¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 01, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (VI)

O choque anafilático ocorreu na primeira reunião que participei no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas. Duas alunas, quartanistas de Letras, pediam ao Departamento um professor para explicar-lhes o que era sujeito e predicado, que até então elas desconheciam o que fosse. Perplexo, eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo, nem como elas haviam sido admitidas na universidade. Pior ainda, estavam se formando e já praticamente habilitadas a exercer o magistério.

Nestas ocasiões, sempre costumo evocar o professor Hugo Brenner de Macedo, dos dias de ginásio em Dom Pedrito. Certa vez cortou dois pontos numa prova de geografia, só porque um aluno escreveu feichão. Fizesse isto em Florianópolis, talvez nem dez por cento de meus alunos da universidade chegassem ao final de um semestre. Ainda em geografia, lembro do professor Hugo: "isso aí de rios, lagos, montanhas e cidades, vocês olham nos livros, está tudo lá. Nós vamos falar do que realmente importa, a geografia econômica, o empenho das nações pelo seu abastecimento, as trocas e lutas geradas pela necessidade de comer". Acabou cassado pelos militares.

Apesar do dogma e do catecismo, impostos a martelo, o Patrocínio forneceu a seus alunos uma educação de elite. Sempre me sinto um pouco dividido ao falar dos padres que foram nossos mestres. Por um lado, eram europeus arrogantes, déspotas esclarecidos. Sentiam-se como seres de uma civilização superior trazendo luzes aos silvícolas. (Luzes de uma galáxia extinta, medieval, não as luzes da Europa moderna). Por outro, com eles aprendi línguas, tive janelas abertas para o mundo. Os livros que nos proibiam sempre constituíram indicações bibliográficas excelentes, garantia de boas leituras. Em Santa Catarina, tentei usar este recurso, por vezes desaconselhava vivamente um livro, com certa indignação, para ver se os alunos o liam. Lá na ilha, nem assim deu certo.

Ao defender tese em Paris, não pude deixar de evocar Maria Veiga Miranda, que me introduziu com carinho quase materno nas guturais do francês. Não terá sido por acaso que este clima pedritense produziu um dos mais ágeis poliglotas brasileiros, o Carlos Freire. Na penúltima vez que falei com o Freire, ele já dominava cerca de quarenta línguas, que iam do ioruba ao swahili, passando pelo russo e árabe, chinês e ucraniano. Nestes últimos anos, o professor gaúcho se dedicou a um empreendimento insólito em língua portuguesa e mesmo nas demais línguas, a tradução de sessenta poemas de sessenta idiomas diferentes. A antologia está pronta e espera editor.

Falava da Bíblia. Em umas férias no Upamaruty, me encerrei por uns três dias no quarto de nosso rancho, Bertrand Russel de um lado, a Bíblia de outro. Teria uns quinze anos. Meus pais achando que eu havia "treslido", como ocorreu com Don Alonso Quijana. Comia no próprio quarto. Só saía forçado por necessidades fisiológicas ou para cavalgar na madrugada, sob um céu crivado de estrelas, que ao homem urbano não é dado ver. Naquelas plagas, tal comportamento não era exatamente sinônimo de higidez mental. Cavalo é instrumento de trabalho, meio de transporte, não pretexto para desvarios metafísicos.

Ao final dos três dias, estava livre de Deus e de todo pacotaço ético que os padres carregam sob o sovaco. A Bíblia era um livro muito maior do que pretendiam os catecismos do Vaticano, sempre preocupados em controlar a vida sexual dos católicos, perversão papista que até hoje, às portas do novo milênio, continua sendo a pedra de toque de João Paulo II. Foi doloroso no início, naqueles dias havia morrido em mim qualquer esperança de paraíso, vida eterna, transcendência. A vida perdeu todo e qualquer sentido e andou me rondando a idéia de suicídio. O que também era absurdo. Se a vida não tinha sentido, a morte muito menos. Algo assim como uma nevralgia prolongada. Como toda dor de dente, acabou passando.

A libertação do cristianismo deveu-se em boa parte à sexualidade submetida a uma camisa de força. Os catequistas nos haviam instalado na cabeça uma maquininha de tortura, a noção de pecado, fundamentalmente ligada ao prazer sexual. Mal cometíamos um "pecado contra a carne", a maricota começava a girar: ofensa ao Cristo, transgressão da lei divina, medo da morte e dos tormentos do inferno, arrependimento e contrição, votos de não mais pecar. Dia seguinte, pecado de novo. Já que havia pecado uma vez, aproveitava para pecar outras, que a absolvição valia para todas. Autoflagelação imediata: a cada masturbação ou relação sexual, um sentimento de medo e desespero me levavam correndo ao confessionário. Particularmente após uma noite de tempestade. Pode parecer megalomania, mas os raios, evidentemente, só podiam ser dirigidos a mim, pecador.

Os padres queriam detalhes, o interrogatório era basicamente obsceno. Hoje, entendo melhor a psicologia dos confessores. Adulto, me descobri um dia falando baixinho com uma parceira, em um momento de muita excitação, sem ter razão alguma para falar baixinho. Por algum mecanismo qualquer da mente do bicho-homem, naquela hora em que a pele do peito começa a avermelhar, a tendência é sussurrar. Hoje, entendo aqueles sussurros em meio à luz macia das igrejas. Eles eram os precursores do sexo por telefone, os castos oblatos.

A tensão insuportável daquela sucessão de gozo e medo, transgressão e arrependimento, humilhação ante o confessor e alegria da absolvição, é tortura que não desejo a ninguém, como tampouco dela absolvo meus algozes. Nestes dias em que tanto se fala de direitos humanos, algum dispositivo qualquer deveria punir como crime contra a humanidade este vício inquisitorial de sacerdote, o de instalar o sentimento de culpa no cérebro de uma pessoa, para que esta se torture a partir de qualquer transgressão a uma ética doentia, inimiga do prazer. Ocorreram dois suicídios inexplicáveis de ginasianos do Patrocínio naquela época, e hoje me pergunto se atrás deles não estariam estes instrumentos de tortura mental.