¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, fevereiro 07, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (I)


Dom Pedrito


Feliz de quem tem uma província no fundo do coração, disse alguém, já não lembro quem. Talvez Machado de Assis. Nada dá mais prazer a um homem honesto do que falar de si mesmo, pôs Dostoievski na boca de um de seus personagens. Província é o que não me falta. E não tenho desprazer algum ao falar de mim mesmo.
Nasci no campo, naquela zona dúbia entre Brasil e Uruguai, Três Vendas e Ponche Verde, Puntas de Yaguari e Villa Indarte. Mais precisamente, em Upamaruty, a menos de uma légua da Linha, fronteira seca com a República Oriental del Uruguay. Em razão dessas curvas anômalas da geografia política, o sol para mim sempre nasceu na Banda Oriental – ou Tierra de Ningún Provecho, como os conquistadores espanhóis definiam o Uruguai em seus mapas. Pelo que aprendi da vida nestas andanças, as fronteiras produzem, entre outros, dois tipos de homem. Existe aquele para quem o mundo termina ali, antes da divisa. Este é o nacionalista atroz: meu país é o melhor país do mundo. Mas as fronteiras geram também outro espécime, que vê o mundo começando do lado de lá. Pelo lado de cá, jamais senti muita atração, já o conhecia.

Só mais tarde fui saber que nasci embalado pelo poema maior gerado por este continente. Nas madrugadas lá da Linha, antes de buscar as vacas em meio à cerração, sempre se tomava um mate ao redor da fogueira no galpão. Enquanto eu chorava a contragosto, com a fumaça de algum cavaco de madeira verde, meu pai recitava as coplas de Fierro. Tenho uma definição muito pessoal de gaúcho. Se interpelar alguém:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,


e se meu interlocutor não continuar a sextilha, não é gaúcho. Pode ser até rio-grandense, mas gaúcho não é.

que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.


Em abril de 91, em um final de noite em Paris, encontrei uma uruguaia que vivia na Noruega, em Oslo, e se dizia gaúcha. Dei o santo, ela deu a senha. Tudo bem, era gaúcha. Gaúcho, se for gaúcho mesmo, continua a sê-lo mesmo nas antípodas. Aliás, esqueci de perguntar para a uruguaia gaudéria se tinha uma tapera em seu passado. Certamente a teve, bastava olhá-la nos olhos quando falava da pampa.

Entre los pastos tirada
como una prenda perdida
y en el silencio escondida
como carícia robada,
completamente rodeada
por el cardo y la flechilla
que como larga golilla
van bajando a la ladera
está una triste tapera
descansando en la cuchilla
...............................
donde palpitar senti,
llenas de afecto profundo,
cosas chicas para el mundo
pero grandes para mí.


Este excerto é de Mi Tapera, de Elias Regules. O poema não é muito conhecido entre nós. Deslumbrados pelos brilhos teóricos emanados de Paris ou Moscou, os donos da cultura no Rio Grande do Sul ajoelharam-se em direção ao norte e deram as costas para o Prata. Aliás, nisto os rio-grandenses não são nada originais, esta é a atitude nacional. Ao norte do rio Uruguai, raras pessoas conhecem Martín Fierro. Em Florianópolis, quando propus um curso sobre o poema, os PhDeuses que me cercavam julgaram que eu estava falando grego. Hoje, em São Paulo, tenho fascinado não poucos amigos recitando as coplas de Hernández. Jamais haviam ouvido falar do homem ou da obra.

O mesmo já não acontece na Europa. Certa vez, alguns anos antes da reunificação alemã, caí em Berlim Ocidental, em plena "Semana Martín Fierro". Era hóspede de uma amiga riograndense de origem italiana, que não sabia se José Hernández era açougueiro ou alfaiate. Quando soube que o poema começara a ser escrito em Santana do Livramento, achou que eu estava abusando de meu senso de humor. Foi consultar uma enciclopédia literária alemã, lá estaria a verdade. Pois estava: os dicionaristas concediam várias páginas a nosso vizinho e o comparavam –nada mais, nada menos– a Homero.

Em Paris, quando defendia na Sorbonne uma tese de doutorado em Literatura Comparada – no fundo um álibi para queijos e vinhos, mulheres e novas paisagens – tive a grata surpresa de ver no júri M. Paul Verdevoye. A parte de ser um dos grandes divulgadores da literatura latino-americana na Europa, era o tradutor do poema de Hernández ao francês.

Tive ainda um outro reencontro com os versos de minha infância lá no outro lado do Atlântico. Obcecado por ilhas, acabei caindo nas Canárias. Em Las Palmas, encontrei um professor universitário, arabista de renome, cuja pedra de toque era o conhecimento do poema argentino. Pois naquela ilha vulcânica, batida pelos ventos da África, tão estranha à pampa gaúcha, o homem siderava platéias recitando a saga de Fierro.