¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, março 15, 2013
 
BERGOGLIO E MOROZOV


“Caríssimo Janer,
Confesso que não o entendo às vezes. Quando o cardeal carioca Dom Eugenio Sales morreu vc o criticou (justamente) por ter escondido subversivos comunistas na época do regime militar.Agora vc critica o novo papa por ter feito exatamente o contrário, ou seja, ter delatado religiosos comunistas na época do regime militar de lá. Qual o sinal de x na equação ? Abraços e mais melhoras a vc,
Nagib”

Longe de mim, meu caro Nagib, defender comunistas. Quem abriga guerrilheiros e comunistas é cúmplice de assassinos, e este foi o caso de Dom Eugenio Salles. Daí a delatar vai uma distância muito grande. Pior ainda, delatar colegas de batina. Desde jovem, tenho me manifestado contra o comunismo. Estudei Filosofia cercado de comunistas. Nunca me ocorreu delatar nenhum. Um deles, guerrilheiro urbano, que pegou quatro anos de prisão militar, foi um de meus melhores amigos.

Mais ainda: ser marxista, na época, era até confortável. Em um debate, ninguém poderia contestar alguém afirmando: “discordo de tua concepção marxista de mundo”. Dizer isso seria denunciá-lo, e ninguém denunciaria um colega.

Delação é legado do comunismo. Alguém ainda lembra de José Anselmo dos Santos, personagem dos anos 70, mais conhecido como cabo Anselmo? Marinheiro de primeira classe, proferiu violento discurso em 1964, no dia 25 de março, data do aniversário da Associação dos Marinheiros, que superou de longe em radicalismo o famoso discurso de João Goulart, doze dias antes, na Central do Brasil. Com a tomada do poder pelos militares, foi preso, fugiu da prisão, viveu em Cuba, esteve no Chile e neste percurso manteve estreito contato com a guerrilha brasileira no exílio. De 1971 a 73 atuou como agente duplo, infiltrado na guerrilha rural e urbana e passou a delatar os guerrilheiros. Suas informações, vitais para o desmantelamento da luta armada no Brasil, teriam tido como conseqüência a morte de oito deles no Recife. Há quem fale em cem mortes.

Cabo Anselmo entrou para a história com a pecha de traidor. Executada a missão a que se propôs, trocou de rosto e identidade e desapareceu do mundo dos vivos, para reaparecer recentemente, pedindo inclusive bolsa-ditadura. No prefácio ao livro Eu, cabo Anselmo, fruto de uma longa entrevista com os repórteres Octávio Ribeiro e Percival de Souza, é definido como assassino de sonhos. Isso porque delatou a guerrilha de esquerda. Delatasse os opositores a ditaduras de esquerda, seria herói.

Foi o que aconteceu com Néstor Baguer Sánchez Galarraga, jornalista cubano de 82 anos, conforme nos conta o jornal italiano Corriere della Sera. Amigo de praticamente todos os opositores internos ao governo cubano - diz o jornal - ao longo das quatro décadas em que atuou como agente infiltrado, escreveu ácidos artigos contra Fidel. Suas denúncias levaram 75 de seus colegas a sentenças de até 30 anos de prisão. Interrogado sobre como se sentia ao ver os amigos, com quem convivera por décadas, condenados a tais penas por obra sua, Baguer disse "estar convicto" de que a segurança de Cuba é mais importante.

O poeta e jornalista Raúl Rivero, sentenciado a 20 anos de prisão, era um de seus amigos mais próximos. "Não posso dizer que me senti feliz. Era muito amigo de Raúl e é claro que fiquei particularmente triste em me converter no seu principal acusador. É uma pessoa simples, que perdeu a cabeça por causa de todos os dólares que deram a ele. Isso me deixou muito triste", disse, acrescentando que telefonou para a mulher de Rivero depois do julgamento. Generosidade é a marca de Baguer. Manda um amigo para os porões da ditadura e telefona para reconfortar a mulher.

Tratado como herói pelo governo cubano, em entrevista ao Granma orgulha-se de sua delação: "Entre as coisas de que me sinto orgulhoso é de ter aportado algo à preservação da cultura de minha Pátria, porque o que se tratou com estas ações subversivas foi suplantar nossa cultura, culminar o velho projeto anexionista de absorção de Cuba por parte dos Estados Unidos".

A tradição é antiga e data das primeiras décadas da finada União Soviética. Nos passados anos 30, Pavel Trofimovich Morozov, apelidado de Pavlik pela propaganda soviética, foi cultuado como herói, com direito a estátuas e nome de escolas, em todo o mundo comunista. Qual foi o grande feito de Pavlik? Nada menos que delatar como kulak o próprio pai, aos serviços secretos de Stalin. Kulaks, para quem não lembra, eram os pequenos e médios proprietários de terra, dos quais dependia a agricultura russa. Ser acusado de kulak, na época, significava morte ou deportação.

Com o Exército mobilizado para cumprir o processo de coletivização, milhões de kulaks foram deportados para a Sibéria e condenados a trabalhos forçados. O que resultou em total desorganização da agricultura e oito milhões de mortos pela fome. O destino de Trofim, o pai de Pavlik, nunca foi esclarecido, mas parece ter sido fuzilado pela GPU, polícia secreta stalinista, sucessora da Cheka. Tatiana, a mãe, recebeu de Stalin,mandante último da morte do marido, uma pensão e uma casa na Criméia.

Pavlik foi em prosa e verso cantado e serviu como exemplo para milhares de delatores mirins. "Numa montanha há um kolkoz" - diz a Canção de um Herói Pioneiro - "Nosso camarada nasceu lá. Chama-se Pavel Morozov, nosso camarada é um herói. Ele não permitiu que seu pai roubasse a propriedade do povo". O cineasta stalinista Sergei Eisenstein chegou a esboçar um filme sobre sua vida. Centenas de estátuas foram erigidas em sua homenagem em toda União Soviética. Pavlik constou do Livro do Heroísmo e o Palácio da Cultura dos Jovens Pioneiros, em Moscou, levou seu nome.

"Pioneiro mártir - dizia a propaganda soviética - sua história foi contada a milhares de crianças e jovens soviéticos. Pavlik foi um bom garoto comunista, um pioneiro que seguia sempre o que era dito pelo Partido, destacado por sua firme convicção nos ideais comunistas e querido dos guardas, colegas, professores e autoridades locais". Com o que não pareciam concordar seus contemporâneos. Se o Paulinho conquistou a glória na hagiografia comunista - e até teve uma estátua no parque Morozov, que foi derrubada em 1991- a mesma sorte não teve em sua vida. Foi morto a pauladas aos 14 anos, pelo próprio avô Sergei, mais um primo seu e um irmão, como vingança à delação do pai. Sergei foi torturado, condenado e fuzilado, com mais outros quatro réus.

O gesto de Pavlik parece ter chocado o próprio Stalin, que teria dito: "Que pequeno suíno, denunciando seu próprio pai". O que não o impediu de promovê-lo como o "Herói, que amava o seu Estado acima de tudo até do próprio pai".

Em meio a isso, outro leitor me envia as declarações de Adolfo Pérez Esquivel em defesa do novo papa. Em entrevista a BBC Mundo, disse o ativista argentino e prêmio Nobel:

"Hubo obispos que fueron cómplices de la dictadura, pero Bergoglio no. A Bergoglio se le cuestiona porque se dice que no hizo lo necesario para sacar de la prisión a dos sacerdotes, siendo él el superior de la congregación de los Jesuitas. Pero yo sé personalmente que muchos obispos pedían a la junta militar la liberación de prisioneros y sacerdotes y no se les concedía. No hay ningún vínculo que lo relacione con la dictadura".

Ora, as acusações de Verbitsky não surgiram ontem, quando Bergoglio foi eleito papa. Datam de 2005, quando o novo papa era arcebispo em Buenos Aires. Saíram em livro, o que é grave. Mais ainda: atacavam uma alta autoridade da Igreja, que tinha - mais que interesse - o dever de zelar por sua reputação. Por que Esquivel não o defendeu na ocasião? Tivesse defendido, se reportaría a essa defesa na entrevista. Por que Bergoglio não processou Verbitsky por calúnia? Poderia ter impedido a divulgação do livro, exigido uma retratação do autor e ainda poderia ganhar alguma grana para suas obras pias. Não o fez. Agora é tarde.

Não li o livro de Bervitsky. Mas a inércia do arcebispo ante a denúncia é significativa.