¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, maio 27, 2004
 
ISLÃ E PRAZER


Gosto de nadar. Entre outras coisas, porque permite ao pensamento viajar, totalmente dissociado do corpo e do esforço físico. Quando nado, minha mente vadia de lembrança em lembrança, elabora diálogos imaginários e até mesmo esta crônica. Não poucas vezes, me surpreendo pensando no Islã.

Uma vez dentro d'água, nem vejo quem me rodeia. Em alguma pausa na borda da piscina, acabo descobrindo que a meu lado braceia uma menina linda, ela também absorta em seus devaneios. É bastante provável que tampouco tenha notado minha presença. Numa piscina de academia não existe paquera, estamos ali a trabalho. Ou por lazer - como diriam os paulistanos - em sua estranha concepção de lazer. Enfim, trabalho ou lazer, tanto faz. Falava do Islã.

Por que raios um muçulmano não suporta a presença de uma mulher de maiô? Que pecado imperdoável, que ofensa inominável pode ocorrer com o fato de homens e mulheres freqüentarem uma mesma piscina? Entre braçada e braçada, minha mente voa para Varna, cidade balneária do Mar Negro, na Bulgária.

Era 1981, ainda os tempos do socialismo. Foi onde, pela primeira vez, tomei contato com o absurdo. Passei por duas praias, uma ao lado da outra, separadas por um aterro. Uma para homens, outra para mulheres. Alexandra Kolontai, uma das líderes feministas da revolução comunista, deveria estar se revolvendo em sua tumba. De Varna o pensamento voa para Dom Pedrito, aquela pequena cidade da Fronteira Oeste gaúcha, onde, sem revoluções nem maiores pretensões, desde pequeno nadei junto a homens e mulheres, naquela prainha do Santa Maria, pomposamente chamada de Chiquilin's Beach. Eu era feliz e não sabia.

A televisão por satélite é proibida em vários países árabes. Imagino que uma singela imagem de Copacabana ou Ipanema faça estremecer as bases do Islã. Serão os seres humanos tão distintos entre si, que cá nos trópicos possam conviver quase em pêlo nas praias e algumas latitudes adiante isto seja crime?

A última reivindicação dos muçulmanos na Europa é piscina separada para homens e mulheres nas escolas francesas. E os muçulmanos já são cinco milhões na França. Mais um pouco e estes senhores pretenderão proibir o vinho. Não nos iludamos. Tivessem os árabes que vivem na França poder para tanto, não hesitariam em proibi-lo. Islã e prazer até hoje não se entenderam.

Confesso jamais ter freqüentado piscinas em meus dias de Paris. Tais discriminações não deveriam, a rigor, afetar-me. Mas me sentiria muito mal flanar por um país - do Ocidente, é claro - onde pessoas fossem separadas por sexo nas piscinas. Como me senti mal em Varna, se é que a Bulgária pode ser considerada Ocidente.

Por essas e por outras, falei sobre as razões que tornam a morte bem-vinda. Mas não se preocupem meus afetos, nem se alegrem meus desafetos. Não é pra já. Enquanto a voz esganiçada do muezim não sufocar o bimbalhar dos sinos, a Europa valerá ainda muitas missas. Mas que está ficando triste, isso está.