¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 16, 2013
 
O DIREITO DE OFENDER


Me escreve Roberto Xavier:

Caro Janer

Mais uma vez venho por meio desta, reafirmar minha admiração pela maneira como você aborda os vários temas em todos os setores da vida humana. Necessário se faz, para um bom entendimento e coexistência pacifica entre todos, uma imensa carga de sacrifícios de valores pessoais e de compreensão aos valores alheios.

Seguindo por este caminho, ao ler seu artigo sobre a aposta do Papa nos jovens, em sua visita ao Brasil, eu devo, de uma forma manifestar minha opinião, sem grandes vinculações a dogmas ou crenças, quanto à questão de você afirmar com veemência sobre ressurreição ou não, sobre divindade ou não. Segundo sua próprias palavras:

“Há vinte séculos pensadores têm demonstrado o engodo do cristianismo,sua doutrina baseada no credo quia absurdum, sua transformação em doença de tudo que foi um dia saúde, sua anulação do homem transferindo seu destino para uma imortalidade que não existe, sua crença em um deus que tampouco existe, em uma ressurreição que não houve nem poderia haver...”

Eu sempre carrego comigo, uma tese que me protege contra os perigos de cair em algum fosso obscuro de fanatismo ou ceticismo cegos e surdos. Tal tese, que na verdade é um pequeno enunciado que escrevi em um pedaço de papel de embrulhar pão, guardado na minha carteira, e que diz o seguinte:

"Lembre-se, ao contestar qualquer teoria, tenha sempre em mãos ao menos uma comprovação cabal e inconteste sobre aquilo que está a defender", sob pena de se cair no remoinho inútil das discussões estéreis."

Neste caso, no que concerne tais afirmações, quanto à existência ou não existência daqueles eventos por você acima citados, ao que parece tudo indicar, não existem comprovações nem em favor e nem contra tais especulações, a não ser aquelas que indicam para a lógica elementar pura e simples.

No que diz respeito às coisas espirituais, que tratam de questões referentes à morte e/ou sobrevivência ou não após este fenômeno, isto só poderá ser verificado com maior segurança e clareza depois que o indivíduo cruzar este portal. Aos que ficam, aqui neste mundo, resta apenas os dois parceiros inseparáveis do homem; a dúvida quanto ao que se sabe, e a certeza daquilo que não se conhece.

Muito grato pela atenção.


Meu caro Roberto,

Louvável, sem dúvida alguma, sua preocupação em respeitar crenças alheias. Mas... mas... mas... de sua mensagem, deduzo que não podemos, por exemplo, negar a existência dos centauros. Prova negativa é complicado. Nada prova que os centauros não existam. Se não os temos visto contemporaneamente, há relatos lendários sobre suas existências. É uma impossibilidade lógica? É! Mas, a deduzir do que você diz, as comprovações “que indicam para a lógica elementar pura e simples” de pouco ou nada valem. No caso da vida após a morte, seria preciso cruzar o portal para afirmar qualquer coisa.

Cruzando o portal estamos todos os dias. Ocorre que ninguém volta. Há religiões que dizem que voltamos, a começar pelo cristianismo. Isto sem falar nas teorias da metempsicose, anteriores ao próprio Cristo, e já denunciadas por Celso (volto amanhã ao assunto). A verdade é todos estes testemunhos se revelaram pertencentes ao território do wishful thinking e nunca tivemos depoimento digno de crédito. Pessoas de curto raciocínio, que julgam ser desejável a vida eterna, costumam crer em relatos fantásticos e fazem disto uma fé. Pensassem ao menos um pouco, fugiriam em pânico ante a idéia de eternidade. O que dá valor à vida humana é precisamente sua fugacidade.

Contestei o cristianismo lá por meus quinze, dezesseis anos, quando vivia ainda em Dom Pedrito, em uma época em que adolescentes liam e questionavam a educação recebida. De lá para cá, minhas convicções mais profundas em pouco ou nada mudaram. Com a mesma certeza que neguei na época a inexistência do que não existe – e não eram os centauros que estavam postos em causa – eu a nego agora.

Os padres não apelaram ao respeito a crenças alheias, este vício de nossa época politicamente correta. Vieram por outro lado, com o surrado argumento da autoridade. Para desgraça de meus catequistas, muito cedo comecei a ler a Bíblia. Como não há fé em Deus que resista a uma leitura atenta da Bíblia, minhas dúvidas começaram a inquietar os oblatos. Um sacerdote de Bagé, franzino e inquisitorial, veio às pressas para tentar trazer o herege em potencial de volta ao rebanho.

Discutimos um dia todo, com várias jarras de água e um almoço de permeio. A cada preceito de fé que eu contestava, o padre Fermino Dalcin me jogava no rosto a acusação: "Arrogância. Orgulho intelectual. Quem és tu para contestar, aqui em Dom Pedrito, o que autoridades decidiram em Roma?"

Era um argumento pesado para um piá de uns quinze anos. Eu só tinha como defesa descrer do que não conseguia entender. Mas resisti e consegui, ainda adolescente, libertar-me do deus judaico-cristão. Padre Fermino podia escorar-se na Bíblia, em Paulo ou João, em Tomás de Aquino ou Agostinho. Eu me escorava firmemente naquilo que você chama de “a lógica elementar pura e simples”, a boa e velha lógica que já está em Aristóteles e que diz, singelamente, que se A é igual a B, e B é igual a C, temos então que A igual a C.

Minhas convicções ferem as alheias? O que penso ofende outras pessoas? Respeito todas as fés, cada um creia no que quiser e boa sorte a todos. Mas não vou negar o que penso só para não magoar delicadas psiquês. Respeito é algo que devo, antes de mais nada, a mim mesmo.

Estou apenas exercitando faculdade reconhecida pela Corte Européia de Direitos do Homem, o direito de ofender. O acórdão Handyside, de 1976 – que, no Brasil, acho que sou o único a citar - declara com todas as letras:

A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática.