¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, julho 06, 2013
 
SOBRE MEU APREÇO
PELO CINEMA MUDO




Pessoalmente, não vejo saída satisfatória para esta baderna toda – escrevia eu no mês passado. Mas há algumas obviedades que não podem ser ignoradas. O país não pode viver nessa tensão contínua. Um dia é preciso retomar a vida normal. Festa tem hora de acabar.

Já acabou. A “revolução verdadeira” anunciada pela Veja, os sete dias que mudaram o país, já fazem parte de um passado distante. Da bagunça toda resultou a redução de tarifas em algumas cidades e a promessa de um plebiscito. Que ninguém pediu e que provavelmente não passará de projeto.

Saída, só o cansaço – disse então. Honestamente, não via outra. Como uma febre que vai e volta, a temperatura deveria ceder nas semanas seguintes. Já cedeu. Renan Calheiros, o súbito intérprete da voz rouca das ruas, foi flagrado usando um jatinho da FAB para ir ao casamento da filha de um amigo. Garibaldi Alves, ministro da Previdência, usou outro para ir a um jogo da Copa das Confederações.

Não escapou da tentação nem mesmo o impoluto presidenciável Joaquim Barbosa, presidente do STF, que foi assistir, no dia 02 passado, no camarote do tal de Hulk, o jogo Brasil e Inglaterra. A notícia é originalmente do Estadão. O STF nega que o ministro tenha voado para ver um jogo de futebol. Se assim é, o Estadão cometeu crime de calúnia contra uma das mais altas autoridades da República. Irá Joaquim Barbosa representar contra o jornal e pedir indenização por danos morais? Quem viver, verá.

Que ministros e deputados voem em jatos da FAB até que não me espanta. Virou vício e sabemos como é difícil curar-se de um vício. Mal silenciou a voz da gloriosa Revolução de Junho de 2013 e, já neste mês julho, as mais altas autoridades do país estão recidivando. O que me espanta é ver estes senhores, bem ou mal responsáveis pelos destinos da nação, tendo como prioridade ver ... um jogo de futebol.

Então o país não tem solução? – me pergunta um leitor. Decididamente, acho que não. Ou alguém acha que país que elege e reelege um operário analfabeto, conivente com a corrupção e defensor de corruptos, que elege o poste indicado pelo operário analfabeto para sucedê-lo, que elege e reelege Sarney, Collor e Renan, tem solução?

Voi che siete brasiliani, lasciate ogni speranza - escrevi. Brasil não tem cura. A menos que se troque este povinho, como se dizia como piada durante a ditadura. Povo inculto se governa com pão e circo, futebol e carnaval.

Mudo de assunto sem mudar de assunto. Ano passado, eu deplorava esta mania que está assolando o cinema e a televisão nacional, a mania de dublagem. A cada dia que passa, torna-se mais raro ver a versão original de um filme, seja nas salas, seja em casa.

Nunca suportei filme dublado. Ver um filme sueco ou italiano em português – ou mesmo em francês - destrói qualquer filme. Um Marcelo Mastroianni, um Toshiro Mifune ou uma Liv Ullmann falando em carioquês chiado me faz doer o estômago. Há dois anos, para meu conforto, comprei um televisor de 56 polegadas, se de plasma ou LED, não me perguntem: não sei. Assim, pensei na época, posso curtir algum cinema em tela confortável sem precisar entrar em filas ou enfrentar um público mal-educado. Assinei também TV a cabo, para escapar da miséria nossa.

Ocorre que, de uns três anos para cá, uma praga invadiu os canais estrangeiros, o filme dublado. Não está fácil encontrar um filme legendado na televisão. Os exibidores oferecem às vezes uma opção com legenda. Mas com diálogos em português. Você é tratado como um surdo. Já que se recusa a ouvir português, vai legenda. Ou como analfabeto: já que não sabe ler português, vai dublagem. Mas ver um filme legendado e dublado ao mesmo tempo é uma tortura só suportável por analfabetos.

Na época, manifestei minha inveja a uma surdinha de Belo Horizonte, que ganhou na Justiça o direito de receber indenização de um cinema que não exibia filmes legendados no dia em que ela queria comemorar o aniversário de dois anos de namoro.

O cinema foi obrigado a pagar R$ 10 mil à jovem por danos morais e a doar outros R$ 10 mil a uma creche. A surdinha disse que tinha direito de assistir a filme igual a todo mundo. "Tem mais filme dublado do que legendado. Fico olhando ouvintes entrando animados no cinema e eu nervosa, lá fora, com vontade de ver", afirmou.

Senti inveja mas não muita. Se a surdinha foi indenizada, continua tendo de ver filmes dublados. Sem falar que sua queixa não era por não ouvir a trilha original, mas por não ter legendas.

Na decisão, o juiz Fabrício da Cunha Araújo afirmou que o exibidor tem o dever de passar pelo menos um filme de cada gênero compreensível para surdos por dia. A televisão até que oferece legendas. Mas me empurra junto a dublagem. Como não posso reclamar que não entendo o filme, estou no mato sem cachorro. E meu belo televisor acabou perdendo sua utilidade. Na época, atribui esta imposição do filme dublado às guildas de dubladores.

Ingenuidade minha. Leio na Folha de São Paulo, edição de amanhã, que o filme dublado venceu em toda linha. A TV paga se adaptou à preferência do assinante.

“O espectador brasileiro hoje prefere ver filmes estrangeiros dublados na TV por assinatura e dispensar o som original – junto com a tarefa de ler legendas. Este comportamento está identificado em pesquisas e refletido na distribuição da audiência entre os canais, que têm procurado aumentar a oferta de filmes e séries dublados e adotar como padrão a versão brasileira do áudio”.

Ou seja, quem clama por analfabetismo é o público. Quem pede por um ator japonês ou inglês ou italiano falando um carioquês chiado é o privilegiado telespectador que paga caro pela TV paga, para ver a sombra da sombra de um filme. A TV paga encara dublagem como recurso para cativar a classe C – diz o jornal. A tendência de crescimento espontâneo da classe C foi percebida pela Fox em 2007. Este crescimento engrossou a base de assinantes da TV paga.

Disse que ia mudar de assunto sem mudar de assunto. Em verdade, não mudei. Não tem solução um país que vota em analfabeto, cujos ministros não perdem futebol e cuja classe média – que teoricamente tem maior acesso à cultura e à arte – ao ver um filme estrangeiro prefere a versão para analfabetos.

Acabo utilizando um recurso que não deixa de mutilar a obra: se tenho a ventura de encontrar um filme decente – o que não é fácil nestes dias de vampiros e zumbis – desligo o som. Tenho me dedicado, ultimamente, ao cinema mudo.