¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, maio 26, 2004
 
VENEZA


Quem viaja guarda não poucas imagens na retina. As mais recorrentes, pelo menos no que a mim diz respeito, não são as de monumentos ou grandes arquiteturas, mas pequenas percepções de fatos aparentemente sem significado maior. De Veneza, por exemplo, não foram as imagens dos canais e pontes, nem mesmo do café Florian ou da basílica São Marco, as que cultivo com mais carinho. Mas sim algo que agência de turismo nenhuma vende, o chiado de meus sapatos nas ruelas desertas daquela cidade de sonho.

Eu viajava com uma amiga macedônia e, embalados por não poucas doses de bom vinho, nos perdíamos com gosto pelos vicolos e canais de uma Veneza noturna e silente. Para sorte nossa, não havia viva alma na rua que nos desse uma informação. Não sei o que pensa o leitor, mas sentir-me perdido em cidade que desconheço é um dos prazeres que mais curto em uma viagem. Bem entendido, perder-se em cidades feias e hostis não tem graça alguma.

Conversando com outros viajores que por lá perderam suas almas, me surpreendi com a coincidência de nossas percepções. O que mais lhes marcara na cidade fora o ruído dos próprios passos. Mas uma viajante de longas milhagens e não menor prudência me alertou: na Europa de hoje, não é muito bom revisitar cidades que amamos em nossa juventude. Já faz um bom tempo que não volto a Veneza, mas, pelo que leio nos jornais, suponho que já não mais consiga ouvir meus passos. A cidade tornou-se uma espécie de museu, percorrida por centenas de milhares de turistas, que pouco espaço deixam ao viajante sem guia nem pressa.

O mesmo está acontecendo nas demais cidades italianas e nas metrópoles européias. Ver a Capela Sixtina ou subir na Torre Eiffel exige paciência de monge e bom preparo físico, pois você, com sorte, terá de esperar duas ou mais horas na fila. Conseguir um hotel em Amsterdã, em final de semana, já é um parto. Ver os cavalos bailarinos de Viena, só reservando ingresso com três meses de antecedência. Uma ópera, idem. E as autoridades do setor de turismo da China nos acenam com a perspectiva de cem milhões de chineses turistando mundo afora, daqui a uns quinze anos. Você já imaginou um por cento dessa turba visitando Veneza?

Mais outros dez anos, e o planetinha terá mais dois bilhões de habitantes. Foi neste sentido que escrevi, na semana passada, sobre as razões que tornam bem-vinda a morte. Houve leitores que viram em mim um enamorado precoce pela Indesejada das Gentes. Nada disso. Apenas acho que a vida será mais bem desconfortável daqui a vinte anos. Honestamente, não me concebo disputando espaço com cem milhões de chineses. Isso sem falar nos dois bilhões de novos condôminos. Há pessoas que não aceitam a morte. Certamente jamais tentaram imaginar o horror que seria este mundinho se desde Adão para cá não tivesse morrido ninguém.