¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 31, 2014
 
MEIN KAMPF E AQUELE
OUTRO LIVRO SUBLIME



Está provocando celeuma no Ocidente a notícia de que Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler, deve ser reeditada em uma versão comentada pelo Instituto de História Contemporânea de Munique. Há não poucos articulistas que defendem a iniciativa do instituto, em nome da liberdade de expressão e da necessidade de pesquisa por estudantes e historiadores. Outros vêm nesta reedição uma defesa do holocausto.

A discussão, para começar, é estéril, pois o livro pode ser baixado de vários sites da Internet. Tenho um exemplar em meu PC. Não consegui lê-lo. Chato e mal escrito. Para Maria Luiza Tucci Carneiro, historiadora da USP, em artigo no Estadão, intitulado “A reedição do ódio”,

cai por terra a justificativa do Instituto de História Contemporânea de Munique de que uma nova edição comentada, conforme propõe, "evitaria a publicação de outras edições financiadas pela extrema direita". Pura ingenuidade. Na minha opinião, obras como Mein Kampf e a obra apócrifa Os Protocolos dos Sábios de Sião continuam a incitar ao ódio aos judeus, além de pregar a intolerância sem limites. Sobrevivem de forma camuflada, servindo para alimentar mitos políticos, sendo inseridas na categoria "propaganda e psicologia política", conforme a Amazon.com, ou como obras de "ajuda mútua", vendidas em sebos e tendas de feiras de antiguidades e livros usados.

Argumentar que a proibição da reedição de Mein Kampf infringe os direitos de liberdade de expressão ou que atenta contra a liberdade científica não tem sustentação, pois antes de mais nada devemos nos prevenir contra a reedição do ódio e a incitação às práticas genocidas. Para esses casos, excepcionalmente, a palavra "liberdade" impõe limites, pois abre oportunidades para o renascimento da "besta nazista". Alguma razão maior deve existir para que a reprodução e venda de Mein Kampf estivessem proibidas na Alemanha, que ainda hoje tenta lidar com a própria história e o número de 6 milhões de judeus exterminados durante o Holocausto.


Em Mein Kampf, Hitler defende a extinção dos judeus. Anátema seja! Já a Torá, o livro sagrado dos judeus, defende a extinção de todo o ser que respire das tribos vizinhas à Israel. A Bíblia é o livro mais reeditado do mundo e em todas as traduções, sejam católicas, adventistas ou protestantes, lá está a Torá (Pentateuco, para os cristãos) e ninguém fala em reedição do ódio nem pede a interdição do livro. Pelo contrário, é obra das mais reputadas e se encontra em milhões de templos, lares e hotéis do Ocidente. Vamos a alguns momentos sublimes – que gosto de retomar – desde livro cheio de amor.

Êxodo 23:23 - Porque o meu anjo irá adiante de ti, e te introduzirá na terra dos amorreus, dos heteus, dos perizeus, dos cananeus, dos heveus e dos jebuseus; e eu os aniquilarei. (...) Enviarei o meu terror adiante de ti, pondo em confusão todo povo em cujas terras entrares, e farei que todos os teus inimigos te voltem as costas. Também enviarei na tua frente vespas, que expulsarão de diante de ti os heveus, os cananeus e os heteus.

Êxodo 34:12 - Guarda-te de fazeres pacto com os habitantes da terra em que hás de entrar, para que isso não seja por laço no meio de ti. Mas os seus altares derrubareis, e as suas colunas quebrareis, e os seus aserins cortareis (porque não adorarás a nenhum outro deus; pois o Senhor, cujo nome é Zeloso, é Deus zeloso).

Números 33:51 - Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: quando houverdes passado o Jordão para a terra de Canaã, lançareis fora todos os habitantes da terra de diante de vós, e destruíreis todas as suas pedras em que há figuras; também destruíreis todas as suas imagens de fundição, e desfareis todos os seus altos.

Levítico, 26:29 - E comereis a carne de vossos filhos e a carne de vossas filhas. Destruirei os vossos altos lugares, derrubarei as vossas imagens do sol, e lançarei os vossos cadáveres sobre os destroços dos vossos ídolos; e a minha alma vos abominará. Reduzirei as vossas cidades a deserto, e assolarei os vossos santuários, e não cheirarei o vosso cheiro suave. Assolarei a terra, e sobre ela pasmarão os vossos inimigos que nela habitam. Espalhar-vos-ei por entre as nações e, desembainhando a espada, vos perseguirei; a vossa terra será assolada, e as vossas cidades se tornarão em deserto.

Números 31:7 - E pelejaram contra Midiã, como o senhor ordenara a Moisés; e mataram a todos os homens. Com eles mataram também os reis de Midiã, a saber, Evi, Requem, Zur, Hur e Reba, cinco reis de Midiã; igualmente mataram à espada a Balaão, filho de Beor. Também os filhos de Israel levaram presas as mulheres dos midianitas e os seus pequeninos; e despojaram-nos de todo o seu gado, e de todos os seus rebanhos, enfim, de todos os seus bens; queimaram a fogo todas as cidades em que eles habitavam e todos os seus acampamentos; tomaram todo o despojo e toda a presa, tanto de homens como de animais; e trouxeram os cativos e a presa e o despojo a Moisés, a Eleazar, o sacerdote, e à congregação dos filhos de Israel, ao arraial, nas planícies de Moabe, que estão junto do Jordão, na altura de Jericó. Saíram, pois, Moisés e Eleazar, o sacerdote, e todos os príncipes da congregação, ao encontro deles fora do arraial. E indignou-se Moisés contra os oficiais do exército, chefes dos milhares e chefes das centenas, que vinham do serviço da guerra, e lhes disse: Deixastes viver todas as mulheres? Eis que estas foram as que, por conselho de Balaão, fizeram que os filhos de Israel pecassem contra o Senhor no caso de Peor, pelo que houve a praga entre a congregação do Senhor. Agora, pois, matai todos os meninos entre as crianças, e todas as mulheres que conheceram homem, deitando-se com ele. Mas todas as meninas, que não conheceram homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós.

Números 31:25 - Disse mais o Senhor a Moisés: Faze a soma da presa que foi tomada, tanto de homens como de animais, tu e Eleazar, o sacerdote, e os cabeças das casas paternas da congregação; e divide-a em duas partes iguais, entre os que, hábeis na guerra, saíram à peleja, e toda a congregação. E tomarás para o Senhor um tributo dos homens de guerra, que saíram à peleja; um em quinhentos, assim dos homens, como dos bois, dos jumentos e dos rebanhos; da sua metade o tomareis, e o dareis a Eleazar, o sacerdote, para a oferta alçada do Senhor. Mas da metade que pertence aos filhos de Israel tomarás um de cada cinqüenta, tanto dos homens, como dos bois, dos jumentos, dos rebanhos, enfim, de todos os animais, e os darás aos levitas, que estão encarregados do serviço do tabernáculo do Senhor. Fizeram, pois, Moisés e Eleazar, o sacerdote, como o Senhor ordenara a Moisés. Ora, a presa, o restante do despojo que os homens de guerra tomaram, foi de seiscentas e setenta e cinco mil ovelhas, setenta e dois mil bois, e sessenta e um mil jumentos;e trinta e duas mil pessoas, ao todo, do sexo feminino, que ainda se conservavam virgens.

Deuteronômio 7:5 - Mas assim lhes fareis: Derrubareis os seus altares, quebrareis as suas colunas, cortareis os seus aserins, e queimareis a fogo as suas imagens esculpidas. Porque tu és povo santo ao Senhor teu Deus; o Senhor teu Deus te escolheu, a fim de lhe seres o seu próprio povo, acima de todos os povos que há sobre a terra. Deuteronômio 12:1 - São estes os estatutos e os preceitos que tereis cuidado em observar na terra que o Senhor Deus de vossos pais vos deu para a possuirdes por todos os dias que viverdes sobre a terra. Certamente destruíreis todos os lugares em que as nações que haveis de subjugar serviram aos seus deuses, sobre as altas montanhas, sobre os outeiros, e debaixo de toda árvore frondosa; e derrubareis os seus altares, quebrareis as suas colunas, queimareis a fogo os seus aserins, abatereis as imagens esculpidas dos seus deuses e apagareis o seu nome daquele lugar.

Deuteronômio 32:19 - Vendo isto, o Senhor os desprezou, por causa da provocação que lhe fizeram seus filhos e suas filhas;(...) Males amontoarei sobre eles, esgotarei contra eles as minhas setas. Consumidos serão de fome, devorados de raios e de amarga destruição; e contra eles enviarei dentes de feras, juntamente com o veneno dos que se arrastam no pó. Por fora devastará a espada, e por dentro o pavor, tanto ao mancebo como à virgem, assim à criança de peito como ao homem encanecido.

Josué 6:20 - Gritou, pois, o povo, e os sacerdotes tocaram as trombetas; ouvindo o povo o sonido da trombeta, deu um grande brado, e o muro caiu rente com o chão, e o povo subiu à cidade, cada qual para o lugar que lhe ficava defronte, e tomaram a cidade. E destruíram totalmente, ao fio da espada, tudo quanto havia na cidade, homem e mulher, menino e velho, bois, ovelhas e jumentos.

Juízes 21:10 - Pelo que a congregação enviou para lá doze mil homens dos mais valorosos e lhes ordenou, dizendo: Ide, e passai ao fio da espada os habitantes de Jabes-Gileade, juntamente com as mulheres e os pequeninos. Mas isto é o que haveis de fazer: A todo homem e a toda mulher que tiver conhecido homem, totalmente destruireis. E acharam entre os moradores de Jabes-Gileade quatrocentas moças virgens, que não tinham conhecido homem, e as trouxeram ao arraial em Siló, que está na terra de Canaã.

I Reis 18:22 - Então disse Elias ao povo: Só eu fiquei dos profetas do Senhor; mas os profetas de Baal são quatrocentos e cinqüenta homens. (...) Disse-lhes Elias: Agarrai os profetas de Baal! que nenhum deles escape: Agarraram-nos; e Elias os fez descer ao ribeiro de Quisom, onde os matou.

II Crônicas 14:12 - E o Senhor desbaratou os etíopes diante de Asa e diante de Judá; e os etíopes fugiram. Asa e o povo que estava com ele os perseguiram até Gerar; e caíram tantos dos etíopes que já não havia neles resistência alguma; porque foram quebrantados diante do Senhor, e diante do seu exército. Os homens de Judá levaram dali mui grande despojo. Feriram todas as cidades nos arredores de Gerar, porque veio sobre elas o terror da parte do Senhor; e saquearam todas as cidades, pois havia nelas muito despojo. Também feriram as malhadas do gado, e levaram ovelhas em abundância, e camelos, e voltaram para Jerusalém.

Esdras 9:1 - Ora, logo que essas coisas foram terminadas, vieram ter comigo os príncipes, dizendo: O povo de Israel, e os sacerdotes, e os levitas, não se têm separado dos povos destas terras, das abominações dos cananeus, dos heteus, dos perizeus, dos jebuseus, dos amonitas, dos moabitas, dos epípcios e dos amorreus; pois tomaram das suas filhas para si e para seus filhos; de maneira que a raça santa se tem misturado com os povos de outras terras; e até os oficiais e magistrados foram os primeiros nesta transgressão.

Ezequiel 6:4 - E serão assolados os vossos altares, e quebrados os vossos altares de incenso; e arrojarei os vossos mortos diante dos vossos ídolos. E porei os cadáveres dos filhos de Israel diante dos seus ídolos, e espalharei os vossos ossos em redor dos vossos altares. (...) Em todos os vossos lugares habitáveis as cidades serão destruídas, e os altos assolados; para que os vossos altares sejam destruídos e assolados, e os vossos ídolos se quebrem e sejam destruídos, e os altares de incenso sejam cortados, e desfeitas as vossas obras.

Ezequiel 6:13 - Então sabereis que eu sou o Senhor, quando os seus mortos estiverem estendidos no meio dos seus ídolos, em redor dos seus altares, em todo outeiro alto, em todos os cumes dos montes, e debaixo de toda árvore verde, e debaixo de todo carvalho frondoso, lugares onde ofereciam suave cheiro a todos os seus ídolos. E estenderei a minha mão sobre eles, e farei a terra desolada e erma, em todas as suas habitações; desde o deserto até Dibla; e saberão que eu sou o Senhor.

Ezequiel 9:4 - E disse-lhe o Senhor: Passa pelo meio da cidade, pelo meio de Jerusalém, e marca com um sinal as testas dos homens que suspiram e que gemem por causa de todas as abominações que se cometem no meio dela. E aos outros disse ele, ouvindo eu: Passai pela cidade após ele, e feri; não poupe o vosso olho, nem vos compadeçais. Matai velhos, mancebos e virgens, criancinhas e mulheres, até exterminá-los; mas não vos chegueis a qualquer sobre quem estiver o sinal; e começai pelo meu santuário. Então começaram pelos anciãos que estavam diante da casa. E disse-lhes: Profanai a casa, e enchei os átrios de mortos; saí. E saíram, e feriram na cidade.

Ezequiel, 30:13 - Também destruirei os ídolos, e farei cessar de Mênfis as imagens; e não mais haverá um príncipe na terra do Egito; e porei o temor na terra do Egito. E assolarei a Patros, e porei fogo a Zoã, e executarei juízos em Tebas; e derramarei o meu furor sobre Pelúsio, a fortaleza do Egito, e exterminarei a multidão de Tebas; também atearei um fogo no Egito; Pelúsio terá angústia, Tebas será destruída, e Mênfis terá adversários em pleno dia. Os mancebos de Om e Pi-Besete cairão à espada, e estas cidades irão ao cativeiro. E em Tapanes se escurecerá o dia, quando eu quebrar ali os jugos do Egito, e nela cessar a soberba do seu poder; quanto a ela, uma nuvem a cobrirá, e suas filhas irão ao cativeiro. Assim executarei juízos no Egito, e saberão que eu sou o Senhor.

Salmos, 137:8 - Ah! filha de Babilônia, devastadora; feliz aquele que te retribuir consoante nos fizeste a nós; feliz aquele que pegar em teus pequeninos e der com eles nas pedras.

domingo, março 30, 2014
 
LENTO É O BESTUNTO
DO JORNALISTA XIITA



Em uma tentativa canhestra de louvar o islamismo no Irã, Samy Adghirni, o correspondente muçulmano xiita da Folha de São Paulo em Teerã, tenta ver avanços na revolução do aiatolá Ruhollah Khomeini. Sua reportagem, na edição de hoje, é eivada de contradições. Ora louva o exercício de profissões liberais por mulheres – sem nos dar estatísticas – ora lamenta limitações impostas às iranianas. Uma no prego e outra na ferradura.

“A história recente do Irã foi marcada por avanços e retrocessos na vida pública e familiar das mulheres. Entre os países islâmicos, é um dos menos adversos à população feminina, escolarizada e com acesso a diferentes setores profissionais e da política, mas ainda discriminada em termos culturais, jurídicos e financeiros”.

Segundo Adghirni, três décadas e meia após a revolução, o Irã voltou a ser um dos países de maioria islâmica com ambiente mais favorável - ou menos adverso - para a mulher.

"A comparação chega a ser especialmente embaraçosa para os vizinhos do Irã. As sauditas são atreladas por lei a um tutor - irmão, pai ou marido - e não podem nem dirigir. No Qatar, casas tradicionais possuem duas salas de estar, uma para receber convidados, outra para manter as cônjuges, irmãs e filhas longe das visitas. As afegãs devem abster-se de falar com homens que não sejam ligados a elas por vínculos familiares”.

Quer dizer, melhor ser escrava que prisioneira – no fundo é isto o que o jornalista diz. E ainda sofisma, ao afirmar que sauditas são atreladas por lei a um tutor - irmão, pai ou marido - e não podem nem dirigir. Isto é verdade, mas omite que as iranianas também precisam de um macho tutor para sair às ruas. Se saírem sem o chador, arriscam a serem cuspidas na cara.

Diz Adghirni que as mulheres iranianas são as únicas no mundo legalmente obrigadas a cobrir cabelo e corpo. Mas elas estudam, trabalham e comandam empresas. São advogadas e juízas.

O correspondente só esquece de informar a quais sanções está exposta a mulher que sai sem chador. Quanto a serem advogadas e juízas, é curioso observar – como aliás Adghirni faz – a condição jurídica inferior da mulher:

“No tribunal, o testemunho feminino ainda vale metade do masculino. O "preço do sangue", indenização paga pela família de um assassino a parentes da vítima, também é inferior em caso de morte de mulher. A herança dos filhos é maior que a das filhas. Homens podem pedir divórcio com mais facilidade. A mãe tem chances mínimas de obter a guarda dos filhos. (...) Vulnerável nos tribunais, a iraniana carece de recursos para reagir a humilhações de todo tipo”.

Deve ser no mínimo insólito ver uma advogada defendendo ou uma juíza julgando uma colega de sexo.

De fato, o Irã é um dos países de maioria islâmica com ambiente mais favorável - ou menos adverso - para a mulher. Como grande progresso na condição feminina, nosso informante xiita fala de uma cantora lírica, a soprano Shiva Soroush, que em agosto passado, pela primeira vez desde a chegada dos aiatolás ao poder, há 35 anos, cantou sozinha em público ... por menos de meio minuto. “Foi suficiente para enterrar o tabu pelo qual uma voz feminina só era lícita se acompanhada de uma masculina”.

Mais uns 35 anos, e uma soprano poderá talvez cantar minuto e meio.

Registre-se em favor do jornalista a homenagem que faz ao último líder esclarecido do Irã, deposto por Khomeini: “Shiva nasceu e cresceu sob o regime teocrático e nunca teve dinheiro para viajar ao exterior. Mas ela faz parte da legião de iranianas, anônimas ou ilustres, que desbravam caminhos para tentar recuperar a proeminência perdida com a queda do xá Mohammad Reza Pahlavi, em 1979”.

Quando o xá libertou as mulheres do jugo do Islã e as iranianas eram livres de fazer o que bem entendessem, deveria acrescentar. Mas seria pedir demais ao correspondente xiita.

Para reforçar a excelência da condição feminina no Irã, Adghirni traz o testemunho da arquiteta Sahere Foruhi, que se orgulha de contrariar frontalmente o clichê da iraniana submissa.

“Bem-sucedida, viajada e mãe divorciada, espreme sua agenda diária entre serviços para a Prefeitura de Teerã e um escritório no qual tem o ex-marido como sócio. Sahere avalia que o preconceito ocasional contra mulheres, na rua ou no mundo dos negócios, se assemelha ao da Itália, onde estudou. "Na maioria dos países europeus, a situação não é tão diferente da nossa. Invejável, só a Escandinávia. Ali, sim, as mulheres estão com tudo".

Acredite quem quiser.

Adghirni parece estar descobrindo o mundo em que vive e cuja língua desconhece. Após vários anos de trabalho em Teerã, finalmente viu a prostituição disfarçada sob o manto do casamento temporário. Hosana nas alturas! Pela primeira vez, nos fala do sigheh.

Ora, para isto não é preciso ir ao Irã. A instituição é amplamente discutida na internet. Sem ser correspondente no país, em setembro de 2002 – há 14 anos, portanto – eu já falava do matrimônio temporário permitido pelo ramo xiita do Islã, que pode durar alguns minutos ou 99 anos, especialmente recomendado para viúvas que precisam de suporte financeiro.

Reza a tradição que o próprio Maomé o teria aconselhado para seus companheiros e soldados. O casamento é feito mediante a recitação de um versículo do Alcorão. O contrato oral não precisa ser registrado, e o versículo pode ser lido por qualquer um. As mulheres são pagas pelo contrato.

Esta prática foi aprovada após a "revolução" liderada pelo aiatolá Khomeiny que, ao derrubar o regime ocidentalizante do xá, tentou canalizar o desejo dos jovens sob a segregação sexual estrita da república islâmica. Num passe de mágica, a prostituição deixa de existir. O que há são relações normais entre duas pessoas casadas. Não há mais bordéis. Mas casas de castidade. A cidade está limpa.

Antes tarde do que nunca. Lento é o bestunto dos correspondentes xiitas.

sexta-feira, março 28, 2014
 
REITORA DA UFSC DEFENDE
DIREITOS UNIVERSITÁRIOS



Freqüentadores da Cracolândia, na Luz, região central de São Paulo, entraram ontem em confronto mais uma vez com policiais militares durante uma ação de rotina para prender traficantes de drogas. Com paus e pedras, os usuários quebraram vidros de quatro viaturas da PM, que revidou com bombas e balas de borracha. Durante o tumulto generalizado, dependentes aproveitaram para roubar trabalhadores da região. Ao todo, três pessoas foram presas.

É o que diz o Estadão. Os PMs observavam o chamado "fluxo" - concentração de dependentes na rua – já que nisto parece consistir sua função, observar e garantir o uso da droga. Quando prenderam uma mulher cujo parceiro portava 15 pedras de crack dentro de uma caixa de fósforos, começou a confusão. A mulher resolveu espernear e gritar. Do fluxo, começaram a voar paus e pedras em direção ao carro da polícia, que teve os vidros quebrados. Os PMs pediram auxílio a colegas pelo rádio, e as duas primeiras unidades que chegaram lá também foram recebidas a pedradas.

Onde se viu, nesta altura dos acontecimentos, prender um traficante de crack? Não deixa de assistir certa razão aos nóias. Se o consumo é permitido, e mesmo protegido, como prender o fornecedor da droga?

O mesmo ocorreu na terça-feira passada, no campus da UFSC, durante uma operação antidrogas da Polícia Federal. O confronto ocorreu quando cerca de 300 universitários não aceitaram a detenção de colegas flagrados com uma pequena quantidade de maconha nas mochilas.

Os universitários chegaram a montar barricadas para impedir a saída dos carros da polícia com os colegas detidos. Dois veículos da PF foram depredados e virados durante o confronto. Cerca de 15 agentes dispararam balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo em direção a estudantes e professores. No confronto, dois policiais federais e outros dois policiais militares se feriram, segundo a PF.

O superintendente da Polícia Federal, Paulo César Barcelos Cassiano Júnior parece ter descoberto que a universidade estaria se tornando uma república de maconheiros:

- A reitoria divulgou uma nota lamentável. A Policia Federal não vai permitir que a reitoria transforme a UFSC em uma república de maconheiros. Aquilo é um antro do crime. Autonomia universitária não é libertinagem.

O superintendente descobriu a América. Um pouco tarde, é verdade. Lecionei na UFSC nos anos 80 – há mais de vinte anos, portanto – e o campus já era um território liberado ao consumo da maconha. Na época, as duas cidades mais reputadas pelo uso da droga eram Florianópolis e Brasília.

Em aula, não vi meus alunos fumando, nem senti o cheiro de maconha. Mas participei de algumas festas, onde a cannabis era mais consumida que bebida. Quando os alunos vinham visitar-me em grupo, não para estudos, mas para conversar, a maconha era norma. Que fumassem, nunca fui contra. Mas sempre recusei os baseados que me ofereciam. As reuniões transcorriam tranqüilas, nunca ninguém demonstrou estados alterados de consciência ou ímpetos agressivos. Na verdade, comportavam-se normalmente, como em qualquer outra circunstância.

Mais de duas décadas depois, a polícia descobre que a universidade é um antro de maconheiros. Como se as demais universidades, hoje, não o fossem. Há muito, os campi são os lugares mais seguros para drogar-se. E a polícia inventa de repente, não mais que de repente, perturbar esta santa paz.

Sou do tempo em que a cannabis era estigma de bandidos. Uma edição da revista O Cruzeiro publicou, nos anos 50, uma reportagem significativa sobre a "erva do diabo", como era então chamada a Cannabis sativa. Para aproximar-se da droga, que circulava então nas favelas e no presídio, um repórter deixou crescer a barba, como camuflagem junto aos traficantes e consumidores. Maconha era então coisa de submundo, e barba logotipo de marginal. Mas tarde, a barba virou logotipo de corrupto petista, mas isto já é outra história.

Bastou os universitários norte-americanos adotarem a marijuana - voz mexicana que indicava a origem do produto - a erva virou moda no Brasil, particularmente nos campi. Como jamais suportei modas, e particularmente as vindas do Norte, meu repúdio à maconha era antes de tudo teórico, político. Por outro lado, o consumo da maconha era vício gregário, e sempre me afastei de cerimoniais coletivos. Os curtidores da cannabis eram em geral pessoas de pouca ou nenhuma leitura, e nada me impelia a confraternizar com eles.

Com a adoção da droga pelos universitários, o consumo tomou outro cariz. Tornou-se o pão do espírito dos intelectuais. Não fumar era ser careta. Os grandes difusores da maconha e outras drogas foram os roqueiros e a universidade. Não se concebe show de rock ou rave sem drogas. Muito menos universidade. Consumida anteriormente por marginais, a maconha foi elevada à dignidade acadêmica. Com esta bendita mania que temos de importar do Primeiro Mundo o que de pior o Primeiro Mundo produz, logo foi adotada pela universidade brasileira.

O leitor deverá ter conhecido ou ouvido falar de pequenas comunidades do interior do país, onde a droga inexistia. Basta criar um curso ou extensão universitária nalguma dessas comunidades, e no dia seguinte a droga e o tráfico lá se instalam. Em meus dias de Dom Pedrito, maconha era fenômeno distante, que só ocorria nas metrópoles do centro. Bastou um campus na cidade e a droga passou a ser vendida em plena Barão de Upacaraí.

Quando a maconha era proibida no Brasil – início dos anos 90 – os campi eram os locais mais seguros para quem queria drogar-se sem ser perturbado pela polícia. Um dos mais reputados fumódromos de São Paulo é o campus da PUC. Desde há muito se sabe que os campi abrigam aprazíveis fumódromos, protegidos pela asa cúmplice dos reitores. Mas ai de quem disser que o rei está nu.

Foi o que aconteceu com o psiquiatra Içami Tiba, ao afirmar, há mais de dez anos: “A PUC é um antro de maconha”. Que a maconha tinha livre curso na PUC, isto era público e sabido, e nenhum universitário negará este fato. A PUC, melindrada, entrou com dois processos contra o psiquiatra: um de indenização por danos morais e uma queixa-crime por difamação. O crime foi dizer em público, com todas as letras, o que era público mas jamais admitido. Sobre o episódio na UFSC, declarou a reitora Roselane Neckel:

- Não podemos aceitar quaisquer ações de repressão violenta dentro do campus. Nós acreditamos que a PF tenha uma expertise muito importante que são as estratégias e inteligência, mas que quaisquer ações de combate às drogas deveriam ser feitas fora do campus da UFSC por questão de segurança das pessoas, principalmente de crianças. Eu não estou entendendo essa postura, provavelmente é desconhecimento do superintendente em relação às nossas posições quando colocamos claramente que somos contra ações violentas dentro da universidade como a de ontem (terça-feira), feita de forma desnecessária.

O que disse a reitora, em bom português, foi: aqui no campus a maconha está liberada. Se quiserem coibir o uso ou o tráfico, que o façam lá fora. Aqui não.

Que a maconha há muito está liberada, não só nos campi como no país todo, isto não é novidade. O que de novo ocorreu na UFSC – aquela mesma universidade que deu o título de Dr. Honoris Causa a Fidel Castro – foi ver uma reitora sendo manifestamente conivente com a prática.

Usar drogas virou privilégio acadêmico.

quinta-feira, março 27, 2014
 
LOBATO ANTECIPA INTERNET *


A revolução operada pela Internet, que hoje faz parte de nosso dia-a-dia, foi prevista já em 1926 (no Brasil, quem diria?) por um visionário de Taubaté. Falamos de Monteiro Lobato, é claro, e de sua obra mais premonitória, O Presidente Negro.

O escritor angustiava-se com o desperdício de energia e "os milhões de veículos atravancadores de espaço" necessários para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Em época na qual nem sequer se falava em computador ou fax/modem, o autor via a salvação na "fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins". O trabalho, o teatro, o concerto passam então a vir ao encontro do homem. As condições do mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais e comerciais, começam a ser feitas de longe pelo "rádio-transporte".

Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e a rotina de qualquer redação neste final de milênio. Cada colaborador do "Remember", jornal criado na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa o seu artigo e imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes. Se substituirmos rádio-transporte por fax/modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há sete décadas, um jornal que já existe. Seus correspondentes há muito enviam seus "caracteres luminosos" para suas redações. Daí ao leitor recebê-los numa tela em casa basta uma decisão administrativa, já tomada por centenas de empresas no Brasil e no mundo.

Pela voz de seus personagens, Lobato anuncia também a morte de uma era. "A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé? O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância." As ruas serão "amáveis, limpas e muito mansas de tráfego". Nelas ainda deslizam veículos, "mas raros, como outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. (...) Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda".

O autor fala em rádio, o "must" dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de "terabytes" diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela Internet, intuiu muito bem suas consequências. O comércio eletrônico já envolve bilhões de dólares e o trabalho à distância -"radiado" para o escritório, como diria Lobato - é um fenômeno em expansão. O teletrabalho ocupa, hoje, cinco milhões de pessoas nos Estados Unidos, 12 milhões na Europa e está em ascensão na América Latina. Qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações não constituem mais novidade. Mas intuir esta nova realidade em 1926 é privilégio de visionário. Aliás, o voto também é "radiado" em O Presidente Negro, e as eleições se realizam em questão de horas. Nas últimas eleições, o país de Lobato inaugurou o voto eletrônico.

Também ao sul do Equador, um vizinho nosso, situado às margens do Prata, imaginava um acervo que hoje começa a tomar corpo com a Internet. Falava de uma biblioteca em forma de esfera, cujo centro cabal é qualquer hexágono. Sua circunferência é inacessível. Existe "ab aeterno" e nela não há dois livros idênticos. É ilimitada e periódica.

Assim definia Jorge Luis Borges em um conto datado de 1941, a "Biblioteca de Babel". Em alguma prateleira de algum hexágono existiria um livro que era a chave e o compêndio de todos os demais. "Algum bibliotecário o terá percorrido e é análogo a um deus".

Na Babel de Borges há um grave problema de comunicação. A Biblioteca abarca todos os livros. Todo conhecimento humano está disperso pelos hexágonos, o problema é encontrar o que se busca. Milhares de funcionários lutam, se estrangulam e morrem em busca dos livros nos corredores da biblioteca, muitas vezes derrubados por homens de hexágonos remotos. Outros enlouquecem. O autor exagera, o que é direito de todo ficcionista. Mas em muitas bibliotecas contemporâneas os funcionários já usam bicicletas ou patins para atender os consulentes.

Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos buscadores desta ficção de Borges bastaria digitar um endereço eletrônico e teriam em segundos os livros desejados, sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou patinar, subir escadas ou cair em poços sem fundo. Já podemos, de qualquer parte do mundo, acessar centenas de bibliotecas, entre elas a "Congress Library" (Biblioteca do Congresso), em Washington, ou a Bibliothèque Nationale (Biblioteca Nacional), em Paris.

Se ainda não temos a biblioteca total de Borges, teoricamente já se pode pensar nela. Chegar lá é uma questão de tempo. A biblioteca faraônica iniciada por François Mitterrand (Tontonkhamon, para os inimigos íntimos) em Paris, concebida para armazenar acervos futuros, com seus quatro prédios mastodônticos em forma de livro, já nasce mais ou menos obsoleta. Seu design pertence ao passado.

Como para sonhar não se paga imposto, Borges vai mais longe em seu desejo de futuro. Em "Aleph", conto publicado em 1949, nos fala do peculiar poeta Carlos Argentino, que se propõe nada menos que "versificar toda a redondez do planeta". Carlos, que está construindo sua obra a partir de seu quarto, entra em pânico quando lhe noticiam a demolição de sua velha casa na Calle Garay. Pois nela, em algum ponto de uma escada no porão, existe um "aleph", "o lugar onde estão, sem confundir-se, todos os lugares do mundo". A partir daquela pequena esfera, de dois ou três centímetros de diâmetro, Carlos Argentino perscrutava o mundo, a fonte de seu poema colossal.

Hoje não falaríamos em "aleph", mas em "webcams", a rede incipiente de câmeras onde, se não vemos o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar alguns de seus pontos mais longínquos. De minha mesa de trabalho, já posso ver (em tempo real) o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte em Liljestrom, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa na escuridão, no norte da Noruega, e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel em construção.

Para consultar o futuro, Lobato cria em O Presidente Negro um aparelho semelhante, o porviroscópio, uma espécie de globo cristalino por meio do qual perscruta o mundo do século 23. A forma como descreve o universo vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica à descrição do Aleph. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se consideramos que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da publicação de El Aleph, é bastante pertinente supormos que o ilustre argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Vejamos a descrição do aleph, feita por Borges em 1949.

O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto rompido (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi racimos, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi um sítio em Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando criança, eu me maravilhava com o fato de que as letras de um volume fechado não se misturassem e se perdessem no transcurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-de-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em uma praia do mar Cáspio vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha, enviando cartões postais, vi em uma vitrine de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, maremotos e exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma caixa do escritório (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação da morte, vi o Aleph, desde todos os lados, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem mirou: o inconcebível universo.

Contemporaneamente, não falaríamos em aleph, mas em webcams, a rede incipiente de câmeras onde, se não podemos ver o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar cada vez mais seus pontos mais longínquos. Hoje, de minha mesa de trabalho, posso ver o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte em Liljeström, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa na escuridão no norte da Noruega e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel em construção.

Vejamos o porviroscópio de Lobato. O professor Benson obtém, neste aparelho,

(...) uma corrente contínua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixe que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem apanhados pela água tépida do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor do pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucócito a envolver um micróbio malévolo que penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota d’água que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...

A forma como o visionário de Taubaté descreve o universo vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica à descrição do Aleph, publicada 23 anos mais tarde. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se considerarmos que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da publicação de El Aleph, é bastante pertinente supormos que o autor argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Enquanto os sedizentes modernistas de 22 papagueavam Marinetti, Marx e outros doutrinadores totalitários europeus, Lobato, o escritor excluído do universo intelectual pelos seus contemporâneos, olhava meio século adiante.

* Este artigo foi publicado na Folha de São Paulo, sob o título "Borges leitor de Lobato', em 28/06/1998

quarta-feira, março 26, 2014
 
QUEM VENCEU 64?


Leio na Folha de São Paulo entrevista com Célio Borja, presidente da Câmara no governo Ernesto Geisel. Falando do regime militar pós-64, “o que havia era um regime de plenos poderes. Não uma ditadura.”

O que não se faz com as palavras. Há quem ache que basta trocá-las para que um fenômeno se torne outro completamente distinto. Como se houvesse distinção entre ditadura e regime de plenos poderes. Você pode até defender a ditadura se quiser. O que não pode é dizer que não foi ditadura um regime que cassou mandatos de político legitimamente eleitos, aposentou compulsoriamente professores devidamente concursados, matou e torturou opositores impunemente, impôs a censura à imprensa e levou milhares de pessoas ao asilo.

Foi dos males o menor? Isso é discutível. Pessoalmente, penso que um regime comunista seria muito pior. Comunistas não se contentam com 400 cadáveres, nem com dez ou quinze anos de poder. Não foi a primeira vez que o Kremlin meteu a patas no Brasil. Remember a Intentona de 35. Nos anos 60, em que uma febre totalitária percorreu o continente após a tomado do poder por Fidel Castro em Cuba, Moscou achou que poderia tentar de novo. No Brasil, pelo menos, não deu certo.

Apesar deste despautério, em que o jurista desrespeita os leitores ao achar que pode vender-lhes qualquer potoca, Célio Borja chega a uma descoberta tardia. “Sempre se diz que a história é escrita pelos vencedores. Aqui, os vencidos estão escrevendo a seu gosto com um objetivo político: desqualificar quem não lutou contra a famosa ditadura, que não foi ditadura nenhuma”.

Meio século depois da “famosa ditadura”, Celio Borja descobre a América, ao concluir que os vencidos de 64 escreveram a história do período militar. Santa perspicácia! A verdade é que ninguém proibiu os vitoriosos a escrever sua versão. Pelo jeito, faltaram historiadores e testemunhos da versão pró-Exército.

Em setembro de 2002, há quase 12 anos, escrevi a crônica abaixo. Atenção: a data é inerente ao texto. Quem iniciou com as indenizações milionárias aos anistiados não foi Lula nem o PT. Mas Fernando Henrique. Nada de espantar, pois, que hoje os petistas cultuem os mensaleiros como heróis.

AOS VITORIOSOS DE 64

Os militares brasileiros costumam gabar-se de ter vencido o confronto que culminou com a chamada Revolução de 64. Graças à ação das Forças Armadas, foram derrotados os comunistas e compagnons de route que tentavam transformar o país em uma Cuba meridional. Três décadas depois, cabe a pergunta: foram?

Nunca foi tão pobre e minguado um 7 de Setembro no Brasil. Na capital federal, por escassez de combustível, apenas quatro blindados fizeram parte do desfile. O grupamento da Força Aérea Brasileira deixou os aviões estacionados e seus pilotos desfilaram a pé. Tampouco houve o tradicional sobrevôo de caças. Já no 25 de agosto, dia do soldado, faltou grana até para o coquetel de praxe e o desfile militar foi cancelado.

Faltasse verba apenas para comemorações, não seria tão grave. Mas as Forças Armadas avisaram o Tribunal Superior Eleitoral que nestas eleições não será fácil atender aos pedidos de envio de tropas aos Estados diante da liberação antecipada de 44 mil recrutas no final de julho passado. Esta dispensa foi causada por cortes no Orçamento determinados pelo governo federal. Há algum tempo, os quartéis vinham liberando os recrutas para comerem em casa, já que o rancho andava escasso.

Enquanto o Exército nacional não tem verba sequer para alimentar seus soldados, o presidente Fernando Henrique Cardoso assina uma medida provisória que amplia a definição e os direitos dos anistiados políticos. Servidores públicos civis que foram punidos por adesão a greve serão reintegrados a seus cargos. Políticos, civis e militares que já haviam sido readmitidos poderão pedir indenização financeira à União – hipótese que era vedada na regulamentação da anistia do ano passado. As esquerdas e simpatizantes, que vivem protestando contra o arbítrio das medidas provisórias, contra esta certamente não terão objeções.

Em fevereiro deste ano, a Comissão de Anistia já havia aprovado concessão de indenização de R$ 59,4 mil para o presidente do PT, deputado José Dirceu, por ter sido obrigado a abandonar o País por onze anos, no regime militar. "O Estado brasileiro cassou minha nacionalidade e me baniu do País", afirmou o petista que, entre outras façanhas, trabalhou para os serviços de inteligência cubanos. A verdade é bastante diferente: José Dirceu era preso político e saiu do país em 1969 com mais 14 pessoas em troca da liberdade do embaixador norte-americano Charles Elbrick, seqüestrado por um grupo ligado ao MR-8. Saiu porque quis e mediante outra ação criminosa.

Na época, 2.600 esquerdistas foram beneficiados e sete mil outros pedidos esperavam decisão da comissão. Pela nova regra, passaram a ter direito ao benefício civis e militares atingidos por medidas de exceção desde o início da década de 30 até a promulgação da atual Constituição, em 1988. Ou seja, os pilotos da Força Aérea, marinheiros e fuzileiros navais que em 1964 atentaram contra a nação, serão agora regiamente recompensados por sua desobediência à hierarquia militar. O valor das indenizações pode ser de até R$ 100 mil e a pensão especial mensal de até R$ 10,8 mil – maior salário que pode ser pago com recursos da União. A expectativa do presidente da comissão, no início deste ano, era de que pelo menos 40 mil pessoas apresentassem requerimentos. Mesmo os punidos que não conseguirem provar vínculo com atividade laboral, serão contemplados com 30 salários mínimos para cada ano da punição.

E as vítimas do terror? Cerca de 120 militares foram mortos por militantes de esquerda durante o regime militar. Em janeiro de 2001, o presidente da República em exercício, Marco Maciel, enviou ao Congresso Nacional quatro projetos de lei concedendo pensão especial a vítimas de violência política durante o governo militar. O único vivo a ser beneficiado com uma pensão de R$ 500,00 foi o ex-piloto Orlando Lovecchio Filho, que, em março de 1968 perdeu uma perna, na explosão de uma bomba colocada no Consulado americano, em São Paulo. Lovecchio, que na época tinha 22 anos, estava prestes a tirar o brevê de piloto comercial. Não teve só a perna amputada, mas também sua carreira. Sérgio Ferro, o terrorista que colocou a bomba, vive hoje em Paris, a capital preferida de nove entre dez defensores do proletariado.

Segundo o então secretário de Estado dos Direitos Humanos, José Gregori, a medida não contemplaria os 120 militares mortos, já que eram partes envolvidas em conflito. Além de Lovecchio, abrangeu os herdeiros de mais duas pessoas mortas pelo terror. De carona, entraram no projeto os herdeiros de frei Tito de Alencar Lima, que se suicidou na França em 1974. O suicídio foi debitado a perturbações mentais em decorrência das agressões sofridas em dependências policiais.

Leio no site da Secretaria de Assuntos Legislativos do Congresso, que até junho passado o projeto de indenização a Lovecchio ainda não havia sido aprovado. Quanto à primeira leva de anistiados, estes há muito estão gozando as benesses do regime que pretendiam derrubar. Se terroristas são recompensados, nada mais justo que suas vítimas também o sejam, este é o primeiro raciocínio que nos ocorre. Mas se pensarmos um pouco adiante, logo se revela a ironia da situação. O terror mata e o Estado paga. Traduzindo melhor: o terror mata e você, contribuinte, paga. Pois o Estado nunca paga coisa alguma. Quem paga somos nós.

Foram derrotados os comunistas? O que vemos são seus líderes em prosa e verso cantados, na literatura e no ensino nacionais, ostentando aura de heróis, dando nomes a salas, ruas e rodovias e gozando de gordas aposentadorias. Os militares, que se pretendem vencedores, foram jogados à famosa lata de lixo da História e relegados ao papel de vilões.

Enquanto seu Exército não tem verba sequer para pagar o rancho de recrutas e sua Força Aérea desfila a pé, aos vitoriosos de 64 Fernando Henrique Cardoso confere honras, glória e gordas aposentadorias.

terça-feira, março 25, 2014
 
ESPIRITISMO CONTAMINA
JUDICIÁRIO E MEDICINA



Ainda os testemunhos do Além. De Henderson Ogando, recebo:

- No caso das "provas" psicografadas, tem-se como corriqueira a prática em nossos tribunais. O fundamento, mais ou menos, é pela ausência de ilegalidade ou ilicitude do meio probatório, algo como "o que não é proibido é permitido". Dentro do mesmo assunto, quando há crime doloso contra a vida, o julgamento se dá por um colegiado de pessoas, os jurados, não havendo, portanto, a possibilidade, até por questão de justiça aos magistrados, de se "comprar um bom juiz". E mais, como você mesmo observou no caso de Viamão/RS, também não dá para saber se as tais provas psicografadas podem, ou não, ser o fiel da balança, embora possa convir contigo: em Uberaba/MG, talvez fosse...

Pode ser, Anderson. Mas a decisão no fundo continua dependendo de um juiz. É ele quem aceita ou não os testemunhos psicografados. Há juízes que não aceitam. Se este testemunho vale por não ser proibido o que é permitido, então por que não pedir logo o testemunho do Altíssimo? Há centenas de milhares de homens falando com ele, que sem dúvida tem mais autoridade e credibilidade que uma criatura sua no Além.

Ou o testemunho de santos, por que não? Eles também falam com os homens ainda vivos e estão aí para interceder por eles. Ou o de Maria, que é do ramo: “eia pois advogada nossa, vossos olhos misericordiosos a nós volvei...”. Quem ousaria duvidar do testemunho de mãe da deidade? Se o que baseia os testemunhos do Além é o respeito a fés alheias, no mínimo teria de ser respeitada a católica. Pelo jeito, os advogados cristãos, mais pudicos, ainda não ousaram lançar mão do recurso.

O Judiciário é tímido no Brasil. Se mortos podem enviar testemunhos do Além, por que não poderiam manifestar suas vontades em inventários? É o que me lembra o leitor Vanderlei Vaselek:

- Quero saber como vai ser na hora das brigas pela herança: “Tia Augusta disse que a fazenda de Petrópolis é minha!” “Mas o tio Ângelo disse que é minha!”

Ocorre que patrimônio vale mais que uma vida. O espiritismo tem uma trajetória curiosa. Nascido em país reputado por seus pensadores ateus e racionalistas, fez fortuna em países pobres. Os dois países com maior contingente espírita hoje são o Brasil e as Filipinas. Tabagismo e religião, costumo afirmar, preferem países atrasados e incultos.

Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer e construiu sua ficção. Mesmer era médico, estudava teologia e retomou a antiga picaretagem da imposição das mãos. Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris, é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores, colocadas geralmente por brasileiros.

Entre nós, o embuste invadiu não só o Judiciário, mas também a medicina. Temos a Abrame (Associação Brasileira de Magistrados Espíritas) e a AME-Brasil (Associação Médico-Espírita do Brasil), isso sem falar nas associações por Estado.

Em agosto de 2011, o ator Reynaldo Gianecchini deu ampla difusão à vigarice. Ao descobrir um linfoma do tipo não-Hodgkin (tumor que atinge os gânglios linfáticos), um mês depois começou a buscar ajudas espirituais para a cura da doença. Fez acompanhamento com um “médico astral”, no Instituto de Medicina do Além (IMA), em Franca, São Paulo. Quem o atendeu foi o médium João Berbel, que tem fama de cura pelas cirurgias espirituais que realiza, e que afirma fazê-las a fim de mostrar as profecias de Jesus.

“A gente não anda preocupado em fazer propaganda, a intenção é mostrar as profecias de Jesus, que a Terra da regeneração já chegou, e muitos aflitos vem aqui em busca dos nossos trabalhos gratuitos, que só são possíveis graças a rifas, doações de materiais e à renda dos livros”, diz Berbel. Bem entendido, Gianecchini não dispensou uma quimioterapia no Sírio-Libanês. Mas quem tratou do ator não foi exatamente o João Berbel. Este senhor é apenas um mecânico elétrico que recebe, isto sim, o espírito do clínico geral Ismael Alonso y Alonso, o “médico dos pobres”, que foi prefeito de Franca nos anos 50. “É visível a melhora do meu sobrinho desde o início do tratamento com o doutor Alonso”, disse uma tia do ator. “Ele está mais confiante para seguir o tratamento convencional, pois tem a certeza de que vai superar o câncer”. O dr. Fritz já era. Agora temos o Alonso y Alonso.

Não vi até hoje jornal nenhum denunciando estes absurdos, seja na medicina, seja no Judiciário. Em respeito a algum politicamente correto de ordem religiosa, a imprensa mantém um silêncio obsequioso. A Veja, sempre tão corajosa quando se trata de denúncias políticas, foi cúmplice da farsa:

"Gianecchini recebeu a visita do médium. 'O doutor Alonso colocou uma mão na cabeça e a outra no pescoço do Reynaldo, justamente onde está o foco do problema de saúde', lembra Berbel. Em seguida, ainda conforme o médium, o espírito encarnado fez uma oração pedindo a cura, proferiu uma reza batizada de Oração de Jesus (de sua própria autoria) e encerrou o ritual com o pai-nosso".

A imposição de mãos, na verdade, é uma antiga picaretagem já presente nos Evangelhos, retomada por Allan Kardec. Criação nada original. Se já está nos Evangelhos, basta voltarmos um pouco atrás e encontraremos a prática no Egito, no templo da deusa Isis, onde multidões buscavam o alívio dos sofrimentos junto aos sacerdotes, que lhes aplicavam a imposição das mãos. A vigarice nasce com a humana credulidade.

Ainda segundo a Veja, o biólogo Ricardo Monezi, pesquisador de medicina comportamental na Universidade Federal de São Paulo, testou a influência da impostação de mãos (técnica chupada tanto pelo reiki como pelos espíritas) em ratos com câncer, divididos em três grupos. No terceiro, submetido à impostação de mãos, as células de defesa foram até 50% mais eficientes no combate às células tumorais do que as dos outros ratos.

Se espiritismo cura até ratos, por que não curaria o Gianecchini? Em uma ofensa aos médicos e à medicina, os miraculados menosprezam a quimioterapia ou outras terapias a que foram submetidos e atribuem a cura às prestidigitações de místicos. O espantoso, em tudo isto, é ver médicos e pesquisadores universitários acreditando em tais superstições. E uma revista como a Veja endossando tais embustes.

segunda-feira, março 24, 2014
 
DA ETERNIDADE DO PADRE FERMINO *


"Vi como os católicos se revoltam com suas afirmações" — escreve um leitor -. "Não se conformam, brigam, discutem, retrucam, ora com mais precisão ora com menos. Curioso".

Também acho. Até hoje não entendo como pode alguém irritar-se com um texto. Ora, se o autor propõe uma idéia ou visão de mundo distintas da minha, posso concordar ou discordar, aceitá-las ou rejeitá-las, mas não vejo motivo algum para irritação. Sou grato aos autores e amigos que demoliram convicções que a cultura oficial tentou enfiar-me goela abaixo, via escola. Verdade que hoje tenho uma base mínima de certezas e já não resta muito a demolir. Mas sempre encaro com simpatia opiniões contrárias ao que penso. Desde que não firam os fatos, é claro. Não vou concordar, sob pena de renunciar à minha inteligência, afirmações do tipo Moscou é Europa, Mozart é alemão, Cristo é filósofo, Allende foi assassinado. Tolerância tem limites.

Desde adolescente, tenho irritado não poucos crentes. Para quem tem alma gaudéria, não é fácil responder a esta pergunta: "qual é tua cidade?". Vivi em tantas que tenho de parar para pensar na resposta. Em primeiro lugar, não nasci em cidade, mas no campo, na fronteira seca do Upamaruty, Livramento. Só fui conhecer cidade aos onze anos de idade. No caso, Dom Pedrito, onde vivi cinco anos. Ou seja, apenas um décimo de minha existência. Mas se entendermos "minha cidade" como aquela em que enfrentamos os primeiros embates da vida, é bem possível que a minha seja mesmo Dom Pedrito.

A Igreja foi buscar-me ainda no campo. Uma catequista uruguaia apanhava-me em um jipe na Linha Divisória entre Livramento e Dom Pedrito para jogar-me nas aulas de catecismo. Na cidade, fui estudar em colégio católico, dirigido por padres oblatos. A eles agradeço minha iniciação em latim, francês e inglês. E só. Para desgraça de meus catequistas, muito cedo comecei a ler a Bíblia. Como não há fé em Deus que resista a uma leitura atenta da Bíblia, minhas dúvidas começaram a inquietar os oblatos. Um sacerdote de Bagé, franzino e inquisitorial, veio às pressas para tentar trazer o herege em potencial de volta ao rebanho.

Discutimos um dia todo, com várias jarras de água e um almoço de permeio. A cada preceito de fé que eu contestava, o padre Fermino Dalcin me jogava no rosto a acusação: "Arrogância. Orgulho intelectual. Quem és tu para contestar, aqui em Dom Pedrito, o que autoridades decidiram em Roma?"

Era um argumento pesado para um piá de uns quinze anos. Eu só tinha como defesa descrer do que não conseguia entender. Mas resisti e consegui, ainda adolescente, libertar-me do deus judaico-cristão. Bem sabia a Igreja o que fazia, ao proibir a leitura do Livro a menores de trinta anos. Como cachorro que sacode o corpo para secar-se, sacudi minha alma e procurei, nos anos seguintes, livrar-me da craca ética que vinha grudada ao cadáver do deus cristão. Esta é, a meu ver, a grande função da leitura, libertar o homem de mitos e superstições.

E, principalmente, da educação oficial imposta pela escola. Anos mais tarde, quando exercia o magistério em Santa Catarina, recebi de uma universitária o que considero ser a láurea suprema que pode receber um educador. O chefe de Departamento chamou-me à parte, constrangido. "Professor, uma aluna veio queixar-se de que tinha certezas ao entrar na faculdade. Depois de suas aulas, ela já não sabe mais em que acreditar".

Foi a gratificação maior, jamais superada, de meus anos de magistério. Eu havia conseguido semear a fértil semente da dúvida. Claro que não esquentei cátedra por muito tempo na universidade.

De outro fiel leitor, recebi esta ironia, a propósito de uma discussão em torno ao dogma da transubstanciação: "A cúpula da Igreja deve estar preparando um Concílio, para debater as questões levantadas pelo Janer. Balançam as colunas da Capela Sistina. João Paulo II, dizem, perdeu o sono várias noites, e desistiu de viajar pelo mundo para se dedicar ao assunto. Pela primeira vez, desde a invasão dos mouros, a Igreja Católica sente-se ameaçada, pelo Califa de Dom Pedrito".

Quando eu imaginava que padre Fermino pertencia a meu passado, cá está de volta, quatro décadas depois, o espectro do homenzinho. Se alguém nasce ou vive em Dom Pedrito, deve renunciar, ipso facto, à sua capacidade intelectual. Roma locuta, causa finita!

Pois naquela aldeia da fronteira, que em meus dias de ginasiano tinha apenas 13 mil habitantes, líamos muito Voltaire, escritor que passou os últimos anos de sua vida defendendo os direitos da razão, sempre polemizando contra "l’infâme", ou seja, a Igreja Católica, segundo ele a fonte dos piores abusos e superstições. Voltaire nasceu em geografia mais prestigiosa, Paris. Mas não seria de duvidar que lá no século XVIII, estivesse o eterno padre Fermino a censurá-lo: "Mas quem és tu, François-Marie, para contestar o que autoridades decidiram em Roma?" O mesmo devem ter ouvido Galileu, Giordano Bruno, Savonarola, Calvino, Lutero e Nietzsche.

O melhor estava por vir. Quando já pensava ter ouvido tudo quanto de insólito há para ouvir no mundo, o padre Fermino redivivo me surpreende: "Até que ponto é minimamente elegante, para não dizer justo, estarmos em um espaço aberto a todos os tipos de público, a desmoralizar as convicções alheias?"

Os cadáveres de Nietzsche, Swift, Voltaire devem estar se contorcendo sob a terra. Onde fica o ridendo castigat mores, tão caro a Molière? Deverá ser banido da história como símbolo de intolerância? Até os ossos do velho Marx, tão fanático e iracundo, devem ter sofrido um sobressalto. Afinal, de omnibus dubitandum era seu lema preferido: de tudo deve-se duvidar.

* 23/6/2000

domingo, março 23, 2014
 
MENSAGEM DO ANDRÉ


"Por trás do véu de Isis"? Janer, este é o título de um livro da H. Blavatski, uma das maiores fraudes deste mundo. O título em inglês é "Isis Unveiled" Afirmava ter recebido poderes mágicos e conhecimentos místicos de mestres tibetanos que chegavam até ela durante meditação e portanto ser capaz de mediunidade, psicocinese, telepatia, etc . Nem criatividade para um livro original estes charlatães possuem. Não sabiam como chamar o livro, sabiam que pouca gente aqui ouviu falar em Blavatski, então resolveram colocar este título.

Grato, André. Tenho referências da Blavatski, mas não li nada dela. Na verdade, o título é Por trás do véu de Ísis - Uma investigação sobre a comunicação entre vivos e mortos. É como se alguém titulasse: Grande Sertão: Veredas - uma história homossexual perdida.

 
A FARSA DA PSICOGRAFIA


Me escreve Emerson Schmidt:

Caro Janer

Tudo bem? Na verdade a coisa é pior do que parece, especialmente quando se leva em consideração a publicação do livro Por trás do véu de Ísis - Uma investigação sobre a comunicação entre vivos e mortos, de Marcel Souto Maior em 2004 e o que ele revela sobre a metodologia psicográfica do Baccelli. No site obraspsicografadas se comenta sobre este médium usando-se trechos de um capítulo do livro cujo título é "Conta tudo pro médium" onde é possível se ler a que nível este embuste em particular chegou:

"É ali, atrás de uma mesa de madeira, que Baccelli atende os candidatos a receber uma mensagem do além. Estes encontros se sucedem a partir das cinco da manhã, uma hora e meia antes do início da psicografia. Durante as conversas, quase sempre ligeiras, Baccelli pede mais detalhes aos visitantes sobre seus entes queridos e as circunstâncias da morte. Informações como nomes de avôs e avós são anotadas por ele, muitas vezes, em pequenos pedaços de papel, levados mais tarde até a mesa do salão principal, o palco da psicografia. Quem organiza a fila é um carteiro aposentado de Uberaba, o seu Paulo, sempre simpático e dedicado. Ele se posiciona em frente à porta da saleta, que se fecha assim que cada visitante entra.

Neste sábado, ele está preocupado com a família que veio de carro de Florianópolis em busca de uma mensagem do filho morto. Foram dezenove horas de viagem. O pai do jovem está na fila e recebe instruções solidárias do seu Paulo: — Capricha, hein? Conta tudo pro médium pra você receber sua mensagem. O pai entra sozinho na saleta e, para alivio do seu Paulo, fica quase três minutos lá dentro. — Este deve receber a cartinha — prevê o ex-carteiro, agora encarregado da correspondência entre vivos e mortos. O seu Paulo quase nunca erra. ...". Certamente que quase nunca erra. O mesmo se pode dizer de Valdomiro e as dezenas de milagres feitos diariamente na sua da Igreja Mundial do Poder de Deus. Ambos conhecem profundamente seus respectivos rebanhos...

No fim do mesmo capítulo, o autor do livro questiona o médium sobre o excesso de detalhes pesquisados nas entrevistas feitas com os interessados em receber alguma mensagem:

"— Por que o senhor… digamos… “entrevista”, antes da sessão, os visitantes que vêm aqui em busca de mensagens? Por que são necessárias tantas informações?

Baccelli tem uma resposta pronta:

— O trabalho de psicografia não é só dos espíritos. É do médium também. O médium é parte integrante da equipe espiritual e deve ser o guardião da autenticidade de cada mensagem.

A coleta de informações antes da sessão teria, segundo o médium, as seguintes funções: facilitar a sintonia com os espíritos e preservar o trabalho de qualquer “fraude maledicente”.

— Este, Baccelli, é um cenário de dor, fé, esperança e de desconfiança também. Muitos pais duvidam da autenticidade das mensagens quando encontram, nas cartas destinadas a eles, dados já revelados ao senhor — argumento. Baccelli reage com calma:

— Este não é um problema meu. Não cabe ao médium duvidar. As pessoas duvidam até da existência de Deus, apesar de estarem diante da maior evidência de todas: a criação do mundo.

A resposta se prolonga:

— Normalmente as pessoas não querem apenas uma simples mensagem. Elas estão aqui porque querem o filho de volta, e isto as mensagens não conseguem fazer. Cada mensagem é de conforto, de esclarecimento, mas não é de convicção para aquele que não quer crer. A fé é uma conquista individual. Nós não nascemos com fé. A fé, como a paciência, como tudo, é uma conquista. A mensagem é um material de reflexão.

A conversa se encerra com uma citação de Paulo de Tarso:

— A profecia não é para os que duvidam, é para os que crêem — diz Baccelli.

Quando informações como essas estão publicadas até na net e, mesmo assim tal carta ainda foi aceita no processo judicial sem maiores questionamentos, é melhor se pensar se não seria o caso de se contabilizar despesas mediúnicas quando surgirem certos problemas legais que levem aos tribunais. É até mesmo estranho que alguém ainda não tenha reformulado algum curso de direito e dado a opção do estudante se especializar como advogado-médium ou então se formar nesta nova profissão. Talvez os espíritos estejam apenas esperando que a idéia seja mais aceita para então sugerirem isso a algum médium...

Até mais.

Emerson.

N.B.: O livro citado está disponibilizado na net. É só digitar no google "Por trás do véu de Ísis" que o pdf para baixar aparece
www.damasceno.info/damasceno/MeuSite/Espiritual/veudeisis.pdf

sábado, março 22, 2014
 
EMBUSTE ABSOLVE ASSASSINO


Leio no Estadão:

Acusado de matar bicheiro usa carta psicografada da vítima e é absolvido. Julgamento inocentou réu que está foragido desde que ocorreu o crime, há mais de 20 anos em Uberaba (MG)

A farsa se repete. Comentei-a há sete anos. Diz o jornal:

Uma carta psicografada foi usada durante o julgamento de um processo de homicídio, em Uberaba (MG), nesta quinta-feira, 20. Para provar sua inocência, a defesa do réu, Juarez Guide da Veiga, usou trechos do que teria dito a vítima, João Eurípedes Rosa, o "Joãozinho Bicheiro", como era conhecido, através de um médium. Na correspondência pós-morte, a vítima diz ter dado motivo para o crime ao agir com ódio e ignorância quando viu a ex-companheira junto de Juarez.

O crime ocorreu há quase 22 anos e a mulher envolvida no triângulo amoroso também foi beneficiada com o veredicto, pois inicialmente, segundo o Ministério Público, teria tramado a morte do marido em companhia do réu para ficar com a herança. Na mensagem psicografada, o morto a defende de qualquer participação e pede que cuide dos dois filhos do casal.

Em um dos trechos da carta ele diz: "Você tem uma vida inteira pela frente e muito o que fazer para criar e educar os nossos filhos". Em outro ponto, o bicheiro assume a culpa pela própria morte. "Eu estava dominado pelo ciúme e completamente à mercê do meu próprio despreparo espiritual."

É espantoso que a justiça brasileira aceite tais embustes para absolver um criminoso. É mais uma das jaboticabas nossas. Tivesse tal decisão validade, deveria ser capitulada como crime a descrença de uma existência no Além.


Ocorre que os fatos ocorreram em Uberaba, conhecida por ser a terra de Chico Xavier, médium mais famoso do País. Não aceitar o testemunho do finado seria uma afronta à memória do monumento nacional do município. As mensagens citadas no processo somam 17 páginas e foram psicografadas por Carlos Baccelli um ano após a morte do bicheiro. Baccelli é dentista por profissão, mas também é médium e autor de mais de 100 livros, alguns deles escritos em parceria com Chico Xavier.

Antes, para absolver um criminoso notório, bastava encontrar um juiz bom e barato. Hoje, serve um médium, que provavelmente nem cobrará nada para fornecer o testemunho emitido no Além. Juiz, advogado de defesa, e até mesmo o de acusação, se dobraram à crendice vigente na cidade. O promotor Raphael Soares Moreira Cesar Borba, representante da acusação, não comentou a sentença, mas assim que quatro dos sete jurados votaram a favor do réu, reconheceu a tese de legítima defesa e pediu a absolvição.

Nunca convivi com espíritas. Só fui ver um há dez anos. Quando morre alguém perto da gente, de onde mal se suspeita sempre salta um espírita vendendo suas muletas metafísicas. Minha mulher morrera há mais de mês e eu conversava com amigos comuns. Em dado momento, uma moça atalhou: “Eu conversei ontem com ela”. Nessas ocasiões, tomo uma atitude de crédulo. Se a moça afirmava com tanta convicção ter conversado com minha mulher, não seria eu quem iria contestá-la. Perguntei apenas o que ela havia dito. Ela deixou uma mensagem, disse a moça: “seja feliz”.

O que me lembrou a aparição de Maria aos três pastores em Fátima. Quando interrogada sobre quem era, teria dito a Virgem: “Eu sou a Nossa Senhora”. Ora, sendo Maria mais que santa, semideusa, não é de supor-se que tivesse domínio tão precário do português. Se se dirigia aos três pastores, o correto seria: “Eu sou a Vossa Senhora”. Por um descuido sintático do narrador, o milagre ficou prejudicado.

Da mesma forma, a mensagem de minha companheira. Éramos gaúchos. Depois de passarmos por Curitiba e São Paulo, ela passou a usar o você, mas apenas ao tratar com curitibanos e paulistanos. Jamais me trataria por você. Como a comunicação de Maria, a de minha mulher também ficou sob suspeita. Mas não neguei o testemunho da moça. Aproveitei o ensejo para pedir-lhe que, quando falasse de novo com ela, pedisse o código do celular, que eu havia ficado sem.

A moça entrou em pane, achava que não ia dar, códigos são coisas confidenciais, começou a perguntar que horas são e logo deu as de Vila Diogo. Contei a história mais tarde a professores universitários e um deles, também espírita, prometeu-me perguntar às instâncias do Além sobre o código do celular. Mas me alertou que o médium teria de ser muito poderoso para descobri-lo. Bem entendido, nunca mais me falou no assunto. Nem eu precisava do código, afinal sempre o tive e queria apenas divertir-me com a capacidade comunicativa dos tais de médiuns.

Talvez código de celular seja matéria de pouca monta. Assuntos de mais gravidade, como a absolvição de um crime, têm imediata atenção do Além. Em 2006, aconteceu não na terra do Chico Xavier, mas em Viamão, RS. Uma mulher de 63 anos, acusada de matar um tabelião, com dois tiros na cabeça, foi inocentada, por 5 votos a 2, da acusação de mandante de homicídio.

Inocentada por quê? Porque uma carta psicografada da vítima declarava: "O que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada desse jeito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes (...). Um abraço fraterno do Ercy", leu o advogado de defesa, ouvido atentamente pelos sete jurados.

Vamos ao que disse a Folha de São Paulo, na época, sobre o fato:

Não consta das cartas, psicografadas pelo médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, a suposta real autoria do assassinato. O marido da ré, Alcides Chaves Barcelos, era amigo da vítima. A ele foi endereçada uma das cartas. A outra foi para a própria ré. Foi o marido quem buscou ajuda na sessão espírita. O advogado, que disse ter estudado a teoria espírita para a defesa (ele não professa a religião), define as cartas como "ponto de desequilíbrio do julgamento", atribuindo a elas valor fundamental para a absolvição. (...) Os jurados não fundamentam seus votos, o que dificulta uma avaliação sobre a influência dos textos na absolvição. Os documentos foram aceitos porque foram apresentados em tempo legal e a acusação não pediu a impugnação deles.

Curvem-se as nações mais uma vez ante este colosso, o Brasil. Glória ao Rio Grande do Sul, este Estado pioneiro em matéria de ciência jurídica. Viamão über alles. Que sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra, como diz o hino rio-grandense. Esta extraordinária inovação do tribunal do júri, verdadeiro ovo de Colombo ainda não intuído pelos sistemas judiciários dos demais países, dirime definitivamente quaisquer dúvidas que possam pairar sobre os veredictos dos jurados. Quem com mais autoridade para inocentar um réu senão a vítima? Está morta, é verdade.

Mas se os espíritas consideram ser possível falar com os mortos, em nome do sagrado respeito a todas as profissões de fé, não seremos nós, ateus empedernidos, que contestaremos tal crença. Só nos resta esperar que este novo recurso jurídico se integre definitivamente ao Direito Processual e seja mais e mais utilizado pelos nossos tribunais. Como também que a profissão de médium seja logo regulamentada.

sexta-feira, março 21, 2014
 
Souvenirs de Paris:
MES FORTS BRAS



Jamais pretendi defender tese de doutorado, aliás sequer sabia em que consistia este gênero literário em geral masturbatório com pretensões de ciência exata. No fundo, queria viajar, conhecer outras gentes. Os suecos têm um nome para isto: resfeber, febre de viagens. Contraí o vírus em Estocolmo. Consta que a doença não tem cura. Tinha quatro anos para redigir trezentas ou quatrocentas páginas, o que não exige nenhum esforço maior de um jornalista treinado na crônica diária. O mesmo vale para um professor de Letras que, teoricamente, deveria saber escrever.

Em um curso de metodologia, tive como professor um certo M. Decaudin, cujo nome me causava calafrios: temia, em um ato falho, tratá-lo por M. Decadent. O ato, aliás, não mais seria falho, já havia passado a habitar meu consciente. Em suas aulas, enfrentei meu primeiro inimigo teórico, o tal de método. M. Decadent (pardon!) exigia de mim um método, instrumento do qual jamais ouvira falar. Fui consultar um professor gaúcho, Dionísio Toledo. Professor na Sorbonne, conheceria suas manhas. Toledo me recebeu amistosamente e me sugeriu diversas linhas de análise. Eu poderia usar um enfoque psicanalítico, a partir de Lacan ou Kristeva, se não me engano, ou quem sabe analisar os autores sociologicamente, a partir das obras de Goldman e sei lá mais quem, ou então, se não quisesse pensar muito, adotar um método estruturalista. Era uma noite de inverno, Paris estava coberta de neve. Caminhei vários quarteirões sem encontrar uma lata de lixo onde jogar a bibliografia que, por uma questão de cortesia, anotei em alguns papéis. - Ça va, jeune-homme de la pampa?

A voz rouca o fez voltar 15 anos atrás. Jeune-homme de la pampa? Não acreditava no que ouvia. Só podia ser ela, Martine et sa belle poitrine. E só podia ser com ele. Fora ali mesmo, na terrasse do Select, que se haviam despedido, após acompanhar o enterro de Sartre. Ela, a militante do PC, dera estilo a seus ensaios e alegria a seus dias de Paris. Fora sua professora de francês na Sorbonne, depois chez elle, e depois... seu dicionário de travesseiro, a salvação de sua tese. Não foi fácil explicar-lhe que não era exatamente brasileiro, mas gaúcho. Falou da pampa, de seus habitantes e hábitos peculiares, cevou-lhe um chimarrão. Profilática, ela insistia em uma cuia e bomba individuais. Só aceitou chupar na mesma bomba ao saber que aquela era a bebida predileta de Che Guevara e assim devia ser tomada, coletivamente. Lembrou de um dito gaúcho: mulher que toma mate em muitas bombas, nunca mais se acostuma com uma só.

Mas aquelas tardes esdrúxulas de chimarrão e camembert estavam mortas e bem mortas, como morto estava o jovem cheio de ilusões que um dia chegara a Paris para conquistar o mundo. Morta estava sua tese, seu entusiasmo pela literatura, suas esperanças no magistério. Visitava agora Paris como quem faz turismo pelo próprio passado e uma voz rouca ressuscitava dias que julgava também mortos. Abraçou-a com efusão.

Sentaram-se na terrasse, como se tivessem se despedido em Montparnasse na noite anterior. Como dizíamos ontem... Ambos com alguns quilos a mais, sua barba já poivre-et-sel, alguns fios brancos invadindo a crina loura da ex-professora. Ele, que abominava o stalinismo de Sartre, fora cair nos braços da militante. Quem te viu, quem te vê. Desejo não tinha ideologia. Resumiram, em traços rápidos, os quinze anos passados. Ele migrara de cidade, profissão e mulher. Brasil era eterno devir. França, águas paradas. Ela mudara apenas de endereço.

Passado volta? Tinha medo de um fiasco. Evocou seus seios, seus pelos, que um dia vira emergir do Mediterrâneo, gotejantes, numa praia em Cannes. Ela despediu-se com um olhar quente, passou-lhe o endereço. Esperava-o no sábado pela manhã. J ai besoin de tes forts bras.

Dormiu o sono dos anjos. Passado voltava, sim senhor! Pragmática, a francesinha. Queria-o em plena forma, de manhã cedo. Braços fortes? Pois não teme quem te adora a própria morte. O hino pátrio adquiria novo sentido às margens do Sena. Na sexta, moderou no vinho. Sentia-se um Jacques Brel revisitando uma antiga paixão. Ela ainda vira força em seus braços? Gentil Martine. Já se via auscultando sua generosa poitrine!

Chegou atrasado, os homens da transportadora já esperavam na porta do prédio. Operário francês, tu sais, reclamava Martine, eles não movem um dedo numa mudança, a gente tem de carregar tudo.

Um fio de pentelho puxa mais que vinte juntas de boi, tinha de convir. O Muro havia caído, a URSS se esfacelado e lá estava ele, carregando das profundezas de uma cave os arquivos da célula do PC de Montparnasse. Dependesse a marcha da História dos seios de Martine, nem tudo estava perdido.

quinta-feira, março 20, 2014
 
INÚTIL PROIBIR SUICÍDIO


Em agosto de 2009, Fernando Henrique Cardoso parece ter descoberto a América ao afirmar que um mundo sem drogas é tão difícil quanto um mundo sem sexo. Presente à reunião de criação da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, no Rio, FHC defendeu a descriminalização do uso da maconha, a adoção de política de redução de danos e o atendimento a usuário de drogas na rede pública de saúde.

Em fevereiro do mesmo ano, o ex-presidente – que um dia disse que fumou mas não tragou – anunciou ser favorável à descriminalização da maconha para consumo pessoal, defendendo a sua legalização. Depois de velho, quis bancar o avançadinho. Favor não me interpretar mal. Sempre fui favorável à descriminalização do uso das drogas. Quem quer se matar, que se mate. O tabaco, o grande legado indígena ao Ocidente, matou e continha matando, e boa parte da humanidade fumou e continua fumando. Verdade que hoje tabagismo e religião são hábitos mais cultivados em países pobres. Se você não está proibido de chupar câncer, porque estaria proibido de fumar maconha?

Minha restrição à declaração de FHC é de outra ordem. Para começar, seria importante que dissesse isto quando era presidente. Ou, melhor ainda, quando era candidato a presidente. Mas, na época, isto era um risco de perder eleição. Continuando, considero absolutamente oportunistas as atuais defesas da descriminalização das drogas. As drogas estão há muito descriminalizadas, não só no Brasil, como em todo Ocidente.

Quando você viu, leitor, pela última vez, alguém ser preso por consumo de drogas? Talvez há uns trinta anos. De lá para cá, o consumo de toda e qualquer droga não implica punição alguma. As raves são regadas a drogas, não há quem não saiba disto, desde a polícia aos pais dos adolescentes que delas participam. As escolas têm distribuidores em seus portões, e ai do professor que ousar denunciar o uso da droga numa escola. Está arriscando sua vida. Os professores sabem disto e todos permanecem silentes.

Enquanto o ato tipificado como crime não é norma, o problema não existe: continua sendo crime. Quando se torna norma, o problema é mais delicado. O Estado apela então à hipocrisia. Foi o que ocorreu com a prostituição nas últimas décadas. Impotente ante o comércio sexual, os legisladores, na Suécia e em alguns Estados americanos, decidiram que prostituir-se não é crime. Mas pagar os serviços de uma prostituta virou crime. Absolve-se a profissional e pune-se o cliente. De que viverão então as moças?

Ainda há pouco, a França passou a militar no batalhão da hipocrisia. Começou mal o governo de François Hollande. No jornalismo on line, vimos fotos das profissionais parisienses manifestando nas ruas e ostentando cartazes em defesa do ofício:

LIBERTÉ? EGALITÉ? FRATERNITÉ? PUTES ELIMINÉES?

Segundo o Nouvel Observateur, os partidos políticos são todos favoráveis à abolição da prostituição. Em 2011, o Parlamento adotou uma resolução que preconisa a penalização dos clientes. Sob o argumento de que a prostituição é uma violência às mulheres e às prostitutas, mesmo as « tradicionais », que são vulneráveis social e economicamente, a França pretende extirpar a dita mais antiga das profissões. Os socialistas jamais se curam da mania de utopia.

São Paulo é emblemática no que diz respeito a esta hipocrisia. Já comentei o assunto. Enquanto José Serra proíbe o fumo – o mesmo José Serra que defendeu a indústria tabageira em Santa Cruz do Sul, quando era candidato à presidência da República – na Cracolândia centenas de farrapos humanos consomem crack à luz do dia e ao lado de viaturas da polícia, que parecem ter por função protege-los. Hoje, numa rave, um adolescente entorpecido pelo ecstasy ou pela cocaína, pode ser advertido e expulso da festa se ousar acender um cigarro.

Essa gente que hoje defende a liberação das drogas está chovendo no molhado. As drogas há muito estão liberadas. Só não vê quem não quer. Por outro lado, ao afirmar que um mundo sem drogas é tão difícil quanto um mundo sem sexo, FHC está proferindo uma solene bobagem, indigna de sua carreira universitária. Álcool e tabagismo à parte, as demais drogas são decorrências do mundo contemporâneo. Se a cerveja existia desde o antigo Egito, se o vinho data dos tempos bíblicos, de lá para cá os seres humanos viveram muito bem sem maconha, cocaína ou crack.

Sem sexo não há seres humanos. Drogas são optativas. A humanidade não vai extinguir-se se não consumir drogas. Mas se extingue se não houver sexo.

Está provocando celeuma o projeto do deputado Jean Wyllys legalizando a maconha e concedendo anistia aos traficantes, que seriam perdoados de forma retroativa. Segundo os jornais, o projeto de Lei 7270/14 prevê anistia para quem foi condenado por venda da maconha. A medida vale para as condenações anteriores à aprovação da lei. Segundo o texto, o perdão é para “todos que, antes da sanção da lei, cometeram crime previsto na lei antidrogas, sempre que a droga que tiver sido objeto da conduta anteriormente ilícita por elas praticada tenha sido a cannabis, derivados e produtos da cannabis”.

Em entrevista ao Congresso em Foco, Jean disse que a soltura do traficante é uma questão de coerência. “Se a venda for legalizada, não faz sentido a pessoa continuar presa. A gente precisa ser uma sociedade solidária, discutir. Nós temos a quarta maior população carcerária do mundo”, disse ele hoje.

Longe de mim defender o deputado, produto espúrio dos BBBs da vida. Mas não podemos negar-lhe coerência, pelo menos no que diz respeito à legalização da droga. É a chispa da ferradura quando bate na calçada. Quanto à anistia retroativa dos traficantes, o deputado está sendo cúmplice de criminosos julgados e condenados. Algo como jogar as leis e o Judiciário ao lixo. Enquanto tráfico é crime, traficante é criminoso. Daí o projeto de lei. Quando traficar for lícito, deixam de existir crime e criminoso.

Há mais de década venho afirmando que o debate é ocioso. Hipocritamente, lá de vez em quando, para mostrar serviço, a polícia prende algum traficante. De preferência, os megatraficantes, que sempre podem render um bom suborno. É a mesma hipocrisia brandida no tratamento da prostituição no Brasil. Prostituição não é crime, muito menos pagar prostitutas. Mas a organização da prostituição é. Ora, toda profissional precisa de uma infraestrutura para trabalhar com tranqüilidade. Da mesma forma, se o consumo das drogas é permitido – como de fato o é – como terão os consumidores acesso às drogas se não houver um distribuidor? Se maconha ou cocaína não são vendidas em farmácias, é preciso que alguém as forneça.

Todos os dias nos chegam notícias, de todos os cantos do mundo, mostrando que o combate ao tráfico é batalha há muito perdida. Em qualquer esquina de São Paulo, você está distante poucos minutos da droga. Na periferia, maconha se compra até na padaria. O tráfico é lucrativo porque a droga é – ao menos teoricamente – ilegal. Dito isto, jamais usei droga alguma e não saberia distinguir cocaína de farinha nem maconha de alfafa. Não tenho, nos círculos que freqüento ou freqüentei, nenhum amigo que use drogas. Aliás, nenhum de meus amigos nem mesmo fuma. Não que os escolha por estas ou aquelas práticas. São afinidades eletivas. Mais ainda, meu povo geralmente não tem carro nem assiste televisão.

Mas não me parece sensato proibir alguém de suicidar-se. Que mais não seja, a proibição tem se revelado inútil.

terça-feira, março 18, 2014
 
À JANELA


(primeiro texto literário, escrito talvez em 67, 68)

Com as mulheres aprendi a ser homem. Surpreendeu-me, de início, a descoberta. Mas, pensando bem, esta é a única aprendizagem possível. Não são as mulheres e seus caprichos os critérios últimos de nossas ações, angústias e atitudes éticas? Não é com a mulher que aprendemos a ser ternos e amantes, impiedosos e cruéis? Quando o filósofo disse ser o homem a medida de todas as coisas, generalizava, é claro. Fosse mais específico, estaria mais próximo da verdade.

Viajar (o ato físico, o locomover-se) torna-me lúcido, as idéias resvalam ágeis e únicas. Por mais que me inquira, não encontro razões precisas. Aventuro hipóteses: talvez por estar acompanhado e em verdade só. Ou quem sabe por sentir-me rasgando a noite - nunca viajo quando dia - afastando-me a cada minuto dos lugares que habito, numa espécie de desmama, de corte umbelical. E sei que qualquer dia não mais voltarei...

A cidade, amarelecida pelo sol que morre, vai se tornando cada vez menos densa, menos populosa, mais subúrbio. Os passageiros escondem-se em suas golas, afundam seus corpos tensos nas poltronas, como se isto os aquecesse nesta melancólica tarde de julho. O dia faz-se penumbra, a penumbra faz-se noite e na noite os homens calam. Amo este silêncio ruidoso do viajar.

O vento gelado nas faces, os cabelos esvoaçantes, outra possibilidade para explicar meu estado de espírito. Sinto nitidamente os contornos de meu rosto, o vento desenha no espaço as linhas além das quais não existo. Sempre compro um lugar à janela e, por frio que esteja, conservo-a aberta.

- O senhor não se importaria de fechar a janela?

Pois não, cavalheiro, vosso pedido fazia-se esperar. Desde há muito ouço esta pergunta, quase já sei exatamente a temperatura suportável por vossas peles. Isso depende também muito de temperamento. Uma pessoa tímida suporta mais frio que um passageiro de índole agressiva, por exemplo. O cavalheiro estará no rol dos últimos, pois não? Mas não vou cerrá-la de todo, preciso mais da brisa que você de calor. A janela fechada sufoca e o frio, no máximo, enregela. De modo que...

Luzes sonolentas surgem na noite. Multiplicam-se, diferenciam-se, ferem meus olhos, passam e somem na distância. Uma cidade sem nome dorme tranqüila. Quadrúpedes semicalvos e barrigudos abrigam-se desajeitadamente sobre Alvos Lençóis, no Recesso do Lar, o Esteio, após cumprir suas obrigações de estado com a Rainha. Milhares de seres sonham pesadelos mais sinceros que suas ilusões de despertos. Jamais saberão da passagem deste proscrito, tampouco dos juízos que faço. Já vos vi em outros lugares, em circunstâncias por vezes irônicas. Ides às praias, substituir vossa flácida e incolor epiderme. E código algum legisla sobre esta criminosa proximidade entre mar e mortos.

E mais me contraem o sorriso suas ambições antropocêntricas. Três bilhões de centros do universo. "Nossa meta é o homem". Já ouvi isso de louvados e ilustres humanistas e também de vendedores de enciclopédias. "Ama teu próximo como a ti mesmo", e seja anátema não aceitar este slogan fóssil, síntese de vinte séculos de mórbida cultura.

Mas... será vida o vagido destes vermes, cujo engatinhar um incomensurável universo ignora? Como, cavalheiro? Ah, sim, a janela. Mas como sois mesquinho, interrompendo minhas íntimas reflexões.

Um troglodita em plena urbe, assim me sinto. Parece-me existirem algumas diferenças psicológicas entre um ser cujo leito foi na infância a grama, e teve por lençóis o orvalho e o luar gelados, e outros que nasceram no asfalto, vivendo em escuros e sufocantes cubículos. Para estes, a claustrofobia é doença. Cães uivando sem razões que eu saiba, ruídos surdos de dentes bovinos triturando a grama, que só ouço se colado ao chão, grilos bordando o silêncio, estrelas cuja visão destrói quaisquer ambições mais altas, eis meu universo mais primeiro, mais bem guardado, e agora, o mais distante. Existirá algum significado nestes milênios de cultura, que tiraram um animal de seu ambiente de magia, para torná-lo um ser frágil, cultural e doente? Claustrofobia, cavalheiro, é saúde.

Outra cidade. De novo, seres tranqüilos, porque inconscientes. Mesmo despertos, não têm angústias e lhes são absurdas e doentias as torturas que me impinjo. Sempre tranqüilos, é incrível, e eu os invejo. Mas não consigo sê-lo. Já saindo, nos subúrbios, uma luzinha vermelha pisca na porta de uma casa onde ainda existem sons. É possível que lá dentro um farrapo de mulher, exausta de sua absurda faina diária, sabiamente olhe o vácuo. Se o faz, é minha irmã. E não saberá, mesmo ouvindo os ruídos que me acompanham, que passei a poucos metros de sua lúgubre morada, e confraternizei com seu desespero silente.

Embaça-se o vidro do arfar das bestas. Também dormem, o próprio motorista talvez esteja dormindo. Subrepticiamente, abro um bocado a janela. E respiro a terra, a noite e os pastos que ela cobre.

Não tenho tempo para amar-vos. Minha carne débil e branca (vossas cidades destruíram sua antiga cor e rijeza e sua docilidade a meus ímpetos) atesta a marcha implacável de retorno ao húmus. Dêem-me a vida eterna, e amar-vos-ei nas horas vagas. Talvez assim até mesmo teça um poema otimista à espécie. Esta ternura irônica que ainda em mim resta, não se origina de vossos compêndios ou ideais, mas dos lamentos frágeis que ouvi de vossas fêmeas insaciadas. No burilamento de meu espírito rude e áspero, a mulher ocupa um lugar cuja importância me intriga.

Aos 15, eu as temia e amava: medo e fascínio do desconhecido. Aos 20, amei-as: acabou-se o mistério. Entreguei-me, mostrei-me qual era, fiz-me vulnerável e ao perdê-las, sofri por tal ingenuidade. Hoje, só conhecem meus gestos exteriores. Apresento-lhes mil faces, deixo-as confusas, conservo meu ego perfeitamente camuflado, faço-as chorar e seu apego à dor me comove. Desta comoção, brota minha quente simpatia por certos seres humanos. Que se extingue, porém, quando reflito sobre a nebulosa de Andrômeda, por exemplo.

O próprio ato amoroso tornou-se-me algo dorido. Ao fazer amor, preciso sair de mim mesmo, estabeleço uma ponte até outrem. Essa concessão machuca-me quase fisicamente.

- A janela, por favor, meu filho está gripado.

Perdão, senhor, ignorava que esse apêndice vivo que sempre carregais em vossas viagens fora atacado por este inquietante e desconhecido vírus. Já fecho a janela, não serei descortês com meus companheiros de viagem. Devo confessar porém que o único motivo que me impede a paternidade é ver-vos carregados com vossas crias, quais membros aleijados de vossos próprios corpos, que não conseguis comandar.

Cerro a janela. No vidro, os contornos difusos de meus traços. Mergulho o rosto no calor ambiente. Mas nem assim adormeço.

Os termos de vosso contrato não me satisfazem. É claro que renuncio às vantagens que me seriam outorgadas. Por algumas, lamento. Mas, no cômputo total, que falta de perspicácia tendes!

Luz já quase dilucular. Vontade de noite, desejos de não chegar.

segunda-feira, março 17, 2014
 
PORTO ALEGRE SEGUNDO SAUL


Janer,

Aproveito teu comentário sobre a correlação que o Sergio Jockymann apontou entre a POA da primeira metade do Século XX e Paris, para contribuir com algumas reminiscências e percepções. Na primeira das duas crônicas, o Sergio considerou como época áurea do centro da capital gaúcha, as décadas de 40 e 50. Cheguei na última delas, mais precisamente em 1953 e, um guri adolescente com raízes nos campos de Cima da Serra e que ficoui naturalmente deslumbrado com a nova ambiência. Tive sorte neste aspecto, pois já comecei fazendo um percurso diário que significava descer do bonde na Praça XV, atravessar a Galeria Chaves e percorrer a pé a Rua da Praia até a Caldas Júnior, em cuja confluência com a Riachuelo ficava meu colégio, o Julinho, então alí provisoriamente instalado no prédio do Arquivo Público.

Com variações nos motivos, ou até bastante sem motivo, frequentei aquele eixo quase que diariamente durante os 13 anos seguintes, o que me permitiu ser testemunha ocular das transformações havidas, para o bem e para o mal, talvez muito mais para este. Em meu início, o footing com exclusividade para pedestres somente era praticado entre a Borges e o Largo do Medeiros. Apenas nos anos seguinte é que a Borges foi transposta, com a feição "calçadão" da Rua da Praia avançando progressivamente até a Dr. Flores. Como transformação para o bem, é importante que não se deixe de assinalar o surgimento da Feira do Livro na Praça da Alfândega, no ano de 1955, quando eu concluía o científico.

Acho que a "alma" da P. Alegre de então não buscava espelhar-se em Paris. O modelo estava bem mais próximo, em Buenos Aires. Esta é que procurava emular Paris e, assim, o alvo da nossa POA era atenuado e contido no degrau portenho, intermediário. O Jockymann, entre várias nostalgias, cita os cafés e destes, efetivamente, havia inúmeros, com seus aromas, sons e vai-e-vem de frequentadores. Um dos mais interessantes era o Marrocos, que ficava onde mais tarde foi construído o atual Ed. Sta. Cruz, no nº 1234 da Andradas. Na frente era café e, aos fundos e separado por uma parede-biombo à meia altura, um bar com as tradicionais mesas de mármore e tendo uma orquestra típica a desfilar os tangos de praxe. Um tempo depois o local foi fechado para reforma e reabriu com o nome de Indiana, creio que já sem a típica. Novo fechamento para a longuíssima construção do edifício citado levou o local a reabrir como uma grande e ótima lancheria de nome Rian, isso antes de virar a atual e prosaica farmácia.

Nas tuas lembranças anotaste as qualidades da Rottisserie Pelotense, na Riachuelo. Anteriormente, a Pelotense e as mesmas mesas de mármore estavam no lado esquerdo de quem desce a Rua da Praia, um pouco acima da embocadura da Rua Uruguai, ao lado da loja de calçados Clark de então e onde hoje é uma filial das Lojas Americanas. Nos fins de tarde as mesas de mármore avançavam para a calçada, sendo possível assistir-se ao movimento na "primeira fila", degustando o chopp e, principalmente, os bolinhos de bacalhau que tornaram a casa famosa. Naturalmente nessa época e dada a dimensão da minha "receita" de estudante, eu era apenas um espectador itinerante de tais iguarías. Lá embaixo, antes do Largo e na esquina com a Ladeira, ficava o Restaurante Shangri-Lá, que esteve ali por décadas mas do qual não há mais referências nem mesmo nos textos de historiadores do logradouro. Era nessa esquina do Shangri-Lá que a popular jornaleira Maria Chorona apregoava diariamente o Correio do Povo.

Entre as citações no Mercado Público, faltou a inclusão do Guaraxaim, do mesmo nível ou até melhor que o Treviso, embora de tamanho menor. Fui ali pela primeira vez em meados de 1942, levado por meu pai e lembro que comemos garoupa à milanesa. No alto do balcão, à entrada, havia um Guaraxaim empalhado e, acima, viam-se aqueles ventiladores de teto de pás enormes, girando lentamente, num quadro de imagens que depois reconheci em cenas de filmes veiculando histórias do período do colonialismo inglês, um pouco a la Joseph Conrad.

A expulsão de todos esses serviços que fizeram da Rua da Praia o que ela era, para dar lugar aos bancos, ocorreu em meados da década de 60, numa invasão que veio do lado da Rua 7 de Setembro, então a meca dos bancos. Em pouco tempo, o trecho Borges - Largo ficou totalmente desfigurado e apenas como corredor de passagem para a obrigatória ida aos cinemas, naqueles tempos antes do domínio da televisão. Resistiram por algum tempo lojas mais tradicionais, como a Casa Sloper, a Casa das Sedas e a Casa Victor. O footing e as rodas de bate-papo no meio da rua transferiram-se totalmente para o trecho acima da Borges, com "âncoras" de referência para facilitar a localização e aglutinar as "tribos" que ficavam situadas defronte à Galeria Chaves, à Casa Masson e à Casa Krahe, principalmente.

Voltando ao que nos encanta numa cidade e nos faz estabelecer semelhanças com outras conhecidas ou imaginadas, acho que se trata de um fenômeno que, vez por outra, pessoas que gostam de viajar e tentar identificar o espírito de uma nova metrópole experimentam, numa forma quase de "revelação mística". Lembro de haver sentido isso em Barcelona, talvez a única das cidades que conheço, além de P. Alegre, que me fariam aceitar sem hesitação uma eventual "condenação" no sentido de ser obrigado a viver permanentemente em alguma delas para o resto de meus dias. Em relação a P. Alegre, basta reler aquele poema O Mapa, do Mario Quintana, e o sentimento de pertinência ao lugar nos invade. Há lugar também para o bairrismo puro e simples, como o que leva os habitantes de Bari, lá no "calcanhar da bota" da península itálica, a defender como mantra que "Se Parigi avesse il mare, sarebbe una piccola Bari", rsrs...

Para que a similitude defendida pelo saudoso Jockymann não fique totalmente desautorizada, vale a pena recordar um evento "parisiense" no centro de P. Alegre, ainda que um tanto desmerecedor das nossas qualidades de bons anfitriões. Ocorreu em maio de 1953, quando o Charles Trenet apareceu na capital para algumas apresentações. No final da mini temporada estava prevista apresentação dele num espetáculo vespertino de domingo. Creio que foi no palco do Cine Rex, já desaparecido, embora haja quem defenda que foi no Imperial, este ao lado do Clube do Comércio. Quando chegou a hora, o Trenet achou o público presente muito exíguo e quis eximir-se de fazer o espetáculo, gerando uma crise com empurrões que foi desembocar numa delegacia de polícia, em meio a apupos da plateia frustrada e na presença de um Trenet meio desvairado a bradar, je ne chante pas..., je ne chante pas... Na segunda-feira seguinte, dia da semana em que à época o Correio do Povo não circulava, a Folha da Tarde encarregou-se de manchetear o episódio na capa e apresentar matéria no miolo.

Janer, a tentativa de contribuição acima foi feita dentro do pressuposto que, como já dei umas dez voltas em voltas do sol a mais que as tuas, para usar tua feliz expressão, devo ter vivenciado P. Alegre também com uma antecedência assemelhada, se comparado pelo menos aos anos de início da tua.

Abrs.

Saul Gil