¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 11, 2013
 
DA EXCELÊNCIA DA ÁGUA


Como os leitores sabem, sou ateu. Mas na hipótese – que só levo em conta para efeitos de raciocínio – de o Cara aquele existir, só pode ser meu fiel leitor. Perscrutou pacientemente minhas crônicas e me pegou pelo que mais prezo: beber, comer, viajar. O primeiro câncer foi em 2009 e me afetou o paladar. O segundo, em 2011, e roubou mais um prazer que me restava, o beber.

Quem passou por estas agruras, sabe dos procedimentos. Há controles periódicos, primeiro de três em três meses, depois de seis em seis. Em novembro de 2011, eu tinha um destes exames. A Primeira-Namorada estava concluindo seus estudos em Berlim e pensei em apanhá-la para uns bordejos pelo norte da Europa e Leste europeu. Longe de mim pensar em um segundo carcinoma, mas sabe-se lá! E câncer pode muito bem esperar 30 dias.

Deixei o exame para a volta, não pretendia viajar com um caranguejo na mala. Comecei por Berlim, fui até Copenhague, onde me encharquei nas akvavit, voltei a Praga e desviei para Karlovy Vary, que ainda não conhecia. Divina. É uma cidade pequena – 60 mil habitantes – mas com uma arquitetura imponente. Estava cercada por um outono histérico, que a tornava ainda mais charmosa. A cidadezinha, cercada de vermelho, é cheia de termas. Mas atenção: se você não está em busca de águas, três dias são mais que suficientes. Certo, o mundo está cheio de pequenas cidades lindas: Toledo, Cuenca, Ronda, Granada, Siena, Orvieto, Ravello, Amalfi, Positano, Taormina, e até aqui não saí da Espanha e Itália. Fora as que não conheço. Mas Karlovy Vary me impactou. Jamais vi cidade pequena tão solene.

Se você quiser ter uma idéia da cidade, procure os filmes As Férias de Minha Vida, com a atriz Queen Latifah, e Cassino Royale, estrelado por Daniel Craig, com os interiores do majestoso Grandhotel Pupp.

De Praga fui para Budapeste, que também já conhecia. E onde me viciei no Café New York, certamente o mais imponente que conheço na Europa. Descobri que o café pertence hoje a um hotel, o Boscolo, e nele fiz reserva, para não ter de caminhar muito até o bebedouro.

Soleníssimo, o New York tem baldaquinos que lembram os de Bernini. Passei cinco dias no bar. Explico: café da manhã e um vinho para rematar à noite. Me senti um pouco nalgum boteco privado do vice-deus no Vaticano. Visitei também o Gundel, considerado um dos melhores restaurantes do Leste europeu. E degustei, ao som de violinos magiares entoando czardas, um Svatovavřinecke Jakostini 2006. Ousei ainda pelos Kékfrankos Sopron, pelos Kadarka Szekszard e pelos Szekszárdi Tužilac.

Até parece que sou sommelier especializado em vinhos tchecos. Nada disso. Eu pedia pelo nome. Quanto mais impronunciável, melhor. Não tive decepções. As palavras me fascinam. Já namorei inclusive uma peoniana. O que nela me atraiu, pelo menos de início, é que seu nome estava cheio de kas e ves.

O Becherovka é um licor tcheco, inventado por Ian Becher (daí o nome), cuja excelência seria devida às águas da cidade. Segundo a lenda, apenas duas pessoas sabem quais são os trinta ingredientes da fórmula e sua exata proporção. Recomendo vivamente.

Quem me lê sabe que viajo para visitar bares. Viajante inteligente é o que vê museus por fora e bares por dentro. Desta vez, no entanto, passei uns cinco dias em um museu. Explico. O canal de Nyhavn, em Copenhague, está repleto de bares e restaurantes. Mas não deixa de ser um museu. No caso, de veleiros antigos, que ali estão atracados para fazer paisagem. Há outros museus que adoro na Europa. São os museos del jamón, da Espanha. Em verdade, é uma rede de bares cujas paredes e tetos estão cobertas por presuntos. Certa vez, li uma notícia sobre alguém que morreu soterrado por presuntos. Só podia ser na Espanha. Era. Estes museus peculiares, costumo visitá-los várias vezes na semana.

Na volta, o controle. Depois do Becherovka, o que tiver de vir que venha. Não deu outra: carcinoma na hipofaringe. Nunca em minha vida uma decisão foi tão sabiamente tomada. Porque neste segundo, o Cara exagerou. Depois da segunda radioterapia, até o vinho passou a queimar na garganta. Uísque, nem em sonhos. E lá se foi pelo ralo a vida que elegi para meus dias, a das viagens e bares. Pois viajar sem beber e sem sentir o prazer do que se come não é viagem. É tortura.

Que fazer? Como dizia Fierro,
solo queda al desgraciao,
lamentar el bien perdido.

Mas o Cara, pelo jeito, não estava satisfeito com a vingancinha sórdida. Minha garganta foi estreitando, passei a não conseguir engolir sólidos e nem mesmo tomar água, por ser pouco espessa. Troquei pela cerveja, que minha garganta ainda suportava, justo por ser mais espessa. Até o momento em que nem cerveja passou. Tive de apelar a espessantes. Você consegue imaginar o que é água com espessante? Imagine então tomar um pirão insípido de água.

Eis senão quando a Primeira-Namorada e outra alma demoníaca, sua mãe, me tentaram com tentação mais tentadora que as tentações de santo Antão no deserto: uma aurora boreal, velho sonho que há anos alimento. Como resistir? Fiz exames, tomografia, ressonância magnética, até mesmo uma biópsia, e nada da peste. Meus problemas eram atribuídos a efeitos tardios da radioterapia. Então vamos lá. No Ártico devem existir sopas, yogurts, alimentos pastosos.

Fui, me enregelei na noite eterna de Tromsø, a aurora faltou ao encontro e o Cara foi me estrangulando aos poucos. Deve ter pensado: “eu mando raios e aquele ateu se faz de desentendido e quer ver uma de minhas maravilhas. Merece morrer à míngua”. Para bem sublinhar seu poder, colocou-me em bons hotéis e navios com smørrebrød magníficas e vinhos de todos os quadrantes. Eu, tomando sopinhas e água com espessante. Lembrou-me aquele momento em que Lucas mostra, definitivamente, que o Inferno fica perto do Céu:

“Ora, havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo, e todos os dias se regalava esplendidamente. Ao seu portão fora deitado um mendigo, chamado Lázaro, todo coberto de úlceras; o qual desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as úlceras. Veio a morrer o mendigo, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico, e foi sepultado. No Hades, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe a Abraão, e a Lázaro no seu seio. E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e envia-me Lázaro, para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que em tua vida recebeste os teus bens, e Lázaro de igual modo os males; agora, porém, ele aqui é consolado, e tu atormentado. E além disso, entre nós e vós está posto um grande abismo, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem os de lá passar para nós”.

Pior ainda: se Lázaro me desse um balde de água, não poderia sorvê-lo. O Cara entende de dramaturgia, prepara com virtuosismo o cenário para punir o herege. Voltei. Não deu outra. O Cara me fulminou com mais dois tumores, um na laringe e outro nos gânglios. Gastrotomia, traqueostomia e laringotomia. A laringe foi extirpada e reconstituída com pele do ombro. 36 dias no melhor estaleiro da América Latina, o Sírio-Libanês.

Morrer seria mais confortável, afirmei na ocasião. Claro que meus amigos discordaram da idéia. Mas que seria, seria. Desde que voltei a ser ateu – nascemos ateus, não é verdade? – não mais temi a Indesejada das Gentes. Agora, constatei: não temo mesmo. Quando quiser vir, que venha.

No hospital, devo ter causado espécie. Durante mais de mês não liguei a televisão. Se televisão irrita quando se está são, imagine o quanto irrita quando se está doente. Alimentei-me de livros e jornais. Quando cansava, recitava mentalmente meus poemas prediletos e as árias de óperas que me fascinam.

Estou agora chez moi, com homecare e toda a tralha hospitalar, mais enfermeiras, cuidadoras, fisioterapeutas, fonoterapeutas. Já que amigos e médicos me salvaram, que fazer senão continuar vivendo? Tudo isso para dizer que, hoje, após uns seis meses, pela primeira vez tomo água pura e gelada.

Nossa! Como água é bom!