¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 07, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XV)


Um leitor russo ou espanhol, inglês ou francês, tem opções bastantes para buscar autores profundos na própria língua. O leitor brasileiro as tem em termos, terá de refugiar-se em Portugal, em Guerra Junqueiro, Eça de Queirós ou Fernando Pessoa. O endeusamento de mediocridades na literatura brasileira se deve, a meu ver, a essa mania que têm os países com complexo de inferioridade cultural a desenvolver uma literatura nacional. Se existe Brasil, deve existir um cânone brasileiro com seus mitos e gênios.

Vamos então endeusar os nossos, por menores que sejam. Se aproximamos mais a lupa, o panorama se torna ridículo. Em Florianópolis há um cânone catarinense, em Curitiba um paranaense. Não seria de espantar que dentro em breve se exija nos currículos literatura pedritense ou não-me-toquense. Se é que já não se exige.

Ocorre que literatura é tão universal quanto a física ou matemática. Pelo menos até agora os acadêmicos brasileiros não ousaram falar de uma física ou matemática brasileiras. (Na França, foram mais longe: houve época em que se falava em uma geografia burguesa e outra proletária). Quando alguém me pergunta quais autores recomendo na literatura brasileira, não me faço de rogado: Platão, Cervantes, Dostoievski, Swift, Nietzsche, Orwell, Pessoa e por aí afora.

Ora, direis, estes não são autores nacionais. Pois a meu ver, são. Estão traduzidos, fazem parte do imaginário nacional, logo são tão brasileiros quanto Machado ou Rosa. Mesmo que não fossem, pertencem ao acervo universal e não temos o direito de ignorá-los. Por que não considerar Cervantes ou Balzac como escritores brasileiros? Tratam do ser humano e seus personagens invadem nosso dia-a-dia. Dom Quixote é mais conhecido no Brasil do que Braz Cubas, gerou inclusive um adjetivo, quixotesco, aliás presente em outras línguas de cultura. Balzac também. O português é a única língua que define a mulher de trinta anos como balzaquiana. Deu até samba: "Balzac acertou na pinta, mulher só depois dos trinta".

Quando se fala em vinho ou uísque, a preferência recai sobre vinho ou uísque importados. O mesmo vale para carros ou aparelhos eletrônicos. Mas quando se trata da bendita literatura, ela tem de ser nacional.