¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, agosto 18, 2013
 
Crônica antiga:
PRIMEIRA EPISTOLA
ÀS POSSESSIVAS *



Uma amiga queixava-se outro dia de não se sentir exclusiva em suas relações afetivas. Reclamava dos homens que consideram a mulher como mais uma marca na coronha do rifle. Não podia conceber que alguém, homem ou mulher, amasse mais de uma pessoa. Amor exige exclusividade, ou não é amor, dizia. E anelava experimentar uma daquelas paixões que invadem o organismo como metástase incontrolável. Queria curtir um namoro daqueles antigos. Sonhava com abissais comoções de alma, com bocas entreabertas e olhares imóveis. Gesto que, aliás, sempre me traz à mente a imagem de um boi babando numa manhã de sol. Mas isto é outro assunto.

Um antropólogo inglês, que viveu algum tempo entre os bembas, na Rodésia, relata uma curiosa experiência.

Reunido com um grupo de nativos, o inglês contou-lhes uma lenda. A historieta falava de um príncipe que galgara montanhas de vidro, atravessara abismos e lutara com dragões para obter a mão da moça que amava. Os bembas não entendiam o porquê de tanto esforço, mas ficaram quietos. Por fim, um ancião, interpretando os sentimentos do grupo, tomou a palavra:

— Por que ele não escolheu outra moça?

Duvido que o antropólogo tenha conseguido explicar aos espantados bembas esse difuso sentimento civilizado que se convencionou chamar de amor. Sentimento que assumiu várias nuanças, desde os poemas de Safo de Lesbos, onde surge pela primeira vez na literatura ocidental, até o propalado amor conjugal dos últimos séculos. Mito que nasceu — com características homossexuais, saliente-se — evoluiu, atingiu seu auge lá pelo fim do século XI, com o chamado amour courtois, e hoje está em rápido declínio. Já houve quem o definisse como paixão ridícula, que não tem razão de ser, fora dos livros de recreação e dos romances. Outros o vêem como o contato de duas epidermes, ou ainda, um estado de anestesia perceptiva.

Falando sobre o namoro, Ortega Y Gasset foi implacável: “estado de miséria mental no qual a vida de nossa consciência se estreita, empobrece e paralisa”. E não fica nisto o pensador espanhol. Vai adiante: “um estado inferior de espírito, uma imbecilidade transitória. Sem anquilosamento da mente, sem redução de nosso mundo habitual, não poderíamos enamorar-nos. A alma de um namorado tresanda a quarto fechado de doente, a atmosfera confinada, nutrida pelos próprios pulmões que vão respirá-la. Quando caímos nesse estado de estreitamento mental, de angina psíquica, estamos perdidos”.

Não sei se por formação ou disposição psicológica, jamais entendi as tais relações exclusivas. Se ao menos fossem mútuas, teriam um certo sentido. Mas o dia-a-dia nos mostra que, em geral, fidelidade só existe da parte da mulher — quando existe. O homem sempre se permite aventuras paralelas, às escondidas. Os raros casos de fidelidade mútua que conheci não preenchem os dedos de uma mão. Como exceções, só confirmam a regra.

Por outro lado, gostar de uma única mulher e excluir as demais constitui, a meu ver, grave ofensa a tantas outras também amáveis. Por que razões seria uma mulher única na vida de um homem? Só por terem cruzado um pelo outro, certo dia, no mesmo ponto geográfico? E se fosse outra a cruzar?

Um amigo, muito impregnado em Dante, diz ter um critério infalível para saber se ama ou não uma mulher. Só existirá amor, quando enxergar naves no olho da amada. E vive me perguntando se alguma vez divisei naves vogando íris a dentro nos olhos de alguém. Não sei se serão os olhos pouco favoráveis à navegação, não sei se será minha miopia, o fato é que jamais vislumbrei as ditas naves.

Além disso, diz uma antiga maldição muçulmana:

“Se uma mulher o chamar para dormir com ela e você não vai, você está perdido. Deus não perdoa isto. Será colocado com Judas no mesmo abismo do inferno”.

* Folha da Manhã, Porto Alegre, 23 fevereiro 1976