¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, agosto 03, 2013
 
LONGE DESTE INSENSATO MUNDO


Sempre gostei de beber. Comecei com cachaça, é o que tinha lá no campo. Cerveja era algo raro, sem falar que na época não havia refrigeradores. A única maneira de gelar exigia algum trabalho, era preciso ir até a cacimba e nela jogar a garrafa. Ao voltar da cacimba, a cerveja estava mais para morna que outra coisa. O vinho disponível era algo chamado Sangue de Boi. De Livramento, se bem me lembro. Mesmo para quem não conhecia vinhos, não era fácil tomá-lo.

(Curiosamente, fui me reencontrar com ele em Budapeste. O mais famoso tinto húngaro é o Egri Bikaver, Sangue de Touro. Pelo jeito, há uma considerável distância entre o sangue de boi e o sangue de touro. Se é que alguém que não conheça o campo ainda sabe o que é boi e o que é touro. Aqui em São Paulo, há muita gente que não sabe do que se trata, muito menos do que seja carneiro, cordeiro e terneiro. E quem distingue cordeiro de cabrito já se considera um erudito).

Publicidade foi algo que não existiu em minha infância e boa parte da adolescência. Verdade que, quando o rádio chegou àquelas plagas, alguma coisa sempre chegava. Em minha memória ficou algo daqueles dias:

Y SI HABLAMOS DE CERVEZA, PUNTO Y RAYA! LA DOBLE URUGUAYA

Mas não foi por isso que passei a gostar de cerveja. Gostei porque gostei, simples assim. Como também da cachaça. A que lá chegava era a Bacachiry Extra, uma aguardente das mais ardentes – e bota ardente nisto - que queimava a garganta como ácido. Era uma queimação que me agradava. Meu primeiro porre, devo tê-lo tomado lá pelos doze ou treze anos. Não porque fosse um bebum. Mas na ocasião o porre foi uma questão de sobrevivência.

Para ir a Dom Pedrito, eu ia até a Linha Divisória e pedia carona nos raros automóveis que existiam na região. Certa ocasião, peguei carona com o Toto Ferreira, que era chegado a um beijo no gargalo. Toto empinava sua caninha e dizia: “quando eu bebo, as palavras flueeeem”. E afundava o pé no acelerador. Senti que, se quisesse chegar ileso à cidade, era melhor dar uma mão ao Toto. Na altura do bolicho do Péla Gaúcho, antes de entrar na “várgia” do Santa Maria, estávamos enrolando os erres e esses e a botella era tapera. Mas cheguei vivo.

Mais tarde, com a universidade, eduquei-me também etilicamente. Mas jamais fui atrás de rótulos ou grifes. Bebia porque gostava. Não exatamente da bebida, mas da euforia dela decorrente. Jamais bebi um uísque ou vinho por ter visto sua publicidade. Por estas e outras razões, não consigo entender muito bem porque existe publicidade de Brahma ou Antártica. As pessoas querem é cerveja. E entre as duas não há maior diferença. Duvido que alguém distinga uma da outra, bebendo de olhos vendados.

Claro que se falamos de uma Leffe ou Affligem, de uma Guinness ou Delirium Tremens, a coisa muda de figura. Mas cheguei a essas cervejas sem nenhum apelo publicitário. E gostei delas porque simplesmente ... gostei. Da mesma forma, o vinho ou uísque. Jamais havia ouvido falar de Leffe, nem da blonde, nem da brune, nem da radieuse, quando me deparei com elas. Da mesma forma, o Egri Bikaver. Ou qualquer outro vinho. Com o tempo, aderi aos vinhos de montanha. E passei a preferir os vinhos da Cordilheira – ou da Sicília – até mesmo aos franceses e espanhóis. Me sabem mais terrosos.

Dizia ontem que sou à prova de publicidade. Sou totalmente refratário a este universo. Abomino toda e qualquer propaganda. Tenho um olhar seletivo. Um jornal pode anunciar um produto qualquer em página inteira e eu não o enxergo. Aconteceu há alguns anos. Eu lia um jornal em um café e fui abordado por uma marqueteira. Queria saber se eu havia visto algum anúncio das casas Bahia. Respondi que não. Ela pegou o jornal e mostrou-me. Havia seis anúncios das tais de casas, de página inteira e de meia página. Eu não havia visto nenhum.

Publicidade para mim é preto – disse certa vez a uma amiga em um bar. Ela olhou preocupada para os lados, para ver se não havia nenhum negro por perto. Mas não era a negros que me referia. E sim a uma antiga prática de jornalismo. Após fechar o jornal, editores e redatores descem à gráfica para ver as primeiras provas no papel, questão de corrigir em última hora algum errinho que tenha passado. Nestas provas, só está o texto jornalístico. O espaço reservado à publicidade está em negro. É assim que vejo a publicidade ao ler algo, um quadrado preto frente a meus olhos.

Prova disto – como se de provas eu precisasse para convencer-me do que penso ou gosto – encontrei na Veja on line. Leio que “em tempos de saturação de imagens bombardeando as inúmeras mídias o tempo todo, produzir comerciais que se eternizem na mente das pessoas é tarefa árdua. Um personagem, uma canção, um artista ou uma piada - algo faz com que eles sejam sempre lembrados por marcar um período ou uma década. Quem não se lembra dos siris criados pela Brahma, o "baixinho da Kaiser" e a estátua viva de Adoniran Barbosa na propaganda da Antárctica. Confira os vídeos de algumas propagandas memoráveis”.

Fui conferir. Dos dez vídeos que se eternizaram na mente das pessoas, só conheço um, o do “baixinho da Kaiser”. Talvez pelo physique du rôle do personagem. Dos outros nove vídeos memoráveis, não tenho registro. É bastante possível que tenham passado por meus olhos. Mas não penetraram minha percepção.

Sim, alguma coisa ficou na memória. Quem de minha idade não lembra do “quem bebe Grapette, repete Grapette, repete Grapette, Grapette é gostosa demais”? Se ficou em minha memória, foi pela aliteração. Jamais passou por meu palato. Da mesma forma, as Pepsis e Cocas da vida. Devo ter tomado uma, a primeira, e mais nenhuma outra, apesar dos milhões investidos em suas publicidades.

Dizia há pouco que jamais convivi com quem fumasse maconha. Muito menos com que toma tais beberagens. Nada contra. Mas são pessoas com as quais nada tenho a ver. Duvido que um bebedor de xaropes ianques tenha algum apreço por Don Giovanni ou Carmen. Inversamente, duvido que um cultor de óperas – ou do Quixote, ou de Pessoa - seja um bebedor de Coca-Cola. Coca combina com rock, funk, essas coisas. Cervantes, Pessoa, Mozart ou Bizet exigem vinho.

Há momentos em que não entendo o mundo em que vivo. É que desconheço grifes, produtos de moda, supérfluos empurrados a golpes de propaganda. Nesse sentido, embora não seja consumidora de porte, minha diarista é mais erudita que eu. Coincidiu que hoje levei-a ao shopping Higienópolis, para mostrar-lhe um universo que ela desconhecia. Ficou perplexa. Mas entendia melhor do que eu dos produtos oferecidos.

Há quem fale nos riscos da tal de propaganda subliminar, passada pelo cinema ou televisão. Que a propaganda subliminar dos filmes americanos seria a grande responsável pelo tabagismo e pelo alcoolismo. Ora, podem atar-me frente a uma tela qualquer 24 horas por dia e enfiar-me a tal de propaganda subliminar do que quer que seja, mas jamais me farão beber do que não gosto. Muito menos fumar. Passei boa parte de minha adolescência vendo faroestes nos quais não se sabia quem fumava mais, se o mocinho ou o bandido. Nunca fumei.

Não tenho a mínima idéia dos vídeos de cerveja que fizeram época. Mas guardo na memória as boas cervejas que degustei. Na mente deste que vos escreve, publicidade alguma se eternizou. Conseqüentemente, não consigo entender os milhões que o mercado investe em publicidade.

Decididamente, não vivo neste mundo.