¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, maio 07, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XII)


Havia em Dom Pedrito uma pequena biblioteca no prédio da Prefeitura. Pequena, mas bem nutrida. Lá, degustamos Cervantes e Platão, Balzac e Maupassant, Diderot e Descartes, para desespero dos oblatos. A Biblioteca dos Séculos, coleção editada pela Globo, de Porto Alegre, era nossa festa. Adolescentes, provavelmente não chegamos a entender muito bem estes e outros autores. Mas deles ficou algo importante: havia muitas maneiras de se ver o mundo, quase todas divergentes, todas com maior ou menor parcela de razão.

Os livros, em silêncio, mostravam-nos que não havia Deus, mas deuses, ou quem sabe até mesmo nenhum. Não havia a Lei, mas leis que mudavam mal se avançava na geografia. Não havia uma ética absoluta, eterna e imutável como um teorema, mas diferentes sistemas morais, que variavam conforme as épocas ou coordenadas. Em suma, morria o Dogma e crescia a Dúvida. "Divertida Justiça que um rio limita, erro aquém, verdade além dos Pirineus", disse alguém, hoje não saberia dizer se Pascal ou Voltaire, Rousseau ou Diderot. Mas a frase ficou. Não sei como reagiria hoje um adolescente à leitura de Cervantes. Mas ainda mexem comigo as palavras do Quixote, quando monta no Rocinante e sai mundo afora a desfazer tortos:

Dichosa edad y siglo dichoso aquel donde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse em bronces, esculpirse en mármoles y pintarse en tablas, para memoria en lo futuro. Oh tú, sabio encantador, quienquiera que seas, a quien ha de tocar ser cronista desta peregrina historia! Ruegote que no te olvides de mi buen Rocinante, compañero eterno mío em todos mis caminos y carreras.

Dom Pedrito deve seu nome a um fidalgo espanhol contrabandista, Don Pedro de Ensuateguy, que teria estabelecido no rio Santa Maria sua passagem, o Passo de Dom Pedrito. Não será por acaso que o Quixote chegou às nossas mãos, a fronteira gaúcha sempre esteve mais próxima da cultura hispânica que da brasileira. (É possível que hoje, a televisão do centro do país tenha recuperado aquela região para o Brasil). Em Gaúchos e Beduínos, Manoelito de Ornellas – excelente ensaísta gaúcho, relegado ao pó das bibliotecas – desenvolveu a fundo esta tese, o gaúcho platino como um espécime oriundo do mundo arábico, via península ibérica, e por isso foi ostracisado do mundo acadêmico. Viajando pelos descampados da Mancha, vi o Quixote mesmo sem ver ninguém nas estradas. Ele, ou seu espírito, vagavam pelo planalto, eu o vi, juro que vi, em cada curva de estrada. Só um analfabeto poderia vagar pela Mancha sem vê-lo.

Nos 80, lecionando em Florianópolis, recebi de aluna uma das raras gratificações que tive na UFSC. Ela se queixava ao colegiado que, antes de minhas aulas, tinha certezas. Que depois delas estava confusa, não sabia mais em que acreditar. Ao tomar conhecimento da queixa, me senti feliz e plenamente professor: eu havia derrubado nela as crenças oficiais, aquelas mentiras tradicionais que pais e professores em geral transmitem a filhos e alunos, tipo Deus é um só e tu vais casar bonitinho na igreja, de véu e grinalda, Deus é único e o teu marido também, Deus existe e o aborto é um crime. E outras que tais.

Esta é, a meu ver, a função principal do magistério, está lá em Sócrates e em sua maiêutica, está em Swift e em seu humor corrosivo, em Nietzsche e sua luta contra o deus cristão. "Considero que, pelo menos junto a um aluno, cumpri minha função de mestre" – respondi a meu perplexo interlocutor, o chefe de departamento. Verdade que jamais coloquei em dúvida o teorema de Pitágoras, afinal estamos no campo dos axiomas. Já o resto me parece discutível.