¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, fevereiro 11, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (III)

Cheguei a Dom Pedrito em 1958, época em que bombachas eram um estigma. Numa tentativa de adaptação à "urbe", troquei botas e alpargatas por sapatos, mas sempre preservando as bombachas, o que me tornava um ser híbrido e grotesco. Hoje, elas são ostentadas como símbolo de identidade cultural. O que não deixa de ser ridículo, botas e bombachas só fazem sentido para o gaúcho a cavalo, jamais para o ser urbano motorizado.

Neste sentido, os florianopolitanos não deixam de ter razão quando nos satirizam. Qual é o menor circo do mundo? A bombacha, só cabe um palhaço dentro. Naqueles anos 50, usá-las era sinônimo de grossura. No ginásio não me pouparam, enquanto não as troquei pelas "calças corridas" me senti um verme. A violência do choque com a cidade me fez por algum tempo repudiar meu próprio pai. Quando já havia optado pela calça de vinco, ele chega a Dom Pedrito, montado em suas bombachas. Adolescente e inseguro, massacrado pelo snobismo da província, sentia vergonha ao sair na cidade com aquele gaúcho –um dos últimos– que nunca renegou suas origens. Suponho que muitos fronteiristas de minha geração, que um dia trocaram o campo pela cidade, terão vivido este trauma, sem coragem de confessá-lo. Quando me refugiei lá pelas bandas do Pólo Ártico, confrontado com outros modos de vida, pensei: volto a Dom Pedrito, pego o Canário pelo braço e vamos passear de bombachas pelo centro da cidade. Tarde demais. Meu pai morreu enquanto eu esperava um navio em Lisboa.

Minha primeira viagem foi para Dom Pedrito. Sessenta quilômetros de bicicleta em estrada de barro e areia, em geral a bicicleta me transportava, por outros quilômetros eu a carregava. Senti um nó na garganta quando pisei pela primeira vez solo europeu em Barcelona, perdi a voz quando vaguei pelo Saara argelino, mas Dom Pedrito foi pura decepção. Eu esperava demais do que seria uma cidade. No campo, lia contos de fadas e revistas em quadrinhos, adaptações das histórias dos Grimm, das Viagens de Gulliver e das Mil e Uma Noites. Tinha uma idéia da cidade como algo dourado, resplandecente, de preferência com torres e minaretes. Dom Pedrito era mais para branco e cinza que para amarelo. Que lembrasse minarete, só tinha uma caixa d’água, e das mais gordas. As cidades de sonho, Paris, Estocolmo, Veneza, Amsterdã, Salamanca, Cuenca, só fui conhecer bem mais tarde. Como também Praga. Diria hoje que a capital da ex-Tchecoslováquia, amarelecida por um sol hibernal, correspondia a idéia que, lá na campanha, eu fazia de uma cidade.

Dom Pedrito foi sempre atrito, a começar pelas bombachas. Logo adiante, o conflito religioso. Nas Três Vendas, fui catequizado pela mulher de um fazendeiro uruguaio. Doña Chichi vivia rezando para que Deus iluminasse o prefeito de Dom Pedrito, que o inspirasse a encascalhar a estrada do Ponche Verde, para que Dom Soilo pudesse escoar suas safras. Mal cheguei na cidade, caí direto na Congregação Mariana, criada pelo padre Antônio Paul, vigário de Dom Pedrito e diretor do Colégio Nossa Senhora do Patrocínio. Naquela época, acreditava piamente em Deus, Cristo, virgindade de Maria e outras potocas. Como sempre levei minhas crenças a sério, acabei assumindo a presidência da congregação e não conseguia admitir certas contradições à minha volta. Meus congregados comungavam aos sábados, dia consagrado a Maria, e acordavam no domingo em um bordel. Com aquele ímpeto messiânico que contamina todo cristão novo, estabeleci meu silogismo. Dom Pedrito era uma cidade fundamentalmente católica. A Igreja considerava pecado sexo fora do matrimônio. Logo, vamos acabar com a prostituição. Se não no país, pelo menos na cidade. Eu fazia na época uns três ou quatro programas semanais na Sulina - então Rádio Ponche Verde. Através deles, conclamei a comunidade a acabar com a peste.

Coberto de ridículo, não conseguia ir de casa até o ginásio sem receber vaias ao longo do caminho. Padre Antônio não julgou de bom tom minhas arengas –"se não houver prostituição, que vai ser das empregadinhas?". No fundo, o mesmo argumento de São Tomás e Santo Agostinho, a idéia de uma cloaca por onde se escoam os detritos do castelo. Meus programas radiofônicos foram cortados, a matrícula no ginásio cancelada e a Congregação Mariana fechou pra balanço. Foi meu primeiro feito, acho: por uma busca de coerência, acabei com aquele clubinho de adolescentes que, por pressão das mães ou dos padres, fingiam cultuar a virgindade de Maria. Busquei refúgio em Santa Maria, no colégio Santa Maria, dirigido por irmãos maristas, Maria sempre me perseguindo. O trauma havia sido de tal porte, que nos primeiros dias na cidade, mal via um grupo reunido numa esquina, por um reflexo condicionado adquirido em Dom Pedrito, ficava tenso à espera de insultos. Com o tempo, passou.

Para quem não saiu da província, o culto mariano pode parecer superstição de cidades interioranas. Viajando e lendo, vê-se que é mais poderoso mito do Ocidente, base de todo o cristianismo. A Igreja romana pouco se preocupa quando alguém nega Deus, afinal restam os que nele crêem. Se alguém põe em xeque a infalibilidade do papa, não faltam multidões que a têm como dogma. A pedra de toque do catolicismo, e ao mesmo tempo seu ponto mais frágil, é o hímen de Maria. A partir do momento que se aceita a idéia de uma mãe virgem, todos os demais absurdos têm portas abertas.