¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, março 18, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (VIII)


Atritos




Ela surgiu quando eu já vivia em Porto Alegre e passava as férias em Dom Pedrito. Grafo o pronome assim, com maiúscula, que Ela o merece. O nome não interessa, hoje será mãe, terá marido e filhos e talvez não lhe agrade ser citada nominalmente. Os de minha geração a conheceram, os pedritenses mais novos dela terão ouvido falar. Na verdade, surgira antes, em meus dias de Dom Pedrito. Uma das seqüelas da educação em colégio religioso, exclusivamente masculino, é a visão da mulher como um ser de outro planeta. Durante vários anos, tive, tivemos, uma dificuldade atroz na hora de se aproximar de uma mulher e manifestar-lhe o que sentíamos.

Era uma época pré-televisiva e o lazer noturno dos pedritenses consistia no footing em torno à praça General Osório. Das oito à meia-noite, duas correntes humanas percorriam o contorno da praça em sentidos opostos. No entrecruzar de olhares se geravam namoros, ciúmes, casamentos. Nossa distância era tamanha em relação ao outro sexo, que fazíamos apostas em dinheiro para ver quem tinha coragem de abordar uma menina. O pior é que depois de um ridículo "posso acompanhá-la?", nada mais se tinha a dizer, e o footing se tornava um inferno de mudo e mútuo constrangimento.

Levamos bons anos para superar esta deformação. Quando Ela surgiu, oriunda do Mato Grosso, com sangue índio nas veias, sua presença me perturbou, aliás perturbava todos os pedritenses. Locutora da rádio Upacaraí, era onipresente não só na cidade como em toda Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Duvido que, mesmo hoje, pedritense de minha idade tenha esquecido sua voz quente e carinhosa, invadindo campo e cidade, lares, bares e bordéis.

Não poderia dizer minha primeira mulher, pois comecei apaixonado por duas. Por Ela e pela minha Baixinha adorada, que até bem poucos meses me acompanhava. Eram os anos 60, da liberação sexual no país, das leituras de Sartre e Simone de Beauvoir. Casamento e monogamia nos soavam como instituições medievais. Em Porto Alegre, este tipo de relacionamento, se não era usual pelo menos não constituía crime. Em Dom Pedrito, nem precisava ser ménage à trois. Bastava que o casal não fosse legalmente casado e caía nesse círculo de maledicência inerente às pequenas comunidades, onde homens e mulheres, presos à monotonia do casamento, não suportam a idéia de ver uma mulher livre, elegendo um homem sem o ônus dos filhos e vida doméstica.

Em casa, a vigilância dos pais. A mãe d'Ela tornava-se roxa ao ver-me, perdia a fala e espumava, eu temia que a velha guarani tivesse uma síncope. Na praça, a vigilância dos pedritenses, a vontade do abraço ficava na mera vontade, o máximo permissível na época era andar de mãozinhas dadas. Em um período de férias, já mais familiarizado com o bicho-mulher, tomei coragem e enfrentei-a. Nos refugiamos, num pôr-de-sol, no Parque de Exposições Rurais. Ela – que teria dezenas de amantes, segundo a crônica local – era uma menina tímida que sequer havia sido beijada na boca. Sem que nada além disso ocorresse naquela tarde, o parque foi invadido por gentes da vizinhança, gritando atrás das árvores ou casas: "Vai comer aqui ou quer que embrulhe?", e agressões do gênero. Tivemos de abandonar nosso oásis provisório, para fugir ao risco de agressões físicas. Vaiados ao longo da avenida Rio Branco por dezenas de famílias escondidas atrás das janelas, fomos acuados como cães inconvenientes pelo pecado de alguns beijos ao entardecer.