¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, maio 01, 2004
 
DOM PEDRITO: O PÂNTANO COMO FUGA

conto
in Correio do Povo, Porto Alegre, 20/07/1968


- ... ou vais deixar de amar um artista, apenas por temor ao sofrimento e dilaceração que isto implica?

Por ocasião das cheias, o Santa Maria aumenta uns cinco ou seis quilômetros em sua largura. Ao descerem as águas, resta uma várzea lamacenta e extensa. Entardece. Afasto-me com ela da cidade e sentamo-nos diante desse transitório pântano, que exerce curioso fascínio sobre mim. A cidade fica exatamente às nossas costas. Os reflexos não agressivos das poças de água pútrida enviam-nos paz. Uma brisa constante que não dá trégua aos cabelos separa-nos do mau cheiro. O pensamento divaga, do mesquinho ao belo, das minhas possibilidades aos seus vislumbres de amplidão, do silêncio rouco e pensativo de Cíci às minhas mãos claras, punhos negros contra a grama cinza. Estamos deitados num promontório seco, à beira do lodaçal, virados um para o outro, absorvendo o que de plástico o pútrido oferece, distantes dos vinte mil homens secos da cidade. Simples habitantes.

Eu estava fazendo tudo para que minha pergunta fosse a última. Passáramos a tarde conversando. Vã fase das palavras.

Mas como levá-la ao meu pântano particular, sem dizer-lhe? Ela ficara atordoada ante minha última pergunta. Antes de responder-me, quase perguntou para onde iríamos. Apertei-lhe suavemente o braço, dirigindo-a para longe da cidade. Agradeci que sua resposta fosse esquecida. Caminhávamos leves, como se há pouco tivéssemos emergido de um banho total.

Todos os lugares com possibilidades de acolher-nos insatisfaziam nosso consciente desejo de aproximação. Se os nativos vissem-nos de mãos dadas, sua reputação estaria perdida. Visitá-la em casa estava fora de nossas cogitações. Entrar comigo no hotel constituiria demissão do emprego, agressões e abordagens que lhe impossibilitariam a vida naquele pequeno aglomerado urbano. Passáramos a tarde sentados em um antiortopédico banco de praça, desajeitadamente virados um para o outro, sem um lugar decente – e permissível pelos ciosos cidadãos, que sem discrição alguma vigiavam os deslizes éticos de seu monstro sagrado – onde pôr as mãos. Que profunda e carnal percepção da sem-razão humana. Dom Pedrito: uma organização de perfeito funcionamento, visando impedir que um homem descanse a boca no bico dos seios de uma mulher, sem seguir as normas burocráticas usuais do rebanho, estabelecidas para quem quiser descansar a boca no bico dos seios de uma mulher.

Caminhávamos para o ocaso, sedentos de sua paz sanguínea. Tirei-lhe as luvas de couro e aqueci suas mãos. Primeiras palavras da pele. Escapáramos do raio de ação embrutecedor e mesquinho do clima humano pedritense.

Em cinco anos, ela não fenecera. Curioso. Todas as meninas que conheci em seus 15, 16 e 17 anos satisfizeram-se com um lustro de bocas joviais e olhares límpidos. As revi murchas, com vestes horrendas ocultando-lhes as formas, gordos anéis em qualquer dos anulares, ostentados a qualquer despropósito, gestos exemplarmente recatados. Sutiãs quase metálicos, protetores, calcinhas enormes, anti-sensuais, desenhadas sob alguma veste mais justa. Cinco anos. Eu crescera, ela conservara-se viva, a cidade mantivera perfeitamente seu ritmo de declínio. Desejei perguntar-lhe como preservara a saúde do olhar e dos lábios da doença intrínseca ao lugarejo, mas – justiça façamos às palavras – tal idéia era por demais complexa para uma transmissão simpática. Ainda que fracassasse o encontro, prometi-me não repetir o que até então fora meu grande erro.

Os homens todos da cidade, inconscientes de suas impotências, a desejavam. O próprio delegado encarregara-se de virar a terra e carpir o jardim de sua mãe viúva. Pusera inclusive um guarda-noturno à sua disposição para, à noite, acompanhá-la da emissora onde fazia a locução até sua casa. Se todos a possuíam em seus sonhos lúbricos, ocultavam tais desejos sob uma elegante crosta de extrema delicadeza e prestatividade.

O sol venceu-nos na corrida até o horizonte. Eu julgava, sinceramente, impraticável um pôr-de-sol naquela terra. Não gosto de sentir pena dos seres que amo. Ainda bem que a ternura associou-se à piedade que senti, ao notar a avidez com que ela absorvia aqueles raios de luz de uma intensidade provinciana. Uma sensação desagradável invadiu-me ao pensar no que restaria de minhas ambições se não tivesse fugido: aquele pouco era-lhe tudo. Chegados até onde o barro nos permitia, estendi minha japona num lugar seco, delicadamente fi-la deitar e apertamo-nos com fraca força, dizendo-lhe assim o que até então fora impossível.

A brisa pura fazia com que sentíssemos nitidamente os contornos de nossas feições. O sol já bandeara a linha longínqua e a várzea toda mutou-se em cinza. Sapos e grilos iniciaram, numa harmonia improvisada, a bordar o silêncio. Éramos dois pequenos pontinhos negros ante o vento e a várzea, bem menores que seus olhos cor-de-espanto.

Até então eu pensara ser possível uma relativa resistência à ação corrosiva do meio. Nosso relacionamento provou-me o contrário. Há cinco anos, ela fora apresentada a um adolescente tímido, que além de dizer “muito prazer”, disse-o trêmulo, gaguejando ante seu porte, sua voz, enfim, sua força. Apaixonados mutuamente, como bons adolescentes nos relacionávamos com todos, menos conosco mesmos. Ah! Falávamos muito de sexo, amor livre, emancipação da mulher.

Ei-la agora temerosa ante minha voz grave, intimidada com minha calma e desembaraço preguiçoso. Ei-la pequena, mas viva. Fisicamente, eu não crescera até sua altura. Mas o tempo psicológico deu-me maturação mais intensa, longe de meu berço odioso. Ela não pudera fugir, exaurira quase que suas forças na apenas tentativa de não barbarizar-se. Aceradas que estavam minhas faculdades telepáticas, consegui ler em suas faces tristes: “Sonho: longe, só, sem passado. Começar de zero. Amputar, ainda que doendo, as raízes todas. Como se, então nascesse de mim mesma, num consciente e desejado autoparto. Crescer eu só”.

Rocei a boca fechada e imóvel na sua, dizendo-lhe assim certos detalhes que havia omitido no primeiro gesto.

Quando a insultara, na noite anterior (o primeiro encontro após minha longa fuga) não sabia ainda dos problemas psicológicos que a cidade lhe causara. As palavras cruas com que a esbofeteara foram de enorme eficácia terapêutica. Fizeram-na chorar e sofrer. Ela confessara-me alguns namoros, fora inclusive noiva do Evilásio. Estigmatizei-a: “foste imbecil ao ser assim complacente com os imbecis”. Só eu a merecia. Perdoei-a, pois estivera ausente.

Sua doença. Os pedritenses têm concepções bastante diferentes das minhas quanto a esta palavra. Em uma reunião dançante, devidamente anatematizada por mim, ela sofrera um longo desmaio convulsivo, após ter-se sentido gradativamente sufocada. Desmaiara ainda uma outra ocasião, quando seu namorado, ao perder uma pequena disputa intelectual, tentara estrangulá-la. “É claro, não vamos chegar a extremos, mas alguma demonstração de virilidade é necessário darmos à noiva”, justificara-se em voz máscula. Diagnóstico de médicos locais: disritmia. Disritmia ou não, neste nosso encontro, embora eu portasse esses bacilos tão conscientizadores da condição humana, os de Koch, éramos as pessoas mais saudáveis do lugarejo. Dois seres quentes, humanos, conversando sem lógica alguma, absolutamente ininteligíveis pela subvida que fluía, diante de nós, na tarde na praça.

Bem público da urbe, nenhum a possuía, pois todos pretendiam possuí-la. Cada qual atribuía-se direitos a seu corpo do mesmo modo que à sua voz. Seu emprego como locutora a fazia onipresente na cidade, suscitando comentários e alusões no cinza sem calor dos lares, no vermelho tépido dos cabarés, nas horas mecânicas do dia, nos minutos vivos das madrugadas. Se para escutá-la bastava a cada um ligar o receptor e girar o dial, para conquistá-la julgavam-se também todos aptos. Não chegariam a limites extremos, é claro, pois todo pedritense, na acepção lata deste termo, tem lúcida consciência de que o namoro é, não o amor, mas um prelúdio deste. Mesmo assim, reagiam curiosamente quando ela namorava alguém. Agrediam-na e injuriavam-na através de um eficiente ramal de donas-de-casa, sensatas mães de moças-de-família, estas inclusive. Mesmo os senhores casados da localidade sentiam-se então esbulhados. As próprias prostitutas, que com ela simpatizavam bastante, eventualmente não escondiam uma certa inveja cortante. A partir dos comentários, julgando-a amante deste ou daquele bon-vivant local, também julgavam irônico e inexplicável seu acesso a qualquer grupo social.

Há muito o sol se pusera, nem mais resquícios seus restavam, e nós cada vez mais atolados no promontório seco, em nós mesmos e na paz das poças pálidas. Cada veste e cada minuto que caíam nos agrilhoavam cada vez mais a uma espécie de fatalidade imprevista.

Na tarde, quando passeávamos, homens e mulheres aglomeravam-se curiosos atrás das portas de bares e lojas, buscando reconhecer-me. Ao olharmos para alguma vitrine, chegavam a diminuir os passos, na esperança de que voltássemos os rostos antes de cruzarem por nós. Quando, curioso, perguntei-lhe porque gostava tanto daquelas escassas vitrines, ornadas com um mau gosto exemplar, respondeu-me que, de fato, só gostava de uma. Não dos objetos, utensílios de plástico, nem da disposição dos mesmos, mas da profusão e intensidade das cores.

Pena e ternura.

Amo esta cidade quando os seus dormem. Além de Cíci, amei então os cães e os galos. Ladridos agressivos, lúdicos, profissionais. Sem convicção, todos, e por isso os amei, pois a convicção é que dá aos nativos uma ilusão de força. Nus, enrolados nas japonas. Esmago-a com desespero: certas sutilezas que havia esquecido no gesto anterior. A realidade em Dom Pedrito é mais caricatural que a própria ficção. Pela manhã, estivéramos no topo de um monumento intrínseco à cidade, uma colossal caixa-d’água, situada no centro geométrico da praça e da cidade, em cujo bojo funciona uma biblioteca. Conseguíramos as chaves com o gerente da hidráulica local, entramos pela biblioteca, algumas portas, escadas em ziguezague, e saímos num terraço. Dali já dominávamos toda a cidade, mas nossa ambição era maior. Mais algumas escadas, agora verticais, e acabamos trêmulos numa última plataforma de menos de dois metros quadrados de superfície. Estávamos no lugar mais visível de toda a cidade, víamos os comuns sentados nos bancos da praça, em frente ao clube, entrando na igreja, apanhando sol na porta do hotel, trabalhando nos bancos ou repartições. Divisávamos qualquer ponto da cidade e de qualquer ponto poderíamos ser vistos. Mas pedritense algum cogitaria...

Poderíamos ter feito amor naqueles dois metros sobre as cabeças de todos. O lugar mais público e mais discreto. Mas nem beijá-la quis, pois o beijo situa-se no resvaladiço limite entre o desejo e a ternura.

A brisa reboja no pântano, o cheiro é de barro bom. Com toda a ternura selvagem de sua raça na voz, sussurrou:

- Xemboraihu...