiu em 1960, seguida pela Suíça, França, Itália, Estados Unidos e encontra-se hoje disseminada pelo mundo todo. Através do site da Federação Internacional “Horses in Education and Therapy”, HETI, em: www.hetifederation.org é possível ter-se uma ideia da amplitude e importância desta terapia.

Jorge Dornelles Passamani - Associação Nacional de Equoterapia (Ande-Brasil).

Só hoje li a manifestação da Ande-Brasil. Embora não me cite, obviamente é a mim dirigida. Muito honrado. Mas o texto deixa algumas perguntas. Se “os profissionais que atuam nessa área, são possuidores de cursos superiores (fisioterapia, psicologia, fonoaudiologia, pedagogia, dentre outros) participam de formação complementar apropriada por meio de Cursos Básicos, Avançados e Especializações em Equoterapia para aprofundamento dos conhecimentos, não sendo, portanto “ditos terapeutas”, mas sim, profissionais habilitados para esse fim”, isto significa que não existe algo específico que se possa chamar de formação em equoterapia.

Seria interessante especificar quais seriam os “dentre outros”, citados na nota a propósito de cursos. Filosofia vale? No Rio Grande do Sul, os “filósofos” estão invadindo o mercado cativo dos psicanalistas. Pode ser padre? Os “defroqués” há muito invadiram o campo da psicologia.

Pai de santo vale? Se curso superior é critério, já temos pais de santo com nível superior. A Faculdade de Teologia Umbandista de São Paulo formou, em 2007, seus 35 primeiros graduados, que cursaram sociologia, psicologia, filosofia, ciências políticas, matemática, artes e lógica. Também estudaram anatomia, botânica, administração templária e sistemas filo-religiosos. A meu ver, estão amplamente habilitados a exercer o novel ofício.

A equoterapia, como a psicanálise, ainda não está regulamentada como profissão. Ou seja, qualquer pessoa, sem formação específica alguma, pode ser psicanalista ou equoterapeuta. O que em nada enobrece a profissão. O método pode ser reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina, pelo Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional e pela Sociedade Brasileira de Medicina Física e Reabilitação. Não está regulamentado por lei.

Leio que, no ano passado, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) aprovou projeto de lei que regulamenta a prática da equoterapia como método terapêutico e educacional. Daí à regulamentação, medeia ainda uma longa distância. Sem falar que é muito estranho ver autoridades da Agricultura e Reforma Agrária definindo uma terapia.

“A andadura do cavalo, ao passo, apresenta um movimento tridimensional reconhecido cientificamente e testado ao longo dos tempos, trazendo inúmeros benefícios ao paciente/praticante”. Não vou discordar. Mas então basta cavalgar, ora bolas.

“Esta atividade adquiriu várias denominações, ao longo dos mais de 50 anos de sua existência. Na Alemanha, esta modalidade de terapia surgiu em 1960, seguida pela Suíça, França, Itália, Estados Unidos e encontra-se hoje disseminada pelo mundo todo”. Ora, a psicanálise é bem mais antiga e muito mais difundida no mundo todo. E hoje está universalmente desmoralizada. A astrologia também.

Tivesse eu posto em dúvida a utilidade da engenharia ou da medicina, certamente não teria recebido resposta alguma das entidades de classe de engenheiros ou médicos. São profissões que não têm dúvida alguma de suas eficácias. O mesmo não parece ocorrer com os equoterapeutas.