¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 15, 2004
 
MARÇO EM MADRI



O atentado teve características modernas. Pela primeira vez na história do terror, tivemos o espetáculo surreal de dezenas de celulares tilintando nos corpos dos cadáveres.

Há um certo tipo de vespa, chamada escavadora, cuja fêmea deposita os ovos fecundados em um sulco exaustivamente cavoucado e, junto com os ovos, deposita também no sulco a nutrição destinada às futuras larvas. Depois recobre tudo e volta periodicamente a visitar o ninho submerso.

Ocorre às vezes que uma outra fêmea, na sua ausência, deposite os seus ovos e nutrição em um sulco muito próximo, ou quase no mesmo sulco. Em tais casos se desencadeia uma luta furibunda entre as duas fêmeas, que continua até que uma delas abandone para sempre o ninho submerso. A fêmea vencedora não é aquela que depositou no ninho mais ovos que a outra, nem a mais robusta nem a maior das duas. A mais combativa, e por isso vencedora, é quase sempre aquela que mais trabalhou na escavação e que depositou no ninho mais alimento para a prole. Submerso é, pois, não só o ninho, mas o investimento em trabalho e material que isso representa.

Escrevi isto há quatro anos, para tentar explicar as ações do ETA. Os bascos têm uma autonomia política invejável, gozada nem mesmo pelas Länder na Alemanha, com idioma, escolas e polícia própria. Mesmo assim, alguns celerados continuam matando, com pistolas, bombas e carros-bomba, desde militares, políticos e autoridades a pessoas comuns – e estas constituem a maioria dos assassinados – na luta por um Estado próprio. Agora não há como parar, me dizia um amigo basco. Pesa muito o sangue todo derramado. Em suma, a lei do esforço submerso. Já que assassinou quase um milhar de espanhóis em suas três décadas e meia de trajetória, o ETA tem de vencer.

Leitores me cobram, perguntando se não vou escrever sobre o atentado em Madri. Escrever o quê? Encher uma página reiterando a infâmia do terrorismo, deplorando os mortos, clamando por punição? Isto é o que está fazendo a imprensa do mundo todo. Exceto, bem entendido, alguns panfletos sem crédito algum, que sempre defendem o terror.

Caberia, isto sim, relembrar as insuspeitas origens do grupo terrorista, que jornal brasileiro algum ousa lembrar. Os bascos são profundamente católicos, escrevi na época. O ETA, como poderia parecer à primeira vista, não se origina na filosofia sangrenta dos marxistas, embora a tenha adotado. Apesar de ter recebido treinamento na Argélia, nasceu em igrejas e seminários. Tem a proteção da cúria e clero basco e em sua lista de anjos tutelares estão padres, bispos, cardeais e mesmo um papa. Monsenhor José Maria Setien, bispo de San Sebastian e o cardeal Enrique Vicente y Tarancón foram ardorosos defensores dos terroristas etarras. Este último cardeal defendeu junto ao Vaticano uma clemência papal para onze condenados à pena capital, e Paulo VI ameaçou excomungar Franco e mais 31 autoridades do governo caso levasse a condenação a cabo. Se os etarras contam com a benevolência até mesmo do Vaticano, conseguem matar com a serenidade dos justos.

Há quem atribua o atentado à Al-Qaeda. É uma lógica interessante. No dia 31 de dezembro de 2000, dois etarras transportavam 130 quilos de explosivos para Madri, com os quais pretendiam cometer vários atentados naquela tarde, em diversos centros comerciais da capital. Foram capturados pela polícia.

Nas vésperas do Natal passado, dois outros terroristas da ETA foram presos com 50 quilos do explosivo titadine, que se preparavam para explodir a estação ferroviária de Chamartín. Uma das bombas foi embarcada no trem Intercity, de Irún a Madri, que foi detido na estação de Burgos, onde o artefato foi desarmado. O trem chegaria a Madri às 15h12. Um segundo pacote bomba foi encontrado no mesmo trem, antes de partir de San Sebastián. Estava programado para explodir às 15h55, 40 minutos após a chegada do trem na estação de Chamartín.

Neste 11 de março, 13 bombas explodiram em quatro trens, matando 200 pessoas e ferindo 1.500. Donde se conclui que a responsabilidade do atentado é da Al-Qaeda. O silogismo é, no mínimo, original. O ETA fracassa em duas tentativas letais de massacre. Quando acerta, a responsabilidade é dos árabes. Admitamos até mesmo que a Al-Qaeda tenha a responsabilidade do atentado. Nada mais fez senão uma sinistra gentileza aos confrades do terror, ao consumar um massacre dos bons, há muito planejado pelos etarras.

A grande imprensa, mesmo manifestando sua sagrada indignação contra o terror, tem suas simpatias pelo ETA. As esquerdas do Ocidente sempre olharam com olhinhos cúmplices para o terrorismo de esquerda, não importa em qual país ocorra. Quem não lembra a carta de Hebe de Bonafini, a líder das Madres de la Plaza de Mayo, apoiando o terror basco? Aliás, esta senhora, foi uma das primeiras a louvar o atentado às torres gêmeas. Assumir o atentado como sendo obra do ETA, seria dar força ao primeiro-ministro José Maria Aznar nas eleições deste domingo, logo a Aznar que vem lançando um ataque devastador contra o terror na Espanha.

Os que hoje querem atribuir o atentado à Al-Qaeda, são os mesmos que no 11 de setembro de 2001 aplaudiram a Al-Qaeda pelo atentado em Nova York. Já que o terror muçulmano se orgulha de grandes carnificinas, põe-se em sua conta o 11 de março em Madri. Este débito não vai prejudicar em nada a sólida imagem da organização. Ao mesmo tempo, salva-se a cara de nossos terroristas domésticos, cá do Ocidente, heróicos militantes por uma pátria própria, que contam inclusive com o insuspeito apoio da Santa Madre Igreja Católica. Melhor ainda, com o apoio do guru das esquerdas ocidentais, el Líder Máximo del Caribe, comandante Fidel Ruz Castro, que recusou-se a assinar uma declaração de repulsa ao terrorismo – particularmente ao ETA – na última reunião de cúpula dos países ibero-americanos, realizada há três anos no Panamá.

Leia-se o manifesto em que a Al-Qaeda reivindica o atentado. Após um protocolar “Em nome de Deus, clemente e misericordioso”, o resto todo do texto é de estilo obviamente ocidental. Ou alguém imagina que um texto árabe comportaria uma expressão tão prosaicamente nossa como “Agora, colocamos os pingos nos is”?

Desde o 11 de setembro, esperava-se um atentado de porte nas capitais européias. Paris, Londres e Roma, por serem alvos mais emblemáticos, viviam desde então períodos de tensão. As comportas estão agora abertas para o terror. Como impedir que psicopatas plantem quilos de dinamite em centrais de metrô como Puerta del Sol ou Chatelet? Ou mesmo nos terminais rodoviários das capitais européias? Controlar cada passageiro que entra em cada estação de metrô ou trem? Impossível. Massacres espetaculares nos esperam nos próximos anos.

Os terroristas bascos – ou muçulmanos – optaram por capitalizar o sangue. A História passa a ter um trágico sentido: mate à vontade e a vitória será sua. É a filosofia das vespas escavadoras. Ocorre que estas vespas travam um combate singular, onde há apenas um ou dois adversários. Diferente é lutar contra Estados organizados. Hoje, as bodegas, restaurantes, teatros e shoppings de Madri já estão repletos, como se nada tivesse acontecido. O assunto será um só, é claro, e um vago sentimento de medo estará pairando no ar. Mas o ser humano se adapta a tudo, até mesmo ao medo.

Da mesma forma Nova York. Salvo a dor dos parentes das vítimas, a vida continua. Os psicopatas podem matar à vontade. Provocam sofrimento, é verdade. Mas jamais desestabilizarão os Estados do Ocidente.

Os socialistas venceram as eleições deste domingo. Não podem negar que os 200 cadáveres foram providenciais.