¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, junho 06, 2013
 
A CHISPA DA FERRADURA
QUANDO BATE NA CALÇADA



“Se cada espanhol opinasse sobre aquilo que sabe, e só a respeito do que sabe, se faria um grande silêncio, que poderíamos aproveitar para o estudo” – disse Don Manuel Azaña, presidente da República durante a Guerra Civil Espanhola. Político e escritor controvertido, praticou vários gêneros literários e é praticamente desconhecido entre nós. Mas se trocássemos espanhol por brasileiro, a frase não perderia nada de seu valor.

No caso, me refiro ao pastor Silas Malafaia, que organizou ontem uma manifestação em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, em favor da liberdade religiosa e contrária ao casamento gay e ao aborto. Entre uma bobagem e outra, o pastor diz algumas verdades. É a chispa da ferradura quando bate na calçada, como dizia Agripino Grieco.

- Tem áreas da esquerda que querem controlar o conteúdo da mídia – disse Malafaia em entrevista concedida nesta terça-feira passada –. Imprensa livre é base do estado democrático de direito. Liberdade de expressão porque o ativismo gay quer criminalizar a opinião. Em qualquer lugar do mundo, você pode falar contra a prática homossexual. Aqui eles querem dizer que é homofóbico.

Toda razão ao pastor. Com um senão. Não é bem áreas da esquerda que querem controlar o conteúdo da mídia. Mais precisamente é o PT, que há anos luta para impor a censura à imprensa. Mas Malafaia, que se jacta de ser valente, prefere não dar nome aos bois. Apoiou Lula em 2002 e agora está apoiando Lindbergh Farias, senador do PT-RJ e pré-candidato ao governo do Estado. O pastor é valente pela metade. Ou talvez tenha um quarto da valentia da qual se gaba. Se tanto.

Tampouco deixa de ter razão quando afirma que ninguém nasce homossexual, “não existe nenhuma prova na genética, em nenhum lugar. (…) Quer dizer que a Daniela Mercury nasceu gay? A mulher foi casada nove anos com um homem. Ela estava transando com um homem e pensando em uma mulher? Pra cima de mim? A mulher tem filhos, tem três, quatro, cinco filhos, sei lá quantos filhos ela tem. Então, ela já nasceu gay por algum acaso? É papo. Isso é conversa pra boi dormir”.

Toda honra e toda glória ao pastor. Ocorre que o religioso não consegue admitir que alguém opte livremente por ter relações com pessoa do mesmo sexo. “A prova é que 48% dos caras que são gays foram violentados quando eram crianças ou adolescentes. Violência sexual”. Ou seja: ninguém é homossexual porque gosta de ser. Mas porque foi violentado quando criança. Se nega uma razão de ordem genética para alguém gostar do mesmo sexo, também nega sua livre opção por este comportamento. O homossexual é um doente que precisa ser curado.

Em meus dias de Folha de São Paulo, quando escrevi um artigo abordando a possível homossexualidade de Cristo – e por que não? Se os evangelhos nada dizem sobre sua sexualidade, qualquer hipótese é permissível. Assexuado é que não deveria ser – recebi telefonema de um pastor, perguntando se eu não estava precisando de cura. Disse-me que tinha uma casa onde abrigava muitos ex-homossexuais. Ora, pastor, confesso que jamais vi um destes seres de perto. Entendo que uma pessoa possa ser ex-marido, ex-sacerdote, ex-comunista. Mas por que ser ex-homossexual? Se era, a prática lhe era prazerosa. E se lhe trazia prazeres, por que a ela renunciar?

- Filho, eu estou numa igreja. Vem ver aqui os caras que vêm pedir socorro por homossexualismo – diz Malafaia.

De minha parte, confesso que nunca vi alguém pedir socorro por gostar do bem-bom. Se pede, aí sim é porque é doente. O pastor continua navegando por seu besteirol:

- Não é “eu não quero” e acabou. Se é pra aprovar qualquer comportamento, o que não tem ativismo não legaliza? Por que não legaliza o cara casar com duas ou três mulheres, já que muitos têm?

O pastor pelo jeito não lê jornais. Já há juízes reconhecendo como legal a união com dois homens. A bigamia, por exemplo, foi instituída há cinco anos, através de um neologismo, o poliamor. Em 2008, em Porto Velho, Rondônia, uma mulher obteve na Justiça o direito de receber parte dos bens do amante com quem conviveu durante quase 30 anos. Ele era casado e morreu em 2007, aos 71 anos. O juiz Adolfo Naujorks, que concedeu à moça o direito de herança, baseou-se em artigo publicado num site jurídico segundo o qual uma teoria psicológica, denominada "poliamorismo", admitia a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta.

Ano passado, uma união conjugal entre três pessoas foi lavrada em um cartório em Tupã, interior de São Paulo. Claudia Domingues do Nascimento, a tabeliã do cartório e redatora do texto, afirmou que o trio tentou, sem sucesso, formalizar a escritura de união estável em outros cartórios. “Aí eles descobriram que minha tese de doutorado é sobre união poliafetiva [entre mais de duas pessoas] e me procuraram”, disse. Se antes era o Legislativo que determinava o regime legal do casamento, ao que tudo indica hoje tese de doutorado produz legislação.

- Por que não legaliza o cara casar com um homem e com uma mulher? Uma mulher casar com um homem e outra mulher? Por que não legaliza isso? – pergunta retoricamente Malafaia.

Calma, pastor. Basta dar tempo ao tempo. Você não perde por esperar. “Toda a história da civilização humana – não estou falando de teologia, é antropológico, é sociológico – é um homem, mulher e prole. Isso é história da civilização humana”.

Era, pastor, era. Agora já não mais é. Mas já foi. O pastor deve ter feito gazeta em suas aulas de história e pulou aquele capítulo sobre poligamia e poliandria. O repórter objeta:

- O senhor declarou em entrevista neste feriado que qualquer um é livre pra fazer o que quiser…
- Qualquer um é livre para ser o que quiser ser.
- Então porque o senhor é contra o casamento gay, já que é um direito individual?
- Vamos devagar. Cada um é livre para ser o que quiser ser. Mas tudo o que você quer ser tem uma consequência. Você é livre, mas, se vamos legalizar um comportamento, então legalizemos todos. Vamos legalizar o cara que cheira cocaína, maconha. Também é um comportamento. Vamos liberar, pô, vamos liberar tudo. Cara que tem três mulheres. Por que não pede para liberar o casamento do cara com quatro mulheres?

O pastor parece viver em uma torre de marfim, sem noção do mundo que o cerca. As drogas há muito estão legalizadas. Ninguém mais vai em cana por uso de drogas. Até parece que o pastor não conhece São Paulo, onde uma multidão de zumbis queima crack no centro da cidade, sob o olhar conivente do governo e da polícia. Quanto ao “casamento do cara com quatro mulheres”, isto só depende do cara e de um juiz ou tabelião complacente. O repórter é teimoso:

- Mas eles querem liberar tudo. E aí?
- Então, eu sou contra. Contra casamento gay, liberação das drogas, aborto. Se a sociedade liberar tudo, ela se destrói. Teve um cara que escreveu livro lançado agora em maio, um filósofo, mostrando a decadência do ocidente. E a decadência do ocidente tem a ver com questões morais também. O modelo judaico-cristão está sendo substituído pelo modelo humanista-ateísta. O jogo é mais profundo. Quem é que faz defesa de vida? É o modelo judaico-cristão. Quem é que dá a questão da família monogâmica? O modelo cristão. É que está na sociedade e o é o que tem dado certo”.

Para o pastor, pelo jeito o sol nasce e deita de um lado só. Parece nunca ter ouvido falar em Oriente, em civilizações onde a família monogâmica mal existe. Ou será que Malafaia jamais ouviu de Islã? Nem de Maomé, que permite ao crente quatro mulheres? E que permitiu a si mesmo, por especial deferência de Alá, nada menos que onze, inclusive uma criança de seis anos. E o mundo muçulmano vai muito bem, obrigado. Aliás, atravessa um momento triunfante. Já começa a impor-se à Europa. O Ocidente monogâmico está decaindo, entre outras razões, porque o Islã poligâmico vive novo surto de expansão.

Malafaia, que usa e abusa daquela hipocrisia também típica dos católicos – a de que combate o pecado, não o pecador - parece desconhecer o livro que usa sob o sovaco:

- Na Bíblia, homossexualismo é pecado.

Sim, e punível com a morte. Isto o pastor omite. Finge que não leu o Levítico 20,13: “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometem uma abominação, deverão morrer, e o sangue cairá sobre eles”. Ao condenar o pecado, mas não o pecador, Malafaia está indo contra o livro que carrega debaixo do sovaco. A Bíblia condena o pecador. À morte.

Lobos, sabe-se lá por quê, não dispensam uma boa conversa antes de comer o cordeiro. Gostam de exercitar o verbo. Mas não convencem quando querem interpretar o liberal diante dos cordeiros. De tanto falar, se atrapalham e acabam dizendo algumas verdades.