¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, junho 12, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XVI)


Autores brasileiros hoje em moda, mais por suas posições ideológicas que por qualidade estética, morrerão literariamente em breve, se é que já não estão mortos e nenhuma alma caridosa ousou avisá-los. Da mesma forma que matemática é matemática ou não é matemática, literatura é literatura ou não é literatura. A brasileira, pelo menos como está sendo hoje difundida, é uma vaca leiteira que amamenta generosamente os editores, professores e críticos de literatura brasileira. Fora honrosas ilhas - acrescente-se aqui um Mário Quintana e um Aníbal Machado, sem pretender esgotar a lista dos poucos e bons - é vaca e nada mais. Se algum pai quiser um dia afastar o filho do gosto pela literatura, basta encaminhá-lo a um curso de Letras.

Literatura é boa ou má, profunda ou superficial, e estamos conversados. Nada impede que um escritor tente definir seu país. Que mais não seja, raramente consegue definir outro que não o seu. Se nessa tentativa, particularmente nestes dias em que o planeta virou aldeia, quem nada disser ao leitor distante, ao estrangeiro, fracassou. Dostoievski é um escritor russo, correto. Mas também japonês, brasileiro ou argentino.

Adelante! A Bíblia é um livro profundamente nosso, afinal vende aqui mais que qualquer best-seller americano ou mesmo nacional. Jeová, Lúcifer, Adão, Eva, a serpente, estes personagens das ficções hebraicas, estão entranhados no consciente e inconsciente de todo brasileiro, seja de um acadêmico gaúcho ou de um cangaceiro nordestino, seja no bestunto de uma passista de escola de samba como no de um empresário. Estão em Guimarães Rosa e na literatura de cordel, no cinema de Glauber Rocha e no imaginário tanto do cardeal Vicente Scherer como no de minha faxineira. Deus, por exemplo, é o personagem literário mais universal, conhecido tanto por intelectuais como pelo mendigo caído na sarjeta.

Tenho quatorze bíblias em minha biblioteca, quatro em papel, nove em CD-ROM e uma no disco rígido. Gosto de trecheá-las e comparar as traduções. O primeiro livro eletrônico que inseri no computador foi uma Bíblia. Pareceu-me emblemático inserir o livro mais antigo na máquina mais moderna. Sem falar na rapidez de leitura. Em segundos, fico sabendo que no Novo Testamento usa-se oito vezes a palavra cavalo, trinta a palavra sol, lua dez vezes, égua uma só e gato não existe nem pra remédio. Não falta quem se surpreenda com esta coleção e julgue que vivo uma crise religiosa.

Nada disso. Após ter deixado de ver a bíblia como a palavra divina, me agrada degustar esta antologia contraditória e mal-costurada, mescla de história e ficção desenvolvida ao longo dos séculos, uma tentativa nada desprezível do homem primitivo de entender o universo que o envolvia. A prova definitiva de que Deus não existe é a Bíblia. O personagem é tão contraditório, mal construído e pouco convincente, que só pode ser obra da mente humana.

O crente jamais lê várias bíblias. Lê uma só, a que melhor convém à sua seita, e as demais versões são obras do demônio. Ler várias é requinte de quem não crê.