¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, março 31, 2013
 
O FUTURO DE UMA PRINCESA


Em reportagem do correspondente xiita em Teerã, Samy Adghirni, leio na Folha de São Paulo de hoje entrevista com Eliezer Ranieri, brasileiro recrutado pelo Irã para estudar teologia muçulmana em Qom. Elezier casou e teve uma filha, Amirah (princesa), hoje com um ano e cinco meses. Quer garantir para ela uma educação muçulmana. O futuro teólogo, que rejeita a liberdade sexual no Brasil, considera que a brasileira tornou-se uma mulher objeto e diz que sua nova vida no Irã é maravilhosa.

Eliezer converteu-se ao Islã sunita em 2001, na mesquita de Santos. Sete meses atrás, tornou-se muçulmano xiita. Está há dois em Qom. Segundo ele, o problema do Islã no Brasil é a influência wahabita, corrente sunita ultrarradical surgida na Arábia Saudita que inspirou a Al Qaeda de Osama bin Laden. “Os wahabitas propagam uma visão incorreta do Islã, com ideias extremistas e opressão contra outras opções religiosas”.

Não por acaso, o jornalista xiita da Folha, em artigo anterior, já comentava o pacifismo dos xiitas: “Aproveito a sua atenção, caro leitor, para corrigir uma inverdade amplamente difundida no Brasil, pela qual xiitas seriam mais “radicais” que sunitas. Pura bobagem. Xiitas não são e nunca foram mais extremistas que os sunitas. Aliás, hoje o grupo mais violento entre facções islamitas é a Al Qaeda, sunita”.

Como se os xiitas fossem uma facção de carmelitas descalças. Ainda há pouco eu comentava que o correspondente nunca escreveu para seus leitores sobre os milhares de muçulmanos xiitas ensangüentados, que realizam o ritual de autoflagelação com facas, correntes e chicotes com pregos, em que homens e crianças cumprem nas ruas a tradição religiosa da Ashura, que marca o aniversário da morte do imã Hussein, neto do Profeta. Verdade que o Irã tem coibido tais atrocidades, mas não deixa de ser uma prática dos xiitas, esses crentes que “não são e nunca foram mais extremistas que os sunitas”. Imagine então o leitor do que são capazes os sunitas.

O xiismo está na origem do grupo terrorista Hezbollah. A organização se anunciou no Líbano, em outubro de 1983, explodindo um caminhão-bomba dirigido por um militante-suicida contra um quartel da Infantaria de Marinha dos EUA, perto do Aeroporto de Beirute, causando 241 mortes. Pouco tempo depois, um outro caminhão foi lançado contra um quartel das tropas francesas, também em Beirute, deixando 58 vítimas.

Na lista de principais atentados constam: quartel do Exército israelense na cidade de Tiro, no Líbano, em 4 de novembro de 1983 (60 mortos); embaixada da França e EUA no Kwait, em 12 de dezembro de 1983 (7 mortos); anexo da embaixada dos EUA em Beirute, em 21 de setembro de 1984 (23 mortos); embaixada dos EUA em Beirute, em 8 de abril de 1993 (63 mortos.

A organização foi criada por inocentes eclesiásticos xiitas, influenciados pelos ideais do aiatolá Khomeini, e seus membros foram formados e disciplinados por um grupo da Guarda Revolucionária Iraniana. Entre seus objetivos estão: eliminar toda organização de tendência colonialista, julgar os falangistas pelos crimes cometidos e criar um estado muçulmano no Líbano.

Eliezer ganhou uma bolsa de estudos religiosos na universidade Internacional de Qom. “O custo da vida é muito baixo. Minha bolsa mensal equivale a cerca de R$ 100, mas aqui tudo é tão barato”. Como se uma família de três pessoas pudesse subsistir com 50 dólares. Quer criar sua filha “num ambiente islâmico adequado”.

Ou seja, vai afastar uma criança deste país onde a mulher é dona de seu nariz livre para vestir-se, trabalhar como bem entende, para uma teocracia, onde mulheres não podem sair sozinhas às ruas, receberão cuspidas na cara se não usarem o xador. Só podem sair na companhia do marido ou de um parente, têm de obedecer ao marido e não têm chances de trabalhar. Vai furtar a liberdade de uma brasileira, para jogá-la na escravidão.

Para Elezier, no Brasil os valores morais estão invertidos. “Você ensina o certo, mas seu filho sai na rua e vê homem com homem, mulher com mulher, tudo permitido em nome da democracia e da liberdade”. O estudante de teologia sabe o que quer: um país onde os homossexuais são condenados à morte pela forca.

“No Brasil, a pessoa vai para uma balada, fica com alguém, acaba no motel e na semana seguinte faz a mesma coisa com outro parceiro. O sexo antes do casamento cai na banalidade e prejudica a sociedade. Por mais que as feministas digam que não, a mulher brasileira é, sim, um objeto. Poder andar na rua pelada é uma liberdade falsa”.

Como se fosse crime ir a motéis ou ter vários parceiros, e não direito de toda mulher. Como se as brasileiras andassem peladas nas ruas. Mulher não é objeto só em país onde não tem voz nem direitos. Elezier sabe o que quer: um país onde as adúlteras são condenadas à morte por lapidação.

“Além disso, nosso plano é voltar a morar no Brasil dentro de uns dez anos, quando eu estiver formado e apto a mostrar o Islã verdadeiro aos brasileiros”. Ou seja, o Estado iraniano está apostando na expansão no Brasil de uma facção religiosa que já gerou um grupo terrorista no Líbano, com o patrocínio do Irã.

Se está falando do islamismo iraniano, está falando do sigheh, o matrimônio temporário permitido pelo ramo xiita do Islã, que pode durar alguns minutos ou 99 anos, especialmente recomendado para viúvas que precisam de suporte financeiro. Reza a tradição que o próprio Maomé o teria aconselhado para seus companheiros e soldados. O casamento é feito mediante a recitação de um versículo do Alcorão. O contrato oral não precisa ser registrado, e o versículo pode ser lido por qualquer um. As mulheres são pagas pelo contrato.

Esta prática foi aprovada após a "revolução" liderada pelo aiatolá Khomeiny, que derrubou o regime ocidentalizante do xá Reza Palhevi, como forma de canalizar o desejo dos jovens sob a segregação sexual estrita da república islâmica. Num passe de mágica, a prostituição deixa de existir. O que há são relações normais entre duas pessoas casadas. Não há mais bordéis. Mas casas de castidade. A cidade está limpa. O Irã revolucionário resolveu definitivamente essa chaga que aflige as sociedades ocidentais.

“Por mais que eu mostre o caminho certo e queira que ela tenha Deus no seu coraçãozinho, ela é quem vai decidir seu futuro”, diz Eliezer a propósito de sua filha.

Um radioso futuro espera por Amirah.

sábado, março 30, 2013
 
O AÇÚCAR COMO VENENO


Leio na Zero Hora:

O consumo de refrigerantes, sucos industrializados e outras bebidas açucaradas pode estar associado a cerca de 180 mil mortes por ano no mundo, de acordo com uma pesquisa apresentada recentemente no congresso da Associação Americana de Cardiologia.

Os autores usaram dados do estudo The Global Burden of Disease (literalmente, O Peso Global da Doença), de 2010, e relacionaram a ingestão de bebidas açucaradas a 133 mil mortes por diabetes, 44 mil mortes por doenças cardiovasculares e 6 mil mortes por câncer. Cerca de 80% dessas mortes ocorreram em países de renda média ou baixa.

Os pesquisadores calcularam as quantidades consumidas dessas bebidas por idade e sexo, os efeitos desse consumo na obesidade e no diabetes e o impacto das mortes relacionadas a essas doenças. A Associação Americana de Bebidas afirmou que o estudo traz "mais sensacionalismo do que ciência".

Já comentei o assunto no século passado, em 1989. Não que a descoberta fosse minha. Mas de Carson Ritchie, cujo ensaio Food in Civilization - How History Has Been Affected by Human Tastes alerta para os efeitos danosos do açúcar. O livro foi publicado em 1981.

Ritchie um dia convidou alguns amigos a um bom restaurante. Jantaram à la farta e tudo transcorreu muito bem, pelo menos até o momento da dolorosa. Ritchie puxou a carteira e nela não encontrou dinheiro suficiente. Teve de apelar aos amigos que convidara para jantar. Passado o episódio, considerou que a história da alimentação em algo se parece com esta anedota: quando chega o momento de pagar o banquete, podemos descobrir que aquilo que desfrutamos custa bem mais do que estávamos dispostos a pagar quando nos sentamos à mesa. Terá sido talvez esta gafe o que deu origem a seu livro.

"O açúcar para adoçar o chá e o café europeu - escreve Ritchie - foi cultivado às custas da escravidão negra. Os peles vermelhas foram expulsos sem piedade das pradarias onde caçavam para que o homem branco pudesse cultivar trigo e milho, e seus búfalos foram exterminados para dar lugar a grandes rebanhos vacuns. Os escritores norte-americanos responsabilizaram as grandes multinacionais fruticultoras pelo caos das economias centro-americanas, construindo ferrovias ilegais, sonegando impostos, manipulando os baixos salários da mão-de-obra não qualificada (já por si suficientemente baixos), expropriando as terras dos camponeses e exaurindo a fertilidade do solo. E tudo isso para que os norte-americanos tivessem bananas como sobremesa!"

Ao debruçar-se sobre os efeitos dos alimentos na História, Ritchie descobre que foram os conceitos errôneos de alimentação e não os corretos, os que demonstraram ter maior influência. "Crenças em que as especiarias aumentavam a virilidade, que o açúcar era essencial para a saúde, ou que para ser forte devia-se beber muita cerveja, condicionaram mais os destinos da humanidade que as autênticas e consolidadas leis da ciência da alimentação".

Mas como convencer minha Cristina de que seu vício não passa de um hidrato de carbono sem nenhum valor alimentício? Se os europeus, para açucarar suas tardes, destruíram homens e culturas, na África e nas ditas Índias Ocidentais, como queixar-me de minha faxineira?

Já vi universitários e professores universitários se lambuzando com sorvetes, que além de açúcar contém algo mais nocivo, o sal. (Isso até que não é tão grave: há universitários que acreditam em Deus). Pior ainda, já vi muitos destes senhores que, por uma questão de ofício possuem, ou deveriam possuir, noções de bem comer, dando sorvetes a seus filhos. Assim sendo, sempre tenho em casa um açucareiro cheio para saciar os instintos primários de Cristina e de eventuais formigas que já descobriram o mapa da mina. Sem falar que, quando o café é forte, tipo exportação, não me furto a ajuntar-lhe uma colherinha de veneno.

Pois este hidrato tão prestigiado, que no fundo só serve para produzir cáries, obesidade e doenças cardíacas, produziu mais estragos na trajetória do ser humano do que o próprio sal, que pelo menos tem a virtude de conservar as carnes, fator aparentemente banal mas decisivo na caminhada do Homo sapiens, seja rumo ao combate, seja rumo a descobertas. E já fez levas de jovens do mundo todo partirem em revoadas rumo àquela ilha tanto amada por Paulo, Cardeal Arns, para cortar cana em prol da revolução.

Pois a cana-de-açúcar deve ser colhida rapidamente quando madura e Castro, preocupado em seguir as diretrizes de Moscou, mandou para Angola a juventude cubana, onde, em vez de ceifar cana, ceifaram vidas alheias e muitas vezes perderam as suas. Mas Estados Unidos, Europa, América Latina e mesmo o Brasil, pronto supriram a falta de mão-de-obra. Milhares de jovens, que jamais haviam visto de perto um canavial, bravamente acorreram, de machete em punho, em apoio à ditadura cubana.

O açúcar foi introduzido no mundo mediterrâneo por Dario, o rei dos persas, trazido da Índia após suas conquistas por lá. Difundiu-se pela Europa e passou ao Novo Mundo graças aos colonizadores espanhóis. Hernán Cortez introduziu a cana-de-açúcar no México. O Caribe proporcionava ao açúcar o clima mais adequado que seu próprio lugar de origem, a Índia, pois lá chovia muito mais. Acontece que os espanhóis jamais iriam trabalhar se encontrassem alguém que o fizesse por eles.

A tarefa foi delegada, se assim se pode dizer, aos índios caribes e arawaks, culturas que logo foram exterminadas. Tendo de buscar mão-de-obra em outra parte, os colonizadores das "Índias Ocidentais" deram uma piscadela de olhos aos portugueses. Estes, tendo observado que os índios, não se adaptando ao trabalho duro, morriam na colheita de açúcar, os deixaram de lado e foram buscar escravos na África.

"Já que espanhóis e portugueses haviam começado a desenvolver suas plantações de cana com a colaboração dos escravos negros, todos os demais pensaram que tinham de seguir seu exemplo. Se assim não faziam, expunham-se a produzir um açúcar mais caro, sem saída no mercado. Resulta irônico comprovar a que ponto haviam chegado os primeiros colonos franceses e ingleses no Caribe: homens idealistas, freqüentemente perseguidos por suas crenças religiosas, e muitas vezes indivíduos de princípios elevados que queriam viver de uma forma mais livre da qual lhes era permitido viver na Europa". Pois estes senhores, diz-nos Ritchie, tornaram-se escravocratas nas Índias Ocidentais. Para satisfazer o paladar europeu.

Outro subproduto da cana, o rum, serviu para incrementar o tráfico de escravos. Quando surgem as primeiras campanhas abolicionistas, seus líderes implantam o primeiro boicote ao comércio infame, adoçando o café com nata em vez de açúcar, e pedindo conhaque francês em lugar de rum. Para ajudá-los a propagar suas idéias, lady Henderson, comerciante em Londres, vende açucareiros com gravado em letras douradas: "Açúcar das Índias Orientais, não produzido por escravos".

Ritchie considera que se o açúcar fosse descoberto hoje seria classificado como droga. Droga que já produziu mais estragos em sua trajetória – acrescentemos – do que a maconha ou cocaína.

sexta-feira, março 29, 2013
 
MINHAS FONTES DE RENDA


Soube por um leitor que o Astrólogo – que não sabemos de que vive nos Estados Unidos – quer saber do que vivemos, eu e o Rodrigo Constantino. Quanto ao Rodrigo, pouco ou nada sei de sua vida, senão que é economista, alimenta um blog e publicou um livro – ou mais, talvez. Quanto a mim, minhas fontes de renda são mais que conhecidas. Há controvérsias, mas em todas um fundo de verdade. Como um pouco de mistério não faz mal a ninguém, prefiro não as dirimir.

Na universidade, anos 60, para custear meus estudos, segundo boa parte de meus colegas – em sua maioria comunistas e trotskistas – eu prestava serviços ao DOPS gaúcho. O que me fez perder não poucas mulheres. Lembro que, na época, um episódio fez folclore em Porto Alegre. Estava com uma árdega jornalista debaixo de um chuveiro (vínhamos da praia), ambos nus, quando ela me repeliu suavemente com os braços: "Estou com vontade, mas me desculpa. Não combinamos política e ideologicamente". Se quéis, quéis, se não quéis, diz – como dizem os catarinas. Não insisti. Assim eram aqueles anos e fiquei a ver navios.

Finda a universidade, fui para Estocolmo. Minha camuflagem era a de jovem imigrante em busca de trabalho. Mas jantava à luz de velas nas caves centenárias do Fem Små Hus. Na época, a Suécia constituía um dos locais de asilo preferidos pelos comunistas brasileiros, que comunista que se preze não é maluco a ponto de pedir asilo em Cuba ou Moscou. Em 71, assistindo uma palestra de um guerilheiro urbano, nos salões da ABF, ouvi gritos de vitória como "A revolução é amanhã", "O povo está nas ruas", "O país está pronto para explodir". Da platéia, à guisa de provocação, enviei um bilhetinho ao palestrante. Que, de fato, o povo estava nas ruas... comemorando a vitória do Brasil na Copa do Mundo. Perguntava se ele não se pejava de estar viajando pela Suécia, hospedado em hotéis cinco estrelas, paparicado como herói pelas louras nórdicas, enquanto seus companheiros de luta sofriam tortura e prisão no Brasil.

Eu escrevera em sueco. (Meus superiores financiaram um curso intensivo da língua). Meu bilhete passava de mão em mão, como brasa quente, e nenhum dos participantes da mesa ousava traduzi-lo. Como me pareceu que não iam lê-lo, acabei abandonando a palestra. Em boa hora. Meu bilhete acabou sendo lido e, se eu lá estivesse, talvez não fosse linchado pelos bravos suecos, mas certamente passaria por maus momentos. De agente do DOPS, fui imediatamente promovido a agente do SNI, pago pela ditadura militar para vigiar os revolucionários no exílio.

Em 77, após ter percorrido toda a Europa, fiquei quatro anos em Paris. Nova e imediata promoção. Agora trabalhava para a CIA. Como era regiamente pago, me entreguei à libidinagem e à bona-xira. Belas mulheres, cuisine du terroir e muito vinho no Tour d'Argent, Maxim's, Bofinger, Brasserie Lipp, Le Grand Véfour, Select Latin, Julien, Train Bleu, Au Pied de Cochon. Minhas funções haviam se multiplicado, passei a monitorar a diáspora latino-americana. Expandi meu campo de ação e passei a vigiar adoráveis russas, polacas e iugoslavas.Permaneci nesta função até o final dos 80, tendo sido designado para Madri em 86, graças a meu domínio do espanhol. Comme d’habitude, la haute cuisine: Lhardy, Sobrino de Botín, El Oriente, Gijón, El Espejo.

Com a queda do Muro, não vi muito futuro na CIA. Como sói acontecer nesse universo, informação é bem paga de qualquer lado. Segui o caminho de Kim Philby. Entrei em contato com agentes do Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti – mais popularmente conhecido como KGB – e repassei dossiês do Ocidente aos camaradas soviéticos. Nunca imaginei que meus estudos de russo na PUC de Porto Alegre, no final dos 60, com o saudoso professor Sergei Zhukov, me seriam de tanta valia. Com a dissolução da URSS e o fim da KGB em 91, continuei trabalhando normalmente no FBS.

A profissão é arriscada e tensa, mas tem suas compensações. Foram dias de muitas viagens. Toda missão, todo contato, precisa ser camuflado. Uns adotam o disfarce de homens de negócios, outros de ornitólogos ou missionários. Adotei o mais confortável, o de turista. Melhor ainda, de turista milionário. Uma viagem à Rússia significava um magnífico roteiro pelos fjordes noruegueses, Estocolmo, cruzeiros pelo Báltico, Helsinqui e, finalmente, um discreto pulo a São Petersburgo. Freqüentei bons restaurantes, como o Literaturnaia Café e o Nicolai. Apesar de suntuosos, em termos de Europa não podem ser considerados caros, por 20 dólares por cabeça se comia e se bebia a gosto. Mas lá não havia um único russo como cliente, apenas turistas. Um almoço e lá se vai o salário mensal do coitado. A menos que seja, é claro, um alto capo das máfias russas, meus alvos de interesse.

Da mesma forma, em outras missões, fiz insuspeitas visitas às ilhas gregas e canárias. Para infiltrar-me nos círculos de Miguel Arraes, na Argélia, percorri por quinze dias as montanhas de El Hogar, para só depois chegar a Zeralda. Em minhas missões no Leste Europeu, percorri primeiro Alemanha e Dinamarca, só então visitei meus alvos, Praga e Budapest. Em Copenhague, freqüentava o Moma. Não que tais resturantes de nouveaux riches sejam meus diletos. Camouflage oblige. Em Pest, meu aparelho era o soberbo Boscolo, que abriga o Café New York.

De Praga, para dar mais verossimilhança a meu papel de turista, fiz uma estação de águas em Karlovy Vary, hospedado no suntuoso Grandhotel Pupp. Quem acha que os requintados ambientes dos filmes de James Bond são ficção desconhece nossos ambientes de trabalho. É assim mesmo.

Mas tudo que é bom dura pouco, dizem as gentes. Com o fim da Guerra Fria, a dolce vita acabou de vez. Como comunismo e droga estão sempre interligados, em meus dias de Paris tive fartos dados sobre Cuba e Bolívia. Marxismo é breve, a droga é eterna. Neste meu merencório climatério, forneço informações para um cartel de Medellín.

Voilà la source de mes revenus. Saudades dos travosos vinhos do Leste, da slivovica e do becherovka.

quinta-feira, março 28, 2013
 
EM APOIO AO PASTOR


Leio no Estadão de hoje que, na tentativa de retirar o deputado e pastor evangélico Marco Feliciano do comando da comissão de Direitos Humanos, uma vez que ele se recusa a renunciar, o PPS decidiu entrar na próxima terça-feira, 2, com processo por quebra de decoro parlamentar contra o pastor no Conselho de Ética do Congresso. O colegiado tem a possibilidade de decidir por um afastamento de Feliciano da função. "Precisamos acabar de vez com a situação vexatória vivida na a Câmara desde a eleição do pastor para presidir o colegiado", afirmou o deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA).

Para o PPS, além das acusações de racismo e homofobia, o pastor precisa explicar denúncias de uso irregular de verbas de sua cota na Câmara. Jordy alega que Feliciano paga com dinheiro público escritórios de advocacia que lhe defendem em processos de interesse pessoal. O pastor nega irregularidade. O deputado do PPS defendeu ainda como outra alternativa uma renúncia coletiva dos integrantes da comissão de Direitos Humanos, mas a idéia deve ser descartada pelos líderes porque a maioria do colegiado é composta por apoiadores do pastor.

Medíocres tempos estes nossos, em que me vejo obrigado a defender um pastor evangélico. Que o deputado seja afastado por uso irregular de verbas, é normal. Se bem que assim sendo, o Congresso ficaria reduzido à metade, ou muito menos. Que seja afastado por opinião, é voltar aos tempos da ditadura. É o que quer um punhado de gatos pingados, que constituem certamente a minoria mais barulhenta do país.

Quem me acompanha sabe que sou ateu e mantenho uma distância crítica de todas as religiões. Apesar de ser ateu, defendo a existência de todas elas. Se o ser humano gosta de ser enganado, amém! Mas os tais de pastores evangélicos há muito deviam estar na cadeia. Não administram religiões, mas caça-níqueis. Isso sem falar no exercício ilegal da medicina. Em cada emissão televisiva, os milagres superam de longe o número de milagres que Cristo realizou em toda sua vida. Ocorrem em cadeia industrial, ao ritmo de dois ou três por minuto. O pastor até parece entediar-se com a freqüência dos mesmos e descarta rapidamente o miraculado que tem nos braços para abraçar o seguinte.

Durante algum tempo, dediquei alguns minutos na madrugada para assistir às pregações dos pastores. (Ultimamente, cansei). Não que pretendesse ouvir suas baboseiras. O que me fascinava era ver aqueles templos imensos lotados, com quatro mil, cinco mil ou mais pessoas, sem que se veja uma só cadeira vazia, todos fanatizados por um discurso estúpido e obviamente desonesto. Gosto de ver quando a câmera foca rostos. Pessoas de boa aparência, com traços até mesmo inteligentes, hipnotizadas pela lábia precária do pastor.

É meu modo de entender melhor o mundo. Vivo em um pequeno universo rarefeito, de poucos amigos, todos cultos e inteligentes. Corro o risco de achar que o mundo é mais ou menos assim. A televisão então me mostra, sem que eu precise sair de casa, a verdadeira face dessa pobre humanidade. Os pastores, sem nenhum pudor, ensinam como preencher cheques e boletos bancários.

Ainda há pouco, o pastor Silas Malafaia – muito admirado pelo recórter tucanopapista hidrófobo da Veja, o Reinaldo Azevedo – pedia 1000 reais de cada crente, com a promessa de bênção financeira e salvação de almas. O objetivo era conseguir um milhão de ofertantes e garantir com isso a salvação de um milhão de almas.

Mais ainda: não contente de cobrar o dízimo, Silas Malafaia inventou o trízimo, que cobra até dos desempregados. Pede quantia equivalente ao dinheiro do aluguel, com a promessa de casa própria para o pobre diabo. Em pleno século XXI, ainda há quem caia nesse tosco conto do vigário.

O pastor Feliciano pertence à mesma raça de vigaristas. Mas vigarista por vigarista, o Congresso está cheio deles. Feliciano foi eleito deputado com mais de 200 mil votos, e eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos por seus pares. Contra a vontade do dito povo e dos demais deputados, ergueu-se uma chusma de ativistas, que querem retirar o deputado da presidência da comissão. Querem afastar o deputado no grito. Só porque teria manifestado sua condenação aos homossexuais – que antes de ser dele é bíblica.

E por ter dito uma frase infeliz sobre os africanos, como se Lula não dissesse frases atrozes todos os dias. Ou alguém não mais lembra quando Lula, em entrevista à Playboy, em 1979, manifestou sua admiração por Hitler: "O Hitler, mesmo errado, tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer". Este senhor chamava-se – e ainda se chama – Luís Inácio Lula da Silva. Jamais ouvi alguém chamá-lo de nazista. Nazista é adjetivo reservado ao deputado Bolsonaro que, pelo que me consta, jamais manifestou apreço ao Fürher.

Não bastasse sua admiração pelo ditador alemão, manifestou seu apreço pelo celerado iraniano, o aiatolá Khomeini: "Eu não conheço muita coisa sobre o Irã, mas a força que o Khomeini mostrou, a determinação de acabar com aquele regime do xá foi um negócio sério".

Foi eleito e reeleito. O deputado Feliciano, também eleito, é instado a renunciar, por suas opiniões sobre homossexualismo. O pastou bate pé e diz que não renuncia. Espero que não. Porque no dia em que um deputado legitimamente eleito para uma comissão tiver de renunciar em função da gritaria de baderneiros, acabou a democracia no país.

O deputado Natan Donadon foi considerado culpado pelo Supremo em outubro de 2010 por liderar uma quadrilha que desviava recursos da Assembléia Legislativa de Rondônia. Os desvios teriam ocorrido entre 1995 e 1998, num total de R$ 8,4 milhões. A condenação foi decidida por 7 votos a 1, com pena de 13 anos, 4 meses e 10 dias de prisão em regime fechado, além de multa. O deputado não foi preso porque poderia recorrer em liberdade. Continua exercendo seu mandato, sem que ninguém peça sua renúncia.

Isso sem falar em Renan Calheiros, recordista de atos secretos - 260 de 663 atos tabelados - em favor de aliados, que hoje preside o Senado. Verdade que houve tímidos protestos na avenida Paulista, e outros no Facebook, por parte da militância de sofá. Mas ninguém foi bagunçar as sessões que preside no Congresso.

Ou José Genoíno e João Paulo Cunha, condenados pelo STF no julgamento do mensalão. Genoíno, condenado a seis anos e 11 meses pelos crimes de formação de quadrilha e corrupção, impertérrito, assumiu a vaga que ocupava como suplente pelo PT. João Paulo Cunha, condenado também pelo STF a nove anos e quatro meses pelos crimes de peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, continua exercendo o cargo de deputado federal pelo PT. Condenados por desobedecerem a lei, hoje elaboram leis. Não ouço protesto algum das esquerdas contra estes senhores.

Ou seja, formação de quadrilha, corrupção, peculato e lavagem de dinheiro pode. O que não pode é manifestar-se contra o homossexualismo, direito de todo cidadão.

As badernas promovidas pela chusma de bagunceiros não seriam toleradas nem em bordel. Só são toleradas no Congresso Nacional. Se alguém ainda tem algum apreço pelo Estado de direito, urge apoiar o pastor.

O tempora, o mores.

quarta-feira, março 27, 2013
 
NÓS, ATEUS, E A BÍBLIA


Um ateu fazendo comentários sobre a Bíblia? – espanta-se um leitor, referindo-se ao último artigo que escrevi sobre os prazeres da teologia. Para início de conversa, não me consta que nada proíba que um ateu comente a Bíblia. Diga-se de passagem, tenho visto mais ateus comentando a Bíblia com propriedade do que crentes. Ateus, somos curiosos. Queremos saber. O crente se contenta em crer. O leitor, pelo jeito, tem poucas luzes e pouca familiaridade tem com a leitura. Se tivesse, saberia que uma das mais reputadas histórias do cristianismo foi escrita por um ateu.

Falo de Ernest Renan (1823-1892) e de sua História das Origens do Cristianismo, dividida em sete volumes: Vida de Jesus, Os Apóstolos, São Paulo, Anticristo, Os Evangelhos e a Segunda Geração Cristã, A Igreja Cristã e Marco Aurélio e o Fim do Mundo Antigo. Este trabalho lhe tomou vinte anos de pesquisa. O primeiro volume sobre Jesus, foi tido como “um dos grandes acontecimentos do século". Não bastasse isto, Renan ainda escreveu uma História do Povo de Israel, em mais dez volumes.

Em História das Origens do Cristianismo, Renan traça o percurso da triunfante seita dissidente do judaísmo, desde Cristo até o reinado de Constantino, que “inverteu os papéis, e fez do mais livre e espontâneo religioso um culto oficial, sujeito ao Estado e não já perseguido, mas perseguidor”. O autor era tão fascinado pelo Cristo a ponto de sua obra ter sido incluída no Index Prohibitorum da Igreja Romana. Toda pessoa fascinada pelo Cristo sempre vai bater de frente com os papistas.

Mais ainda: fui introduzido na leitura de Renan por um outro ateu empedernido, o Dyonélio Machado. Apesar de comunista, era leitor atento da Bíblia, que estava sempre em um atril, em destaque em sua biblioteca. Em nossas charlas, Dyonélio me conduzia ao atril, me indicava um trecho da Bíblia e depois íamos procurá-lo na obra de Renan.

Já falei de meu urologista. É judeu e ateu, e vive lendo livros sobre a bíblia, judaísmo e cristianismo. A cada consulta, dedicamos alguns minutos aos problemas de saúde e uma boa hora à troca de bibliografias. Seguido o encontro em um café do bairro, sempre com uma pasta, sempre cheia de novos títulos. É o único médico que visito com prazer. Em minha última consulta, enquanto seus pacientes pacientavam, entre outros títulos, prescreveu-me um que julgo excelente, ensaio de Pepe Rodríguez (também ateu), Mentiras Fundamentais da Igreja Católica. Recomendo vivamente. As pessoas que menos conhecem a Bíblia são justamente aquelas que vivem com ela debaixo do sovaco. Vêem um livro de amor onde há ódio, genocídio, massacre e incitação ao massacre. Javé ordena Israel a matar os amorreus, heteus, ferezeus, cananeus, heveus, jebuseus, mais tribos do que massacrou Maomé. O bom deus dos judeus e cristãos manda massacrar, arrasar, degolar, destruir cidades, matar tudo que respire. O crente não vê nada disso. Se vê, acha perfeitamente salutar, digno e justo arrasar as tribos que não prestavam culto a Javé.

Outro grande estudioso da Bíblia, também ateu, é o crítico literário Harold Bloom, autor de Jesus e Javé. Judeu, Bloom vê pouca evidência de um Jesus histórico - quem ele foi, o que dizia. “Não há uma frase a respeito de Jesus em todo Novo Testamento, escrita por alguém que tenha conhecido o relutante Rei dos Judeus".

Segundo o autor, o Novo Testamento não é tanto uma continuação do Antigo Testamento mas sim um texto que o repudia. Com o que estão de acordo os mais importantes historiadores do cristianismo. Se Cristo era judeu e disse vir para cumprir a lei de Moisés, o mesmo não pensava um outro judeu, Paulo de Tarso, que no fundo é o construtor do cristianismo.

Bloom lê a Bíblia como crítico literário, não como teólogo. Para ele, o que a maioria gosta de pensar como uma herança judaico-cristã é uma ilusão, resultado de uma calculada leitura errada de passagens do Velho Testamento que fazem parecê-las profecias cristãs. “Comecei a escrever Jesus e Javé quando me convenci de que cristãos e judeus supervalorizavam o texto bíblico e liam metáforas como se fossem verdadeiras”.

Outro excelente exegeta da Bíblia - também ateu, para variar – é Bart Ehrman, autor que tenho citado em minhas últimas crônicas. PH.D. em teologia pela Universidade de Princeton e professor de estudos religiosos na Universidade da Carolina do Norte, Ehrman tornou-se ateu quando saiu a pesquisar as cópias dos textos bíblicos em bibliotecas mundo afora. O que prova que nenhuma fé resiste a uma leitura atenta da Bíblia.

À guisa de conclusão, listo os livros de Ehrman encontráveis no Brasil. Recomendo a todo leitor que pretenda fazer uma leitura percuciente da Bíblia.

A Verdade e a Ficção em o Código da Vinci. São Paulo: Record, 2005

O que Jesus Disse? O que Jesus Não Disse? Quem mudou a Bíblia e por quê. São Paulo: Editora Prestígio, 2006

Pedro, Paulo e Maria Madalena: A verdade e a lenda sobre os seguidores de Jesus. São Paulo: Editora Record, 2008

Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não chegamos a conhecer. São Paulo: Editora Record, 2008

O Problema com Deus: As respostas que a bíblia não dá ao sofrimento. São Paulo: Agir, 2008

Quem Jesus Foi? Quem Jesus Não Foi? São Paulo: Ediouro, 2010

Boas leituras, leitor!

terça-feira, março 26, 2013
 
INCULTURA NAS REDAÇÕES *


Ainda em meus dias de Folha, escrevendo sobre uma escaramuça qualquer no planeta, fiz uma manchetinha mais ou menos assim: OBUS MATA UM E FERE TRÊS. Mal viu o título na rede, um jovem editor reclamou:

— Obus? O que é isso?

Obus, expliquei pacientemente, é uma peça pequena de artilharia, um tipo de morteiro. Também chama-se obus a granada ou bala lançada por esse morteiro.

— Ah, mas o leitor não vai entender. Ninguém sabe o que é obus.

De minha parte, eu desconhecia palavra mais concisa que obus para dizer tiro de morteiro. Para minha sorte, um dos editores fizera serviço militar. Sim, é isso mesmo, é obus. "Mas vocês fizeram serviço militar, disse o primeiro. O leitor, nem sempre". O que, pelo menos no que a mim dizia respeito, era falso. Nunca fiz serviço militar. Quando menino eu fazia, isto sim, palavras cruzadas. Projétil de morteiro, quatro letras? Obus.

Meses mais tarde, novo conflito com os redatores hostis ao vernáculo. Me caíra nas mãos um TL (texto-legenda) para titular. Na foto, uma mulher de mãos postas e cabeça inclinada manifestava sua adoração por algo ou alguém. Nem hesitei: EM SINAL DE PREITO. Mal o texto chegou em sua tela, o editor, sempre alerta, gritou de sua baia:

— Preito? O que é isso?

Juntei minhas mãos, inclinei a cabeça e disse:

— Preito é isto.

— Ah, mas então deve ser uma palavra muito antiga.

De fato, era bem mais antiga que eu. Como aliás a maioria das palavras que eu ou você usamos. Lembrei-me do obus e fui tomado de súbita iluminação. Para aquele menino, formado na reputadíssima ECA, palavra que ele não conhecia certamente o leitor também não a conhecia. Os leitores do jornal eram nivelados pelo padrão do que ele ignorava.

Quem passou por jornais nas últimas décadas, terá dezenas destas histórias para contar. No dia 03 de outubro de 2001, a Folha superou todos seus feitos. A entrevista com Fernando Henrique Cardoso versava sobre o abate de aviões clandestinos sobre o território nacional. “Precisamos fazer um esforço grande para controlar o terrorismo, que é um inimigo suez” — assim redigiu a repórter a declaração do presidente. A moça, que desconhecia o adjetivo soez, escreveu como pensou ter ouvido e resolveu esclarecer o leitor, que talvez não soubesse o que significava suez: "FHC se referia aos combatentes egípcios que lutaram contra os israelenses na região de Suez, em 1973, e atacavam seus oponentes por meio de túneis subterrâneos abandonados, de surpresa: ninguém sabe de onde vem". Explicação mais que oportuna, já que nem mesmo eu saberia dizer o que significa suez como adjetivo.

Ora, diria o jovem editor, o presidente se permite tais palavras porque é um erudito. Acontece que não se exige erudição de ninguém para falar em soez. As gerações novas, hostis à leitura e viciadas pelo parco vocabulário televisivo, não mais conhecem palavras elementares do vernáculo e ainda se julgam no dever de elucidar para o leitor vocábulos de cujo significado apenas suspeitam. Com este material humano, que sequer conhece a própria língua, faz-se jornalismo. Pois jornalismo, hoje, só pode exercer quem faz curso de jornalismo.

Melhor mesmo, só a história dos perdigotos, já incluída no ror dos clássicos da Folha. A notícia era sobre a epidemia de uma gripe, que se disseminava por perdigotos. O repórter, ciente de sua ignorância, fez o que deveria fazer: consultou o dicionário. Só que ficou na primeira acepção da palavra. Os leitores foram então informados que a gripe era transmitida por filhotes de perdiz. O cidadão urbano foi tranqüilizado. Como nas urbes não existem perdizes, muitos menos filhotes das ditas, não havia porque temer a gripe.

A Folha tem a preocupação de ser sempre didática, para atingir a compreensão da grande massa. Assim, quando grafa o marxismo, o redator muitas vezes põe entre parênteses: doutrina do filósofo alemão Karl Marx, século 18. A própósito, os séculos são sempre grafados em arábicos. Nestes dias de incultura generalizada, se alguém falar a um paulistano do ônibus Pio XII, talvez não se faça entender: ele só conhece o pióxii. Tampouco entenderá Praça Quinze ao ler Praça XV. Ele conhece a praça Xivi. A precaução, em verdade, não deixa de ter sentido. Ocorre que o jornal subestima a inteligência de seus próprios leitores. Se um leitor de tablóides sensacionalistas têm dificuldade em ler algarismos romanos, o mesmo não se deveria supor de um leitor da Folha.

Mas se supõe. O jornal determinou a supressão de todos algarismos romanos. O que originou outro episódio, não menos emblemático, no bestialógico do jornal. Ao deparar-se com o nome do terrorista americano Malcolm X, uma redatora não teve dúvidas: grafou Malcolm 10.

Fora outras mancadas correntes na imprensa cotidiana. Por exemplo, aquele monumento em Paris construído em La Défense pelo Mitterrand, l'Arche. Os jornalistas, talvez por terem visto sua aparente forma de arco, e talvez por associação ao Arco do Triunfo, grafam o tempo todo "o Arco de La Défense". Ora, arche é arca. A tradução correta seria Arca de la Défense.

Ou ainda os Camarões, república africana. Em verdade se chama Cameroun, em homenagem a um certo Lord Cameroun. A origem do nome comporta discussões, mas uma coisa é certa: em língua nenhuma do mundo cameroun é camarão. Se fosse, a República do Cameroun seria traduzida em inglês como Republic of Shrimps, em francês como République des Crevettes, em espanhol como República de las Gambas. Já vi carta de um diplomata do Cameroun reclamando dos jornais a tradução errada. Em vão. Na Folha, sugeri a um dos responsáveis pela unificação ortográfica do jornal a correção. 'Agora é tarde', me respondeu.

Outro sinal de tráfego são as aspas. Têm múltiplas funções. Servem geralmente para marcar uma citação. Mas também para deixar clara a posição do editor. Os acontecimentos pós-queda do Muro geraram uma intensa batalha de aspas nas redações. Certa vez, na Folha de S. Paulo, recebi um despacho que falava dos crimes do comunismo durante o regime dos Ceaucescu, na Romênia. Traduzi o texto, coloquei-o no bom tamanho e dei meu trabalho por feito. Dia seguinte, lá estava a notícia. Mas falava de "crimes" do comunismo. Com crimes entre aspas, para deixar bem claro que a redação não assumia a idéia de que comunistas pudessem cometer crimes.

Trabalhei mais tarde no Estadão. Um belo dia, recebo um telefonema de um colega da Folha:

— Janer, aquela nota sobre a Finlândia, foste tu que a redigiste, não foi?

De fato, fora eu. Mas como é que ele sabia?

— Pelas aspas. Puseste entre aspas "política de neutralidade". Só podiam ser tuas.

Me senti lisonjeado. Já era reconhecido até pelas aspas.

Outro recurso do redator, para bem definir sua postura, é a bendita palavrinha suposto. Se nas editorias de Nacional o adjetivo é uma prudente salvaguarda para evitar processos por parte de um suspeito ou indiciado em qualquer crime, no noticiário internacional é um recurso para preservar antigas crenças. E já li no Estadão, juro que li, esta frase: supostos terroristas explodem carro-bomba no Peru.

Uma ressalva é sempre oportuna. Poderia ocorrer que o carro-bomba tivesse sido montado por uma equipe de carmelitas descalças. Perguntei ao redator: supostos terroristas, companheiro? Ele releu o texto e justificou: força de hábito. Claro que ninguém vai grafar "suposto nazista". Quando se trata de nazistas, não há aspas nem supostos.

Texto-legenda, em jornalismo, é aquele texto curto e ágil que acompanha uma foto ou ilustração. Segundo o manual de redação da Folha de S. Paulo, seu título pode recorrer a trocadilho ou outras formas de humor.

Foi no século passado, lá por 93. A União Soviética, seguindo a insuspeita previsão de Marx, tomara os rumos anunciados no Manifesto: tudo que é sólido se desmancha no ar. Das agências, recebemos em fim de tarde uma charge de alguma revista internacional: em Moscou, uma velhota russa, com uma cesta vazia no braço, procurava abastecer-se no mercado. No balcão de pães, não havia pães, apenas bombas atômicas em formato de pães. Dei vazão a todo meu talento. Titulei com gosto:

O PÃO QUE MARX AMASSOU

Não é todo o dia que a musa desce num fechamento de jornal. Me pareceu ter ganho com verve meu pão naquele dia. No entanto, estávamos no deadline e o caderno não fora fechado. No computador ao lado, o editor suava a cântaros e gemia como em trabalhos de parto. Pousei em seus ombros como um papagaio e notei que tentava um novo título.

— Mas o meu não está ótimo? — quis saber.

Me olhou indignado:

— Não é hora de piada.

Os minutos corriam e o novo título não dava os ares da graça. Desesperado, o editor retomou o antigo e substituiu uma palavra:

O PÃO QUE STALIN AMASSOU

Assim não vale, protestei. Xingar o Stalin é chutar cachorro morto. Entre nós, só o Niemeyer e o Prestes ainda o cultuavam. Que mais não fosse, não tinha aquele efeito aliterativo, Marx amassou. O Velho, não! — insistia o editor. Para não atrasar o fechamento, optou pela média:

O PÃO QUE LÊNIN AMASSOU O jornal quase atrasou. Mas o Velho foi salvo.

* Como ler jornais - http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/lerjornais.html

segunda-feira, março 25, 2013
 
Entrevista antiga:
SOBRE DEUS, ÉTICA
LEI E IDEOLOGIAS



P - Na entrevista anterior você disse que se formou em filosofia. Como esse blog é feito por alunos de filosofia, resolvemos fazer algumas perguntas mais difíceis, como por exemplo: "Se Deus está morto, tudo é permitido"?

R - Isso é uma bobagem que os católicos gostam muito de empunhar. Querem colocar Deus como fundamento de toda ética, como se não pudesse existir ética sem a crença em Deus. Com uma formulação um pouco diferente – “se Deus não existe, tudo é permitido” – esta frase é imputada a Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov. Ora, ele jamais escreveu isto. Foi Sartre quem disse que ele havia escrito. Quem cita esta frase são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Recentemente, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Não encontrei. O mais próximo que existe é isto:

- Ivan Fiodorovitch ajuntou entre parentêsis que lá está toda a lei natural, de maneira que se você destrói no homem a fé na sua imortalidade, não somente o amor nele perecerá, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não existiria nada mais que fosse imoral; tudo será autorisado, mesmo a antropofagia. E não é tudo: ele acaba afirmando que para todo indivíduo que não crê em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei moral da natureza deveria imediamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado ao crime, deveria não somente ser autorizado, mas reconhecido como uma solução necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. Após um tal paradoxo, julgai, senhores, julgai o que nosso caro e excêntrico Ivan Fiodorovitch julga bom proclamar e suas eventuais intenções.

Mais adiante, Mitia se pergunta:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?

Ou seja, a pergunta não é exatamente sobre Deus, mas sobre Deus e a imortalidade. E imortalidade significa punições e recompensas. Os teístas querem ver nos personagens de Dostoievski a impossíbilidade de uma ética sem Deus. No entanto, o que o autor empunha é a promessa de céu... ou de inferno. O fundamento de sua moral – ou da de Ivan Karamazov, como quisermos – não é exatamente Deus, mas a esperança ou o medo. Neste sentido, nós, ateus, não temos preocupação alguma. Não temos medo de nenhum inferno nem precisamos de recompensas futuras para sermos éticos. No fundo, o que o católico Dostoievski quer dizer é que todo ateu é necessáriamente imoral. E isto é uma solene besteira.

P - Existe um plano filosófico que é o plano ético, o qual geralmente está associado à moral. Todos sabemos que é possível agir moralmente (se encararmos a moral como uma série de normas elementares) e ser ateu ao mesmo tempo. Porém como fundamentar essa série de normas? Pois se ela são parte de preceitos de ação em sociedade arbitrários, por que alguém «deveria» segui-los? Ou seja, o dever não é uma mera arbitrariedade e, pois, tudo é permitido?

R - No plano filosófico não existe plano ético nenhum, isto é coisa dos primórdios da filosofia, quando esta disciplina englobava todo o conhecimento. Por filosofia entendo uma busca do saber, uma interrogação sobre o homem e sua finalidade. Ética é outra coisa, é o estudo dos costumes. Por outro lado, esta distinção entre ética e moral é bobagem muito em moda no Brasil. Ética é palavra de origem grega, vem de ethos. Que em latim é mores, daí moral. Cícero já escrevia: “posto que se refere aos costumes, que os gregos chamam ethos, nós costumamos chamar essa parte da filosofia uma filosofia dos costumes, mas convém enriquecer a língua latina e chamá-la moral”. Querer distinguir as duas coisas é filigrana de petista. Lula, por exemplo, adora encher a bocar com “ética e moral”, como se estivesse falando de duas coisas distintas, o analfabeto.

Não há sanções penais para normas meramente éticas. Ninguém está obrigado a seguir normas éticas. Pode haver uma sanção da comunidade, mas esta sanção não pode ferir a liberdade de ninguém. Se alguém infringe uma norma legal comete um crime e é passível de uma série de punições. Se alguém fere uma norma ética, caso esta norma não coincida com a legal, não está cometendo crime algum e portanto não pode ser punido. Dou um exemplo: ser homossexual, no Brasil, fere as normas éticas das religiões e de certos setores da sociedade. Mas não fere lei alguma. Ao optar pela homossexualidade, uma pessoa pode estar ferindo a ética – conforme a comunidade em que viva – mas não pode sofrer nenhuma sanção do Estado. O mesmo diga-se da prostituição e do incesto. Nenhuma destas práticas constitui crime na nossa legislação. O mal dos religiosos é pretenderem que suas concepções éticas tenham força de lei.

Se os religiosos ou moralistas outros quiserem estabelecer seus fundamentos éticos, que os estabeleçam. O que não podem é pretender que tenham validade universal e se imponham inclusive a pessoas que não participam de suas crenças.

Tudo é permitido em termos. Apenas tudo que a lei não proíbe. Só a lei pode proibir. Religiões só podem proibir alguma coisa para seus crentes. Estes crentes, se transgredirem tais proibições, não estão cometendo crime algum. Mas qualquer cidadão, crente ou ateu, se transgredir a lei, está cometendo crime. Temos de seguir a lei, pois assim determina o consenso que fundamenta o Estado. Moral, que cada um siga a que bem entender.

P - A lei humana é arbitrária ou existem direitos naturais, com os quais o homem já nasce? Se existem tais direitos, de que forma eles não são uma mera arbitrariedade? Pois seria possível dizer que o homem apenas estatuiu tais direitos arbitrariamente. Mas como fundamentá-los?

R - Quem faz a lei é o ser humano. Direitos naturais é conversa fiada de católicos e outros crentes. Não por acaso, Tomás de Aquino é um dos maiores defensores do jusnaturalismo. É curioso notar como os defensores do tal de direito natural sempre fazem com que tais direitos coincidam com valores cristãos.

Os defensores do direito natural o associam a um ordenamento ideal, correspondente a uma justiça superior e anterior, imutável ao longo da História, que independe do direito positivo, deste direito que se origina no Estado. Se aquele direito não se origina no Estado, se origina onde? Na vontade divina, é claro. Imaginar que a fonte seja a natureza é muito complicado. Que seria o tal de direito natural? O direito do leão de comer a gazela? O direito do albatroz de comer o peixe? Transferindo ao plano humano: o direito do mais forte submeter o mais fraco? Seria a guerra de todos contra todos.

Há quem pretenda que o direito se origine na racionalidade dos seres humanos. “Divertida justiça que um rio limita, erro aquém verdade além dos Pirineus”, disse um pensador francês, creio que Montaigne (agora não lembro). Se a racionalidade dos seres humanos for o fundamento do direito natural, este direito é então tão cambiante quanto o positivo.

Mas fundamentá-lo em Deus também é complicado. Em qual deus? No judaico-cristão? Ora, Jeová em seu livrinho não só pratica genocídios como também incita seu povo a cometer genocídios. Direito natural é uma concepção totalitária, que pretende submeter a humanidade toda a uma determinada visão de mundo. O que existe é o direito positivo, que muda conforme a geografia. Mas a lei humana não é arbitrária. Nas democracias, pelo menos, ela depende da vontade dos cidadãos e nela se fundamenta. Nas ditaduras, vai depender da vontade do ditador.

P - Qual é a sua visão a respeito do liberalismo político, econômico e ético? (por "liberalismo ético" tomar a idéia de que há liberdade para o aborto, para a união civil homossexual, para o uso de drogas, etc.)

R - Liberalismo político até hoje não entendi bem o que seja. Aqui no Brasil, por exemplo, há setores católicos que se pretendem liberais. Ora, por mais acepções que a palavra liberalismo tenha, ela não rima com Vaticano, dogmas, teocracia, governo vitalício. (Não sei se alguém notou, o Vaticano é a única teocracia do Ocidente). Se alguém me propuser uma definição precisa de liberalismo, posso tentar uma resposta.

Quando ao liberalismo econômico, se for entendido como um capitalismo ético e bem delimitado por leis, penso ser a melhor fórmula de administração do Estado. É claro que esse capitalismo não existe no Brasil. Vamos encontrá-lo nos Estados Unidos, Canadá, sociais-democracias européias, e isso com todas as imperfeições inerentes ao sistema. Em uma mentalidade capitalista, por exemplo, se procuraria dar trabalho aos pobres, e não esmola, como é o nosso caso.

Quanto ao liberalismo ético, se entendido como liberdade para aborto, união civil homossexual e uso de drogas, sou a favor. As restrições ao aborto e homossexualismo sempre estão eivadas de um ranço religioso. Se o catolicismo, por exemplo, não aceita o aborto e o homossexualismo, que os proíba para seus fiéis. Mas que não pretenda proibi-los para a sociedade laica. Quanto às drogas, sou a favor da descriminalização, que me parece ser a única fórmula eficaz para acabar com o tráfico.

As pessoas esquecem que crime é o que o Estado define como crime. Se o Estado não define aborto ou homossexualismo – ou o que quer que seja – como crime, estamos conversados: não é crime. Nos países mais desenvolvidos do Ocidente, aborto não é crime.

P - De que forma o liberalismo como um todo não é apenas mais uma ideologia como foi e ainda é o comunismo? Ou o comunismo não seria uma ideologia?

R - Depende do que se entende por ideologia. As acepções desta palavra são muitas, desde Desttut de Tracy que a criou – como sinônimo de ciência das idéias – até Marx e outros teóricos mais contemporâneos. Conforme a definição adotada, tanto liberalismo como comunismo podem ser considerados ideologias. Ou não.

Libertarian, dezembro 2006

domingo, março 24, 2013
 
ALFABETIZADOS INFILTRADOS NO CONGRESSO


De Andrea, recebo:

Como nossa memória é despertada por pequenos fatos. Acabei de ler sua ultima crônica e me lembrei que quando eu cursava a segunda serie do primário saia de carro com meu pai de nossa casa no Lago Norte em Brasília até a Asa Sul, onde ficava meu colégio, e ele vinha ao longo de todo o percurso tomando a tabuada. Ele fazia perguntas aleatórias, criava pequenos problemas, e eu tinha que aceitar tudo, caso contrário teria que estudar nos finais de semana. Lembrei que o xingava, mentalmente é claro, “que velho chato”, mas aprendia tabuada e muitas outras coisas. Que bom que o velho era chato, rs.

Lembrei-me também que naquela época eu tinha três meses de férias, muito mais que meu sobrinho tem hoje, mas na quinta série eu sabia o nome de todas as capitais e países da Europa (é verdade que na década de 70/80 eram menos países que agora), mas mesmo assim eu e meus colegas sabíamos nos situar no mundo. Como gosto muito de viajar, meu sobrinho absorveu algumas coisas e tem alguma idéia de geografia, mas brincando com alguns de seus colegas que vieram fazer um trabalho em grupo aqui em casa fiz algumas perguntas de geografia e fiquei chocada com as respostas.

Os garotos, que estão cursando o primeiro ano do ensino médio, não sabiam onde fica Paris. Um até comentou que achava que Paris fica perto da França, e ficaram procurando no mapa (um modelo de mapa físico onde não há o nome dos países) na região da Ásia e do Oriente Médio. Só depois de algum tempo “descobriram” a Europa. Um deles, que vai passar as férias de julho nos parques da Disney, não sabia ver no mapa onde fica a Florida.

Fico imaginando que do jeito que as coisas estão, no futuro do Brasil, ou seria melhor chamar adotar logo o nome de Brasil para não confundir, aquele que conseguir fazer uma regra de três composta, descobrir onde fica Paria e Nova York no mapa e ler (entender) um livro de José de Alencar ou Machado de Assis até o final, será considerado, não um homem culto, mas um completo intelectual. Enquanto isso Instituto de Advocacia Racial e Ambiental quer que a Lei que determina a obrigatoriedade do ensino étnico-racial seja cumprida e mais, que esta disciplina seja ensinada nas escolas. Bom, pelo menos os alunos vão saber onde fica a África.

Cara Andrea:

Quem não sabe onde fica Paris não merece viver. Certa vez, ao voltar da Europa, fui contar a um tio sobre minha viagem. “Sei, fica pros lados de Passo Fundo”. Mas era homem que vivia no campo, de escassa instrução. No fundo, estava certo. Ficava mesmo na direção de Passo Fundo. O fato é que, se perguntarmos hoje a um estudante do secundário onde ficam Atenas ou Amsterdã, provavelmente não terá idéia do que se fala.

Quando fiz meu ginásio, em Dom Pedrito, reprovação era uma espada que pendia o ano todo - e todos os anos - sobre a cabeça do aluno. Repetir de classe era mais ou menos como virar leproso. Era angustiante, confesso. Destes dias de dureza, costumo evocar um de meus mestres, o professor Hugo Brenner de Macedo, que descontou dois pontos de uma dissertação, porque o aluno havia escrito feichão em vez de feijão. Na universidade, se descontasse dois pontos por cada erro de grafia, raros seriam meus alunos aprovados. Conheci várias universidades e profissionais delas oriundos nos últimos anos. Posso afirmar tranqüilamente que, no ginásio daquela cidadezinha, então com 13 mil habitantes, recebi uma educação que hoje não se ministra nem em cursos de Letras.

A História é uma eterna luta entre alfabetizados e analfabetos, dizia Nestor de Hollanda, de saudosa memória. Segundo o autor, os analfabetos estavam avançando inexoravelmente em todas as áreas. Dito e feito. Agora planejam tomar os campi de assalto. Por obra dos legisladores nacionais, em breve um analfabeto de pai e mãe poderá ostentar em seu currículo um diploma de curso superior.

A reprovação, único instrumento eficaz de controle da qualidade de ensino, está virando coisa do passado. Se no secundário está se tornando proibida, nos cursos superiores é cada vez mais rara e mesmo inexistente. Contou-me um amigo, professor de universidade privada, que não pode reprovar nem mesmo alunos que jamais assistiram a suas aulas. O ensino virou um teatro, onde o aluno finge que aprende e o professor finge que ensina - disto está consciente todo professor que costuma olhar-se no espelho antes de entrar em sala de aula.

Um de meus prazeres perversos é ouvir escutas clandestinas entre deputados e seus asseclas. Jamais ouvi um que falasse um português correto. Mas há esperanças. Nestor de Hollanda dizia que as hostes dos alfabetizados avançavam, já havia até mesmo alguns infiltrados no Exército. Da mesma forma, encontramos hoje alguns infiltrados no Congresso.

sábado, março 23, 2013
 
APARTHEID ÀS AVESSAS


Com a emergência do tal de politicamente correto, fazer piada virou crime. Hoje, se você faz piada de negro, está arriscando prisão por racismo. E sem fiança. Mais um pouco, e será proibido fazer piada de judeu. Brasileiros, passamos a vida inteira fazendo piada de portugueses. E vice-versa. Nunca ninguém se ofendeu com isso. Agora, de repente, surgiram pessoas que se ofendem.

Ora, piada é piada. Quando faço piada de judeus, negros ou portugueses, não estou chamando ninguém de canalha ou coisa parecida. Estou fazendo humor, amigavelmente, com judeus, negros ou portugueses. Da mesma forma, não me incomodo se alguém fizer humor a meu respeito, seja pela condição de branco, brasileiro ou gaúcho. Só o que faltava, não podermos rir de nossos semelhantes. Só o que faltava proibir alguém de rir de mim.

Este episódio, contei há treze anos. Como ninguém deve lembrar mais, conto de novo. Almoçávamos em três, em um restaurante de Perdizes. Este gaúcho que vos escreve, mais dois amigos jornalistas, um judeu e outro negro. Como seria de esperar-se neste tipo de encontro, logo surgiram as piadas. Contei as que lembrava de gaúchos, de judeus e quando comecei as de negro, o afrodescendentão a meu lado protestou:

- Vamos fazer uma coisa. Gaúcho conta piada de gaúcho, judeu de judeu e negro de negro.

Ali estava, a meu lado, o racista atroz. Contaminado pelo fanatismo dos movimentos negros americanos, ele pretendia regulamentar conversas em mesa de bar. Contar piadas de negro era politicamente incorreto, a menos que um negro as contasse.

Ora, faz parte do humor - e particularmente do humor negro, sem trocadilhos - rir das desgraças alheias. Em boa parte das piadas, sempre há uma vítima. A vítima, de modo geral, é quem está por baixo. Antes ser rico e ter saúde, que ser pobre e doente. Difícil fazer piada com quem está por cima.

Ocorreu-me então uma piadinha que, espero, ainda não seja proibido contar. Três pessoas perambulavam perdidas no deserto, um judeu, um negro e um alemão. De repente, o alemão tropeça numa lâmpada. Pega, esfrega e dela salta um gênio, que se propõe a satisfazer três desejos, um de cada um dos três. Pergunta ao judeu o que ele quer.

- Bom, eu gostaria que você varresse da face da terra a raça negra.
- Muito bem - diz o gênio - E você? - pergunta ao negro.
- Quero que você extermine a raça infame dos judeus.
O gênio dirige-se ao alemão. O alemão pondera:
- Você vai mesmo atender os pedidos desses dois?
- Claro. Prometi, vou cumprir.
- Bom, então acho que vou pedir um cafezinho - respondeu o Fritz.

Dentro dos critérios de meu amigo negro, a quem caberia contar esta piada? Fui curto e rasteiro com ele: e tu vai pra puta que te pariu. Eu conto piada de gaúcho, de negro e de judeu e sobre quem me aprouver, e jamais vou proibir-me de contar piadas, seja sobre quem for.

Treze anos depois, a situação se agravou. Leio na Folha de São Paulo de hoje, que a Funarte, ligada ao Ministério da Cultura, recusou-se a receber o projeto de dez negros que, sob direção do dançarino Irineu Nogueira, tentaram inscrever o espetáculo "Afro Xplosion Brasil" no Prêmio Funarte de Arte Negra, cujo prazo de inscrição termina na segunda.

Ana Claudia Souza, diretora do Centro de Programas Integrados (CEPIN) da Funarte, disse à Folha que o grupo foi vetado porque está sendo representado pela Cooperativa Paulista de Dança, cujo presidente, o bailarino Sandro Borelli, é branco. O edital diz que, no caso de representações por pessoas jurídicas, só estão aptas a participar do prêmio "instituições privadas cujo representante legal, no ato da inscrição, se autodeclare negro".

Ou seja, branco está proibido, por edital, a dirigir espetáculos sobre negros. Claro que se um edital proibisse negros de dirigir espetáculos sobre brancos, seria fulminado com a acusação de racista.

Luta de classes morta, luta racial posta, costumo afirmar. Os ativistas negros estão conseguindo transformar o país onde a miscigenização foi melhor sucedida em um apartheid às avessas.

sexta-feira, março 22, 2013
 
“COM A AUTORIDADE MORAL
DE UM NOBEL DA PAZ”



“Com a autoridade moral de um Nobel da Paz”, escreve-me um leitor, a propósito das declarações de Adolfo Pérez Esquivel, sobre a não-conivência do papa com a ditadura na Argentina. Que autoridade moral? O Nobel da Paz é a grande mancha da Noruega e tornou-se um generoso abrigo para vigaristas. Já contei, urge contar de novo. Começo, pela ordem cronológica, com Martin Luther King, Nobel da Paz 1964.

Plagiário contumaz, plagiou desde o primeiro sermão até sua tese de doutorado. Professores universitários, que na verdade compartilhavam com King sua visão de uma América racialmente misturada e marxista, ajudaram a acobertar suas fraudes durante décadas. E o acobertamento ainda persiste. No jornal New York Times, do dia 11 de outubro de 1991, página 15, aprendemos que no dia anterior um comitê de pesquisadores da Boston University havia admitido que "não há dúvidas de que Dr. King plagiou sua tese de doutorado." No entanto, esse mesmo comitê concluiu: "Decidimos afastar a idéia de que o título de doutor concedido a MLK deveria ser revogado, pois tal ação serviria a nenhum propósito."

Ou seja, mesmo diante de fraude comprovada, a instituição de ensino de 172 anos preferiu a autodesmoralização a retirar de King a honraria recebida indevidamente.

A última noite de sua vida foi passada em um motel, onde King fez sexo com duas mulheres, enquanto batia e abusava fisicamente de uma terceira. A orgia foi gravada pela FBI e se encontra naquele arquivo que um juiz simpatizante de King proibiu de ser aberto. No entanto, alguns detalhes foram vazados em livro do ex-agente do FBI William C. Sullivan, e de acordo com o livro, MLK pode ser ouvido nas fitas gritando coisas como "eu estou fodendo em nome de Deus!" e "esta noite eu não sou negro. As orgias sexuais com dinheiro doado para sua organização eram constantes, e as provas também são fartamente documentadas, além dos desvios de dinheiro para outros fins pessoais.

Adelante! João Paulo II empenhou-se, em seu pontificado, na aceleração do processo de canonização da albanesa Agnes Gonxha Bojaxhiu, mais conhecida como Madre Teresa de Calcutá, morta em 97. Se uma canonização exige décadas e mesmo séculos de debate, o papa polonês pretendeu dispensar, neste caso, até mesmo os cinco anos regulamentares para início do processo. Sua Santidade, com uma pressa de jornalista, está conduzindo a nau da Igreja por águas turvas.

Pois Agnes Bojaxhiu, prêmio Nobel da Paz de 1979, como boa albanesa não se furtou a depositar flores na tumba de seu conterrâneo, Enver Hoxha, um dos mais sanguinários ditadores comunistas deste século. No Haiti, durante a tirania de Jean-Claude Duvalier, mais conhecido como Baby Doc, recebeu de suas mãos uma comenda pouco recomendável para quem morreu em odor de santidade, a “Légion d’honneur” haitiana. Não bastassem estas homenagens que conspurcam qualquer auréola, Madre Teresa intercedeu junto à Suprema Corte dos Estados Unidos, pedindo clemência para Charles Keating, vigarista condenado a dez anos de prisão por lesar os contribuintes americanos em 252 milhões de dólares. Deste senhor, Madre Teresa recebeu a simpática quantia de 1,25 milhão de dólares e a oferta de um jato privado para suas viagens. Em agradecimento, a religiosa presenteou Keating com um crucifixo personalizado.

Mistificação semelhante ocorreu em nossos dias com Rigoberta Menchú Tum, Nobel da Paz de 1992, porta-voz e símbolo dos direitos dos povos indígenas, premiada em boa parte por sua biografia, Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la Conciencia. Apresentando-se como uma índia sem instrução e militante dos Direitos Humanos, a guatemalteca comoveu gregos e troianos com sua infância miserável. Daí ao galardão recebido em Oslo foi um passo. A data escolhida é emblemática: nos 500 anos do descobrimento da América outorga-se, pela primeira vez na História, o Nobel a uma indígena. Mas ninguém sai diretamentede Tegucigalpa para aterrissar em Oslo. A biografia de Menchú Tum não é obra de Menchú Tum. Foi criada em Paris, pela venezuelana Elisabeth Burgos-Debray, mulher de Régis Debray.

Ocorre que entre os criadores de mitos sempre surge um estraga-prazeres para desmontar relatos tão edificantes, no caso, o antropólogo americano David Stoll. Em seu livro Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans, o autor mostra que a prestigiada militante em pouco ou nada difere de outros ilustres nomes já galardoados com os prêmios Nobel da Literatura ou da Paz, essas duas láureas jogadas de vez em quando pelos louros nórdicos aos nativos e mestiços do Terceiro Mundo.

Segundo Stoll, a premiada com o Nobel descreve com freqüência experiências pelas quais nunca passou. Em seu livro, afirma nunca ter freqüentado escola, nem saber ler, escrever ou falar espanhol até a época em que ditou sua autobiografia. Mas sua incultura era postiça: recebeu o equivalente à instrução ginasial em internatos particulares mantidos por freiras católicas. A luta de Menchú e outros indígenas pela terra, contra latifundiários de origem européia, era em verdade uma antiga rixa familiar de seu pai contra parentes próximos. O irmão mais jovem que dizia ter visto morrer de fome nunca existiu. Um outro, que dizia ter visto morrer queimado, não morreu queimado nem ela viu sua morte. A prêmio Nobel ignora solenemente as acusações: "Foram escritas quinze mil teses sobre mim no mundo todo por pessoas que leram o livro", afirma. "Não me dedico a conferir dados, não nego nem desminto o que é dito nos livros a meu respeito. Não é problema meu."

O Nobel da Paz deu-se ao luxo de incluir um terrorista entre seus laureado, Arafat. Responsável pelo bárbaro massacre dos atletas israelenses nas Olimpíadas de 1972 em Munique, pela morte de milhares de cidadãos inocentes em Israel, pelo assassinato em massa de cristãos no Líbano, pela morte de uma centena de cidadãos norte-americanos, entre eles dois diplomatas, pelo assassinato de um número desconhecido de árabes e patrocinador de seqüestros de aviões, Mohammad Abdel Rauf Arafat al-Qudwa al-Husseini, mais conhecido como Yasser Arafat, morreu em 11 de novembro de 2004 em odor de santidade. A imprensa francesa, incondicional defensora dos direitos humanos, prestou-lhes todas honras, desde os politicamente corretos Le Monde e Libération ao sóbrio Le Figaro. O Monde sequer se furta a uma terna homenagem de capa, sob a pena do chargista Plantu.

Corrupto até os ossos, o terrorista egípcio – que sequer era palestino – tinha oculta nos bancos e empresas do Ocidente uma fortuna avaliada, por baixo, entre 300 e 700 milhões de dólares. Por cima, em três e cinco bilhões de dólares, conforme acusava um dos ex-ministros de Finanças da OLP, Yawid al-Gussein, em declarações à Associated Press. Para a revista Forbes, Arafat está em sexto lugar, em uma lista publicada ano passado dos reis, rainhas e déspotas mais ricos do mundo. Este currículo, de fazer roer as unhas de inveja a um amador como Paulo Maluf, parece tê-lo recomendado vivamente a Oslo, que em 1994 concedeu-lhe o prêmio Nobel da Paz. Esta fortuna, evidentemente, não terá sido subtraída ao território miserável da Palestina, cujo orçamento sequer chegaria a tanto, mas das doações internacionais, árabes e ocidentais, à causa palestina.

Não bastassem os noruegueses conferirem estes prêmios prestigiosos a vigaristas notórios, neste ano da graça de 2004, Oslo concedeu o Nobel da Paz à bióloga e ativista queniana Wangari Maathai. Seus feitos: além de ter enfrentado o poder do ex-ditador Daniel Arap Moi, em 1977, fundou o Movimento Cinturão Verde, organização de mulheres dedicadas ao reflorestamento, que teria desde então plantado 30 milhões de árvores. Felizes delas, as árvores, se é que este censo pode ser feito em um país que têm dificuldades em fazer o censo dos próprios habitantes.

Infelizes dos quenianos. Após a entrega do Nobel, a bióloga reiterou sua opinião, muito divulgada na África sub-sahariana, de que o vírus da Aids foi criado por cientistas para a guerra biológica, para dizimar os negros africanos, como se alguma nação no mundo ganhasse algo com dizimar negros na África. Afirmou também que o uso do preservativo não é eficaz contra a transmissão do vírus. A Aids está consumindo a África, e os católicos, onde têm maioria, condenam o uso do preservativo e as demais práticas anticoncepcionais e insistem na função reprodutiva do ato sexual. O continente negro está perdendo aceleradamente sua juventude e força de trabalho em virtude de uma visão dogmática do mundo de parte do Vaticano. Para esta política só há um adjetivo: genocida. Esta é a política defendida por Wangari Maathai, prêmio Nobel da Paz 2004.

E ainda há quem encha a boca com a autoridade moral de um Nobel da Paz.

quinta-feira, março 21, 2013
 
ESTADO ESTIMULA ANALFABETIZAÇÃO


É espantoso ver o Estado, deliberadamente, tentando analfabetizar os jovens. A tolerância do ENEM para com erros graves de grafia é a mais cabal prova disto. O interesse é maquiar o resultado do exame, para ocultar seu fracasso. Mas isto nada tem de novo. Desde há muito, as universidades baixaram a vara para não perder clientela. Nos anos 70, corria uma piada em Porto Alegre. Quem conseguisse ser reprovado em um vestibular da Unisinos, ganhava um Fusca de brinde.

Há bem mais de trinta anos, quando ainda cronicava em Porto Alegre, manifestei minha perplexidade ante os conhecimentos de matemática, na época, de funcionários que tinham por trabalho lidar com elementares operações de adição e subtração: “E fui ao correio postar uma carta. E perguntei à funcionária quanto pagaria em selos. E ouvi vinte cruzeiros como resposta. E paguei os vinte. E levei a carta para registro. E a outra funcionária me informou que eram 31 cruzeiros. E voltei ao guichê anterior para pagar o restante. E vi a moça manipular uma calculadora eletrônica. E vi registrar 31. E calcar a tecla de subtração. E depois 20. E vi a moça ler no visor: 11. Perplexo, paguei os 11”.

Anos mais tarde, quando lecionava na UFSC, voltei a tomar contato com esta miséria intelectual. Seguidamente tomava alguma cerveja com minhas aluninhas. Elas se espantavam com minha facilidade em calcular conta e troco. Suspeitando de algo errado, interroguei-as sobre a tabuada. Ninguém sabia somar ou subtrair, multiplicar ou dividir, sem uma maquininha. Ou seja, aquelas noções elementares de aritmética que adquiri já no primário, elas, na universidade, desconheciam. Justo nestes dias, conversando com as enfermeiras que me atendem, descobri que pessoas na faixa dos 40, 45 anos, desconhecem a tabuada. Quem hoje a conhece causa espécie, como se fosse pessoa culta.

Quanto aos conhecimentos de português, estes continuam de “mau” a pior, como diriam minhas alunas. Seguidamente tropeço, mesmo em jornais de porte do país, esta confusão entre mal e mau. Pelo jeito, está cada vez mais difícil distinguir o “l” do “u”. Já li cardápios anunciando fraudinhas. Ora, fraudinha é como o Zé Dirceu ou o Delúbio definiriam suas fraudes. Fraldinha é outra coisa. O analfabetismo parece ter contaminado até o clero. Há alguns séculos, eram pessoas que dominavam o latim. Hoje, desconhecem o vernáculo. Numa igrejinha do interior catarinense, li escrito numa cruz:

SAUVA TUA AUMA

Há três anos, li numa decisão judicial: “cujo o”. Ou seja, o analfabetismo está invadindo o Judiciário. Este erro tem sido recorrente no jornalismo contemporâneo, feito por esses meninos dos quais se exige diploma em jornalismo para exercer a profissão. Há professores que defendem a tese do não ensino desse pronome nas aulas de português, por tratar-se de um "brontossauro linguístico". Ou seja, se os tais de jovens não conseguem mais usar uma norma lingüística, extinga-se a norma.

O mal vem de longe. A Lei de Diretrizes e Bases facultou às escolas, em 1996, a adoção do "Regime de Progressão Continuada", medida saudada como "histórica", "revolucionária" e "emocionante". Pelo novo regime, os alunos entram nas escolas de ensino secundário e não podem mais ser reprovados. Ao final de sete anos, saem obrigatoriamente de diploma em punho. São Paulo disputou a honra do pioneirismo na aplicação do brilhante achado. Dados os altos índices de reprovação nas redes municipais, o dispositivo caía como uma luva para zerar estes índices. Em 1998, a progressão continuada tornou-se modelo estadual.

Ainda hoje, escreveu-me o leitor Benhur Antonio:

“E agora, o que é que vou dizer lá em casa, aos meus filhos, familiares e amigos, a quem transmito a rigorosidade da boa comunicação, baseada na linguagem? Coloco tudo no lixo, juntamente com as pretensas técnicas modernosas de preconizada aproximação entre o culto e o popular, e mantenho a minha cristalização virtuosa, aguardando novos tempos, ou, simplesmente, perpetro a adesão a esses desvios comportamentais, a essa adesão ao erro, porquê fácil, e passo à louvação dos apedeutas e dos analfabetos funcionais, estes que não conseguem ver o contexto, preparatório do futuro da civilização brasileira?”

Continue sendo rigoroso, meu caro Benhur. Quanto mais analfabetos tiver o país, mais necessários serão os que sabem escrever. O sistema legal, jornais, editoras, bancos, hospitais e muitas outras instituições precisam de bons redatores. Uma professora aqui de Higienópolis oferece um curso de redação. Já não dá conta dos alunos que recebe, entre eles pessoas egressas da universidade.

Tenho uma amiga na faixa dos 50, com curso superior, que se desespera por não dominar o vernáculo. Ou seja, a deficiência do ensino não é de hoje. Se antes esta deficiência era acidental, hoje foi oficializada pelo governo.

 
PROFESSORA EXPÕE
SAFADEZA DO ENEM



"Somos orientados a não sermos rigorosos na correção", diz avaliadora do Enem

Em meio à polêmica sobre a correção das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), na qual redações com receita de miojo e trechos de hinos de futebol receberam notas acima dos 50% da pontuação possível, uma das avaliadoras fez revelações que demonstram a precariedade do sistema de correção.

Em entrevista ao programa Gaúcha Repórter na tarde desta quarta-feira, a professora de língua portuguesa, cuja identidade foi preservada em função de um contrato de sigilo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) afirmou que não ficou surpresa com as notas dadas às redações:

— Somos orientados a não sermos rigorosos na correção.

A explicação dos coordenadores do Enem, fornecida aos avaliadores em uma reunião, é que se houvesse um rigor maior, a reprovação seria muito alta e muitos alunos não atingiriam a nota mínima. A professora afirmou que todos avaliadores foram orientados a não zerar os textos, e fazer todos os esforços para manter a redação dentro das notas mínimas. Os que não cumprissem com isso, poderiam ser excluídos do processo de correção:

— Dentro do que foi possível, fui o mais criteriosa possível nas redações que avaliei, mas tive meu sistema bloqueado. Essa era a ameaça.

Quando questionada sobre o processo de seleção dos avaliadores, a professora afirmou que o mesmo foi feito sem muito rigor. Ela foi chamada por uma amiga, que já fazia parte de uma das equipes de correção, e não passou por nenhum tipo de prova antes de integrar o grupo. A partir daí, passou por uma capacitação online que durou cinco semanas. Houve somente um encontro presencial entre todos os avaliadores, cerca de um mês antes do início das correções. Nessa oportunidade, a professora e seus colegas fizeram uma manifestação para questionar as orientações que lhes haviam sido passadas.

— Foi esclarecido que os critérios já tinham sido estabelecidos pela equipe do Cespe/UnB, que é responsável pela prova, e que não cabia a nós questionar. Tínhamos que cumprir o que estava sendo orientado — comentou. Indignada com o processo, a professora explicou que cada avaliador é obrigado a ler e dar nota a 3 mil redações em um período de um mês, quantidade considerada excessiva por ela:

— Como professora, acho que a revolta principal é por tu tentares desenvolver um trabalho sério, desenvolver as competências linguísticas, e depois ver que a avaliação não é séria, que os critérios não são rigorosos. Somos orientados inclusive a não penalizar o uso de emigrante no lugar de imigrante — desabafou.

Zero Hora – 20/03/13

quarta-feira, março 20, 2013
 
HÁ 60 ANOS, MORRIA
ESCRITOR STALINISTA (I)



Admiradores que me desculpem, mas Graciliano foi mais um dos escritores do século passado que venderam sua alma em troca de uma viagem a Moscou. A primeira frase da carta enviada de Moscou, datada de 1º de maio de 1952, diz tudo e dispensaria mais comentários:

“Clarita, Luísa, Ricardo: cá estamos na Terra Santa”.

O seco Graciliano, de repente, vira místico desbordado.

Em Moscou, encontrará Jorge Amado, já Prêmio Stalin. Tudo é festa e deslumbramento.

“Tenho bebido vodca, ido várias vezes ao Kremlin, à Praça Vermelha, visto a Catedral de São Basílio e o túmulo de Lênin. Ontem visitei a VOKS: doces, frutas, vinho, arranjo do programa, discurso do Presidente, um professor de cabeça pelada. À noite, Romeu e Julieta no teatro Bolshoi, com Ulanowa no papel de Julieta. Havia talvez mais de duzentas figuras. Nunca imaginei coisa semelhante. Hoje, a festa para que fomos convidados. O desfile começou às dez horas e deve ter-se prolongado até sete da noite. Deixamos o Kremlin às três horas. Víamos, de longe, com dificuldade, a cabeça de Stalin. Furor de aplausos na multidão”.

Graciliano apanha então binóculos para melhor ver seu deus:

“Subi à última plataforma exterior do Kremlin, fui andando para a esquerda, cheguei a poucos metros do túmulo de Lênin, no momento em que Stalin ia subindo a escada. Aproximei-o com o binóculo. Está velho, gordo e curvo. Nessa altura um tipo se avizinhou e quis tomar-me o binóculo. Fingi não entendê-lo. ‘Sou estrangeiro, não compreendo o russo’. Stalin passou. Recuei dez metros, quis examinar os figurões que estavam ali a pequena distância; outro guarda, falando e gesticulando, deu-me a entender que era proibido usar binóculos. Ignoro o motivo desta proibição”.

Antes de passarmos à entusiástica transcrição deste episódio em Viagem, cabe determo-nos alguns segundos em uma frase de sua carta:

“Enquanto as organizações operárias desfilavam, Kaluguin perguntou-me quais os meus livros que deveriam ser traduzidos em russo. Talvez nenhum, respondi. E expliquei minha divergência com o pessoal daí”.

As divergências de Graciliano se referem ao zdanovismo. O alagoano se recusava a submeter-se às normas do realismo socialista, tentação à qual não resistiu Amado. Importante sublinhar nesta frase de Graciliano a proposta da edição de livros.

Afirmar que a fortuna internacional de escritores como Graciliano e Amado deve-se mais às suas relações com o Partido do que a seus talentos é enunciar o óbvio. Mas trata-se de um óbvio sacrílego, pois implica afirmar que tais escritores utilizaram o partido como agência publicitária, ou que o Partido os utilizou como agentes publicitários.

De qualquer forma, fica claro na carta de Graciliano que as traduções são decorrência da viagem, e ninguém recebe mordomias gratuitamente. O sucesso de Amado na Europa, por exemplo, decorre de suas primeiras traduções em russo. Da URSS, Amado passa à extinta RDA, de onde Meyer-Clason, seu tradutor, o puxa para a Alemanha Ocidental. Só depois sua literatura chegará a Paris e demais países europeus. Em Viagem, Graciliano volta ao tema e concluí que seus livros em nada interessariam àqueles homens.

“São narrativas de um mundo morto, as minhas personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali patente, alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava´me da minha gente fusca, triste, e achava-me um anacronismo. Essa idéia, que iria assaltar-me com freqüência, não me dava tristeza. Necessário conformar-me: não me havia sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em sepulturas, ocupara-me emrelatar cadáveres”.

Ignoraria Graciliano os milhões de cadáveres que o stalinismo já havia amontoado? Muita tinta já rolara no Ocidente em torno às purgas, deportações e campos de concentração. Mas crente que se preza não quer ver. Ao crente, basta crer.

Uma ligeira dúvida perpassa o espírito de Graciliano e seus companheiros ao verem a cidade cheia de retratos de Stalin, “a demonstração de solidariedade irrestrita não impressionava bem o exterior”. Mas a senhora Nikolskaya, a guia, julga tal observação leviana e absurda, para consolo dos crentes:

“Nenhum russo admitia que as coisas se passassem de outra maneira. Essa réplica, isenta de motivos era, no meu juízo, superior a um longo discurso esteado em razões. Estávamos diante de um fato, e condená-lo à pressa, ao cabo de alguns passeios na rua, parecia-me ingenuidade. Com certeza ele era necessário, e devíamos, antes de arriscar opinião, investigar-lhe a causa. Realmente não compreendemos, homens do Ocidente, o apoio incondicional ao dirigente político; seria ridículo tributarmos veneração a um presidente de república na América do Sul. Não temos em geral nenhum respeito a esses indivíduos”.

Para o escritor alagoano, Stalin é o “estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. Não poderia enganá-lo. Esforçou-se por vencer o explorador, viu-o morto — e seria idiota supor que, alcançada a vitória, desejasse a ressurreição dele. É, desde a juventude, um defensor da classe trabalhadora. Esta expressão, razoável há trinta e cinco anos, tornou-se desarrazoada, pois aqui já não existem classes”.

Graciliano está há poucos dias em Moscou, não fala o russo, tem roteiros rígidos de passeios e visitas, e já afirma peremptoriamente que não mais existe na Rússia uma sociedade de classes. Vista de nossos dias, sua afirmação é de uma ingenuidade atroz. Independentemente desta distância crítica, nada permite a um homem que pensa, fazer tais ilações generalizantes a partir de tão parca experiência do povo soviético. Sem falar que Graciliano nada entendia do russo.

O seco criador de Paulo Honório, inimigo de adjetivações supérfluas, passa a cultivar os adjetivos:

“Não admitimos nenhum culto a pessoas vivas, perfeitamente: a carne é falível, corruptível, inadequada à fabricação de estátuas. Mas não se trata de nenhum culto, suponho: esse tremendo condutor de povos não está imóvel, de nenhum modo se resigna à condição de estátua. Homens embotados, afeitos à corrupção e à fraude, percebemos isto: a massa tem confiança absoluta nele e manifesta a confiança impondo-lhe a obrigação de admitir as ruidosas aclamações e os retratos. (...) Agradecimentos e louvores palpitam na alma da multidão, e recusá-los seria uma ofensa, um erro que nenhum político bisonho cometeria”.

Stalin, modesto dirigente, é coagido a aceitar a religiosa adoração das massas agradecidas. E Graciliano, que sequer pode olhar para Stalin com binóculos, chega à conclusão que “este tremendo condutor de povos” não é o monstro que o Ocidente imagina:

“Deixavam-me passar. E deixavam-me subir a escadaria, galgar as insignificantes barreiras de meio metro, avizinhar-me do homem que a burguesia odeia com razão. Stalin não vive numa toca, defendida por metralhadoras e canhões”.

O homem que, em rápido turismo por Moscou, afirma não mais existir a sociedade de classes na União Soviética, mais adiante nos alerta para o perigo das generalizações. É quando passeia pelos jardins do Kremlin, em meio a “cinzas preciosas”. Lá estão as de John Reed, americano, portanto inimigo, pelo menos em princípio. Mas Reed escreveu a grande reportagem da Revolução. Logo, “esse nome nos enche de sentimentos bons. Perigoso entregar-nos a generalizações feitas à pressa. Nem toda a gente na América deseja aniquilar a humanidade com bombas atômicas e bactérias. Não vamos responsabilizar duzentos milhões de indivíduos, oito milhões e meio de quilômetros quadrados, porque um oficial de instinto ruim tentou furtar uma estatueta amarela no Hotel Savoy”.

Ao visitar o Kremlin, o espírito de Graciliano é tomado por sensações místicas (os itálicos são nossos):

“...pisamos o núcleo de Moscou, a cidadela venerável exposta de longe ao mundo com júbilo ou furor, conforme as circunstâncias. Sim senhores. Estamos dentro dela — e as pedras santas das muralhas não caíram em cima de nós para esmagar-nos, estorvar a profanação”.

“É verdade: miseráveis sapatos americanos, brasileiros, pezunham na terra sagrada por diversas razões. Estamos no Kremlin”.

Ante a guia que lhe narra a história do castelo, Graciliano sente-se “aluno chinfrim, seguro o lápis e o caderno, abro os olhos e os ouvidos, quero aprender”.

“Andamos noutros refúgios de religião, transformados em museus, vemos riquezas semelhantes às do primeiro, ouvimos datas, noções peregrinas, toda uma santa arqueologia que a revolução guardou com zelo piedoso”.

Sala de São Jorge: “o Deus dele não podia equiparar-se ao Deus existente na Catedral de S. Basílio, fora do Kremlin”.

Iríamos muito longe se enumerássemos as evocações religiosas suscitadas em Graciliano por sua visita ao Kremlin. Passemos então à visita do escritor ao berço em que nasceu o novo Deus, a cidade de Gori: “o monumento a que nos referimos é apenas uma casa miúda, de tijolos nus, sem reboco”.

Nos dois quartos que perfazem apenas dois metros, morava o velho Djugatchivili, sapateiro. Joseph nasce em 1879 e destinava-se à profissão religiosa, já que o ofício de sapateiro rendia pouco. Troque-se o sapateiro por marceneiro, a cabana por manjedoura, coloque-se uma nova no firmamento, adicione-se mais três magos, e essa história já conhecemos. Olhando o ambiente, inconscientemente, o Velho Graça — como era chamado por seus amigos — chega a trair-se: “Onde estava a cama do menino?”


 
HÁ 60 ANOS, MORRIA
ESCRITOR STALINISTA (II) *



Perseguir em Viagem este preito stalinista até o fim, tornar-se-ia monótono. Passemos a uma consideração final do autor:

“Meses depois, no meu país, homens sagazes e verbosos censurar-me-iam a ignorância a respeito da União Soviética. Tinham-me os guias exibido coisas necessárias à propaganda e eu, ingênuo, acreditara nelas. Indispensável aceitar verdades ocultas abaixo das aparências brilhantes. E, sem nunca ter ido à URSS, explicar-me-iam, generosos, horrores medonhos, trabalhos forçados, enxovias horríveis, fuzilamentos diários. Seria preciso admitir que as moças do Teatro Paliachivili e a menina do Instituto Marx-Engels estavam nesses lugares para enganar-me. Os transeuntes eram impostores, a serviço da polícia. As fábricas, as escolas, os palácios de pioneiros, tudo logro. Venenos do socialismo”.

Por ironia, esta irônica hipótese de Graciliano é a que acaba se configurando como a realidade da época stalinista. No XX Congresso, três anos após a morte do escritor e de seu deus, Kruschev abre as cortinas do grande teatro e revela a face do mais operoso assassino do século. Como pode Graciliano ter-se deixado embarcar em tal canoa? Wilson Martins, ao analisar suas contradições, em O Modernismo, parece tê-lo entendido:

“Uma análise pormenorizada dessas contradições não poderia ignorar um tema que, por enquanto, deixo de lado: esse individualista e esse clássico tornou-se militante do Partido Comunista, no qual via, bem entendido, apenas os aspectos idealísticos e programáticos. O seu livro de turismo à União Soviética é, nesse particular, extremamente revelador: não me parece temerário supor que a realidade comunista, uma vez instalada no Brasil, causar-lhe-ia a mesma repugnância que a realidade republicana (no sentido radicalista da palavra). Viagem é, do começo ao fim, um livro de evasão: não de evasão do Brasil, mas de evasão da própria viagem que o escritor realizava. Não será preciso grande acuidade psicológica para perceber que Graciliano Ramos esforça-se subconscientemente, não apenas para aceitar o que lhe contam e o que lhe mostram, mas para sufocar qualquer veleidade de espírito crítico ou de curiosidade inoportuna. Tocando a Terra Prometida, ele eliminou, por um processo muito simples de sublimação psicológica, qualquer contato com o mundo imediato e com ele próprio: Graciliano Ramos não via a URSS da geografia, da política ou da sociologia, viu a URSS tal como ela se configura no mito mental que os comunistas do mundo inteiro e nomeadamente os do Brasil elaboraram pouco a pouco em anos e anos de diáspora imaginária”.

Não é difícil entender este movimento psicológico. Imaginemos um escritor de talento, isolado em um obscuro rincão de qualquer país, em nosso caso, o Brasil. Seu talento não é reconhecido em nível merecido e sua recompensa é o cárcere. Um belo dia, é convidado pelos dirigentes de uma prestigiosa revolução a visitar o paraíso terrestre. Neste éden ignoto, onde é recebido com tapetes vermelhos, mal chega já lhe perguntam quais de seus livros devem ser traduzidos na sociedade ideal. A qual escritor não comoveria tal convite?

Amargas são as marcas deixadas pelo Brasil em Graciliano. De que jeito vivem em sua terra? — pergunta-lhe uma advogada. O alagoano não se furta a explicar:

“Caí num monólogo triste, falando interiormente às deliciosas vizinhas erguidas no fim da platéia. Isso mesmo. Entalam-nos o crânio, somos coagidos a não pensar direito: as nossas idéias se esfarelam, espalham-se em torno de pequenas misérias. E nem só os pensamentos se reduzem. Os corpos também se aniquilam, nas prisões e fora delas. Uma prensa invisível nos comprime. O ar em nossa terra é denso, pesado; às vezes necessitamos esforço para respirar. E até isso nos roubam, estragando-nos os pulmões: ao sair da cadeia, estamos tuberculosos. Como vivemos? Propriamente não vivemos: aquilo não é vida. Quando entramos na Colônia Correcional, dizem-nos — “Não vêm corrigir-se. Vêm morrer. E ninguém tem direitos. Nenhum direito”. Espanta-nos a franqueza. Numa existência de animais, ficamos semanas em jejum completo. Descerram-se enfim as grades, vemos o Sol. Não realizaram, pois a ameaça? Não nos mataram? Em parte, realizaram: estamos na verdade quase mortos. Ganhamos cabelos brancos e rugas. Assim tão fracos, tão velhos, não conseguiremos trabalhar. Arrasaram-nos”.

Segunda ironia na viagem do Velho Graça: tentando descrever o Brasil a partir de sua experiência pessoal, na verdade descreve a sociedade dos gulags, da qual é hóspede privilegiado.

Tão intensa é sua vontade de crer, que vê como grande avanço do socialismo a aniquilação das diferenças individuais. Em Moscou, pergunta à sua guia se uma transeunte próxima seria empregada em oficina ou repartição pública. A senhora Nikolskaya, moscovita, não consegue satisfazer-lhe a curiosidade: “É impossível saber. Não achamos distinção”. O viajante cede então ao utópico sonho de Lênin, o da sociedade em que o pedreiro seria também engenheiro:

“Um ofício não é superior a outro — e os homens tendem a uniformizar-se. Essa idéia choca o nosso individualismo pequeno-burguês: achamos vantagens nas discrepâncias, receamos tornar-nos rebanho. E nem vemos que somos um rebanho heterogêneo, medíocre, dócil ao proprietário. Queremos guardar o privilégio imbecil de não nos assemelhar-nos ao vizinho. Enfraquecendo-nos, julgamo-nos fortes. Realmente, somos bestas”.

O gesto é de contrição.

Antes de regressar ao Brasil, nas proximidades do aeroporto de Moscou, o escritor tira o chapéu à horrenda arquitetura que nos legou Brasília. Vê casas e, intimamente, propõe a destruição delas:

“Há na vizinhança do aérodromo casinholas de madeira, lastimosas, lôbregas, a cair de velhice. Não exibem realmente a miséria das nossas favelas, mas tristes, feias, abrigam enorme desconforto. Vestígios de outras épocas, impressionam mal o visitante. Próxima se eleva a universidade, imensa, e isto aumenta a penúria dos infelizes pardieiros. Conveniente destruí-los, pensei, evitar-nos a visão molesta. O prejuízo não seria grande: os habitantes das minguadas velharias, pouco numerosos, achariam sem esforço asilo noutros lugares, e os estrangeiros de maus instintos, resolvidos a torcer o nariz ao socialismo, perderiam num instante aparências de razões badaladas com rigor lá fora: os indivíduos aqui não têm onde morar: na cidade enorme, sete milhões de criaturas se alojam a custo, várias famílias arrumando-se num quarto miúdo. Estupidez, é claro. Mas por que não suprimir a causa da estupidez?”

O cauteloso escritor que se recusa a escrever sobre um mosteiro em Sukhumi, cidade balneária, porque “não me aventuro a expor conhecimentos arranjados à pressa, numa carreira de oitenta quilômetros por hora”, mal passa alguns dias em uma cidade de sete milhões de habitantes, com passeios orientados a palácios e museus, sente-se à vontade para escrever que é estupidez afirmar que os sete milhões de moscovitas habitam mal. Haja fé.

A senhora Nikolskaya, com ar de forte desprezo, o esclarece:

“— Estão aí as belezas do individualismo”.

O ensejo de Graciliano Ramos cumpriu-se. As belezas do individualismo não mais existem em Moscou. Todo moscovita, Nomenklatura à parte, vivia em blocos cinzas de concreto, e o problema habitacional persistia ainda nos dias de regime marxista, a ponto de jovens combinarem casamentos brancos com o fim exclusivo de obter do Estado alguns parcos metros quadrados. E o que é pior: a desoladora arquitetura staliniana acabou sendo transplantada para o Planalto Central brasileiro e, salvo terremoto ou bomba atômica, ali restará séculos afora.

Ao final da viagem, em Gagra, vilarejo às margens do Mar Negro, os anfitriões mais vez cobram o escritor. Uma professora lhe pergunta se não vai escrever um livro sobre a União Soviética.

“Não sei, minha senhora. Acho que não. Faltam-me observações, demoro pouco”.

Na despedida, na Geórgia, Leonidze, presidente da União dos Escritores — a quem o convidado oficial da VOKS (Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros) dedica um capítulo, indignado com a imprecisão de seus informes — afirma que a viagem renderá a ele, Graciliano, um livro.

“— Muito difícil. Ignorância completa”.

Mas renderia, ainda que póstumo. E o criterioso Graciliano, que recusava dobrar-se aos ditames de Zdanov, acaba escrevendo uma obra-prima de realismo socialista. Enquanto suas ficções não são ficções, mas a realidade do homem nordestino, seu relato de viagem não é real, mas ficção pura, e das mais infelizes.

Sobrevivesse Graciliano ao XX Congresso, qual seria sua atitude? Ignoramos. Era, sem dúvida alguma, um homem íntegro. Mas a necessidade de crer em algo é mais forte, no homem, do que sua coerência.

*Mais em Engenheiros de Almas
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/engenheirosdealmas.html

terça-feira, março 19, 2013
 
MEC AVALIZA ANALFABETISMO


Redações que receberam nota máxima na avaliação do Enem 2012 (Exame Nacional do Ensino Médio) tinham erros de ortografia, como "rasoavel", "enchergar" e "trousse", informou o jornal carioca O Globo. As "melhores" redações do Enem têm erros de ortografia, concordância verbal, acentuação e pontuação. Estes textos tiveram a nota máxima - 1000 - na avaliação do MEC (Ministério da Educação). Os textos recebidos tinham problemas de acentuação em palavras como indivíduo, saúde, geográfica e necessário, além de algumas frases não terem ponto final.

Em uma das redações analisadas, o candidato erra duas vezes a concordância. Escreve, por exemplo, "essas providências, no entanto, não deve (sic) ser expulsão". O estudante conjuga ainda o verbo haver, no sentido de existir, no plural: "É fundamental que hajam (sic) debates".

Para o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), uma redação nota máxima pode apresentar alguns desvios nas competências avaliadas. Segundo a nota enviada ao jornal, "um texto pode apresentar eventuais erros de grafia, mas pode ser rico em sua organização sintática, revelando um excelente domínio das estruturas da língua portuguesa".

E ainda há quem se espante. Na Universidade Federal de Santa Catarina, encontrei meninas em final de curso que grafavam “eu poço”. Professor algum as reprovava. Eu as reprovei. A crise surgiu quando reprovei a sobrinha de um deputado. Nossa! Veio o departamento todo em cima de mim, mais o grêmio de alunos e inclusive a reitoria. Havia uma conspiração toda para aprovar uma analfabeta, só porque era sobrinha de um deputado. Mais tarde, só bem mais tarde, fui saber que já haviam sido emitidos trezentos convites para sua festa de formatura. Seria a festa do ano em Florianópolis. Não foi.

Tive não poucas alunas em final de curso cometendo esse tipo de erro. Não tinham condições sequer de entrar na universidade e estavam prestes a dela sair, aptas para o magistério. Que se pode esperar de tal ensino? A universidade quer clientela e escancara generosamente suas portas.

Leitores estão perplexos com os alunos do ENEM. Nos anos 80, quem estava perplexo era eu, com minhas quartanistas. Mas como exigir conhecimento do vernáculo de alunos, quando jornalistas – profissionais que lidam com a palavra – já não conseguem mais distinguir o L do U? Não passa dia em que não encontremos, nos jornais, mal por mau e vice-versa. Isso sem falar no infame “confraternizar-se”, que parece estar virando norma.

Sob a rubrica “Nossa imprensa desvairada”, tenho denunciado as barbaridades que eventualmente me caem em mãos. Outro dia, encontrei no UOL esta beleza: miquitórios. Veja tem sido mais o veículo mais imune ao analfabetismo. Mesmo assim, em uma edição on line de 2010, encontrei artigo em que o redator grafa pelo menos oito vezes “a enfisema”. É o moderno cacoete de achar que palavra que termina em A é sempre do gênero feminino. Ainda na UFSC, encontrei alunas que falavam em “a esperma”.

Não bastasse isso, a peste já está contaminando a pós-grad. Comentei outro dia artigo da CartaCapital, de autoria do Dr. Leonardo Massud, que se assinava como advogado criminal, professor de Direito Penal da PUC-SP, mestre e doutorando pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, autor do livro “Da Pena e Sua Fixação: Finalidades, circunstâncias e apontamentos para o fim do mínimo legal”. E que no entanto grafava “mal vizinho”, “mal pagador”.

A mais curiosa pérola, no entanto, não foram erros de grafia. E sim o de um aluno que, numa redação sobre imigração no Brasil no século XXI, lá pelas tantas escreveu uma receita de miojo.

Nos dois primeiros parágrafos, o concorrente discorre normalmente sobre o tema em questão. No entanto, entra no próximo período descrevendo um "passo a passo" para cozinhar o alimento. Ele escreve: "Para não ficar muito cansativo, vou agora ensinar a fazer um belo miojo, ferva trezentos ml’s de água em uma panela, quando estiver fervendo, coloque o miojo, espere cozinhar por três minutos, retire o miojo do fogão, misture bem e sirva".

Após o trecho, ele retoma os movimentos imigratórios e encerra o texto de forma adequada. Teve 560 pontos. A meu ver, os examinadores foram mesquinhos. Minha nota seria a máxima, 1000. O aluno demonstrou senso de humor. Ou talvez tenha pretendido encher lingüiça para completar o número de linhas exigido. Sem falar que o Vladimir Safatle ou o Tarso Genro em muito tornariam seus artigos mais inteligíveis se, cá e lá, intercalassem uma receita não digo de miojo, mas talvez de churrasco ou tutu.

Outro aluno, de São José do Rio Preto, no interior paulista, escreveu o hino do Palmeiras inteiro. E tirou 500 – quase metade (48,4%) dos inscritos não conseguiram esse desempenho em 2012. O texto, postado em sua página no Facebook, ainda tem palavras grafadas de maneira errada – como “hostenta”. Nesta altura, o problema não é mais dos alunos, mas dos corretores. Devem estar lendo as provas em diagonal, ou nem mesmo lendo.

Fiz brincadeira semelhante em meus dias de faculdade. Em meu vestibular, na prova de francês, sei lá a propósito de quê, escrevi: “Où est la vraie beauté? Dans le mugir d’un boeuf ou dans le sourire d’un enfant?” Passou. Mais tarde, na disciplina de História da Filosofia, dissertando sobre a enteléquia aristotélica, acrescentei sem mais nem menos ao final de um período: “azar, azeite, azia”. Eu desconfiava que o professor não lia os trabalhos e queria testá-lo. Não deu outra. O professor não tugiu nem mugiu.

A propósito, quem conhece hoje esta expressão. Nem os lexicógrafos, ao que parece. No portal eletrônico “Nossa Língua Portuguesa”, encontro: “No momento não dispomos de definição para a palavra sem tugir nem mugir. Ou a grafia está incorreta ou essa palavra ainda não consta em nossos bancos de dados”.

Quando o dicionário Houaiss aceita a forma “adéqua” na conjugação de adequar, que se pode esperar de um aluno que faz o ENEM? Se o latim corrompido gerou a última flor do Lácio, qualquer dia o brasileiro ainda gera uma nova língua.