¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, junho 26, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XVII)


"Tu estás contra toda tua geração", disse-me há boas décadas o Aníbal Damasceno Ferreira, este obscuro pesquisador a quem devemos a descoberta de Qorpo Santo. No que não deixava de ter razão. Mesmo assim, a frase me surpreendeu, afinal nunca tive vocação para original. Por geração entendia nossos contemporâneos que lêem, escrevem, discutem e lutam por suas idéias, e este é o conceito utilizado ao longo desta reflexão. Panta rei. Nada como uma década depois da outra para se passar a entender o que antes era ininteligível.

Anos mais tarde, um outro amigo gaúcho me confessava desolado: "Minha geração fracassou". Eu, perplexo. Tínhamos a mesma idade, tentamos salvar o mundo, logo nossa geração era a mesma. Não me sentia fracassado, muito antes pelo contrário. A visão de mundo que defendi, desde que me conheço por gente, triunfava no Ocidente. Nossa geração ganhou a parada, retruquei.

Cada frase depende de sua circunstância. Mais ainda, de por quem é proferida. Este último diálogo ocorreu nos dias da queda do Muro de Berlim. Meu amigo havia militado no PC. Verdade que abrira os olhos bem antes da revolução do Nove de Novembro. Mas marxismo é como caxumba. Ou dá na idade certa, ou deixa seqüelas. Passei então a entender a afirmação do Damasceno. Não havia percebido que a minha, a nossa geração, era fundamentalmente marxista, mesmo sem ter lido Marx.

Inclusive eu. Em meus dias de adolescente em Dom Pedrito, mesmo sem conhecer história ou geopolítica, stalinismo ou guerra fria, eu detestava Tito, Franco e Salazar. Não tinha a mínima idéia do que fosse Iugoslávia, Espanha ou Portugal, muito menos do que significasse Europa ou a finada União Soviética. Mas já sabia a quem insultar. Do alto de minhas tribunas na sedizente Capital da Paz, na arrogância dos quinze anos, sem conhecer nem mesmo Bagé, eu julgava e condenava a "sifilização" ocidental e cristã.

Mais tarde estudei história, particularmente história da filosofia e história da arte. Há mais distância entre arte e filosofia do que nosso vão cientificismo presume. Posso hoje ler a Arte de Amar, de Ovídio, ou o Quixote, e estes livros permanecem sempre verdejantes, porque nascidos da emoção. As filosofias, frutos da razão, se destroem umas às outras, e dogmas existem apenas para gerar hereges. Quem estuda história sabe que verdade é algo relativo ao espaço e tempo em que foi enunciado. Desde adolescente venho refutando o fascismo eslavo travestido de pensamento científico. Neste sentido, eu de fato estava contra minha geração.

Um de meus primeiros artigos na imprensa da capital saiu no finado Correio do Povo, em 1968: Marxismo Gaúcho Contemporâneo. Era uma sátira aos filhinhos-de-papai oriundos em geral do colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, depois entrincheirados na Filosofia da UFRGS (então URGS), que discutiam a união estudantil-operário-camponesa nas boates da Independência. Filho de camponeses, nascido e criado no campo, sempre julguei ridículas abordagens teóricas sobre o homem do campo, feitas por meninos urbanos de mãos sem calos. Daí meu artigo e suas conseqüências. Fui ostracisado na universidade, com a pecha de reacionário.

Mais ainda: fui encarcerado na calada da noite, por um delegado lotado em Dom Pedrito, que pouco entendia de humor e julgou que meu artigo era uma defesa do marxismo. Passei a noite na cadeia e fui interrogado, no dia seguinte, por cerca de cinco horas. Barbudo, em época em que barba era sinônimo de subversão, tive de ouvir: "você sabe que sua estética externa suscita antipatias?" Sabia. O delegado, candidato a rábula, gostava de aliterações. Era verão e estava pensando em raspar a juba, só não o fiz por ser imposição da "otoridade".