¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, fevereiro 17, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (IV)

Cidadãos dos anos 90, tivemos o privilégio de assistir à morte de uma grande religião, com pretensões milenaristas, que não chegou a durar um século, o marxismo. Caiu o Muro de Berlim e permanece incólume o cabaço milenar de Maria. No dia em que se esfarelar teremos uma perestroika no Vaticano. Se não era virgem, porque não teria tido outros filhos, como realmente teve? E quem a teria deflorado? José não foi, já nos diz a Bíblia. A única hipótese histórica. aventada por Celso, é um soldado romano chamado Pantera. Se o pai era um soldado romano, o filho já não é mais de Deus.

Falar em Maria, cabe registrar pelo menos um fato, acho que insólito, nas instituições de ensino gaúchas. Cheguei maturrango em Dom Pedrito, sem conhecer as práticas urbanas. Masturbação, fui saber como é que era no Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, na época dirigido pelos padres oblatos e exclusivamente masculino. Diga-se de passagem, era ridicularizado não só por usar bombachas, mas também por não me masturbar. As aulas, conforme a cumplicidade do padre professor, eram alegres festivais de masturbação. Só então vi como se fazia a coisa. Adolescentes em plena descoberta do sexo, cada tarde eram três quatro orgasmos per capita, sem trocadilhos. A turma toda se masturbava furiosamente, enquanto o professor, suponho que deliciado, fingia dar sua aula. No final da tarde, um odor intenso de esperma –que não poderia passar despercebido nem mesmo para um anacoreta – flutuava pela sala. Se a separação por sexos na escola tinha por fim evitar os pecados contra a carne, a estratégia foi contraproducente. Os padres que hoje respondem processos por pedofilia, certamente jamais ouviram falar daquele Éden pedritense, o colégio Patrocínio.

O bordel acabou no início dos anos 60. Com a encampação do colégio pelo Estado, meninas e professoras passaram a ser admitidas, e só então adquirimos uma certa civilidade. Daqueles dias, restam-me duas cenas felinianas. Uma, antes da encampação do colégio. Em um daqueles concursos diários de ejaculação, um dos alunos exagerou em sua arte, ultrapassando os limites daquela hipocrisia tácita entre professor e discípulos. Foi expulso da aula. Acontece que o virtuose se chamava Caim. Até hoje não consigo esquecer o rosto vermelho do padre Lourenço van der Raadt, dedo em riste, furibundo: "Caim, pegue os livros e vá para casa". Tenho certeza que foi com aquele mesmo gesto e mesma ênfase que o anjo do Senhor expulsou Adão do paraíso.

A outra cena ocorreu na fase pós-masturbatória (mas não muito). Chegou de Porto Alegre uma professora de biologia, um par de coxas fenomenais, nem um pouco mesquinha em exibir seus dotes. As turmas já eram mistas, aquela aisance dos tempos dos oblatos era nostalgia. As meninas, o freio civilizatório, estavam ali, a nosso lado. À frente, aquele vale profundo, sombrio, entrevisto sob a saia, antevisão de uma Canaã de leite e mel abundantes. A ala masculina perplexa, com olhar de peixe morto. Ela, ou pelo menos sua metade que ficava acima da mesa, distante e impassível, como se nada tivesse a ver com o que exibia lá embaixo. Um belo dia, resolveu provocar:
– Senhor Cristaldo, suba ao estrado.

Vermelho, de mão no bolso, obedeci à intimação, de costas para as meninas, olhar fixo no quadro negro. A pedagoga, coxuda e implacável, fria como navalha:
– Senhor Cristaldo, vire-se para seus colegas.
Mais o golpe de misericórdia:
– E por favor, senhor Cristaldo, tire as mãos do bolso.
Saudades daquela professora! Sempre fui bom em biologia, que aula dela eu não perdia.

Padre Lourenço, professor de inglês, por várias semanas nos lavou a alma. Mal havia chegado da Holanda, a turma inventou de chamá-lo de Padre Bicha. Se com pertinência, não sei. Sem conhecer nada de português, cada vez que entrava na aula era saudado com um sonoro "Padre Biiiicha!" Julgando que se tratava de um apelido carinhoso, ria feliz e sacudia as mãos juntas sobre a cabeça, como um atleta ao celebrar um gol. Pelo menos até o dia em que conheceu melhor as nuanças do português. O homem entrou na aula vermelho, o rosto entumecido pelo sangue. Nossa tradicional saudação ficou na garganta. Foram duros os meses pela frente.

A experiência de colégio masculino só serviu para realçar a importância da presença feminina. Mesmo hoje, dou meia volta se ao entrar em um bar vejo um clube exclusivo de machos. Meus – como direi? – companheiros de sexo são em geral abomináveis quando reunidos longe do olhar feminino. A presença de uma mulher – pode ser a cozinheira do boteco – ameniza qualquer ambiente e faz com que os machos mantenham uma certa postura civilizada.