¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 19, 2004
 
DORMIR E RIR
 
Ney Messias
 
 
Conceição Porto Leite foi fotografada, no seu melhor sorriso, pela objetiva do repórter. Não pertence a nenhum trio vocal; não é artista de televisão; nunca escreveu certamente um poema; se falarem para ela de Kant, Hegel ou Marcuse, ficará olhando intrigada para o ar, tentando descobrir onde é que eles têm o seu boteco. Conceição, segundo o repórter, chegou de São Gabriel há uma semana. Não tendo, em parte alguma, parentes ou conhecidos, passa os dias e as noites nos bancos da Estação rodoviária. A polícia já a botou para fora de lá, mas ela volta sempre. Ninguém sabe onde ela come, e todos dizem que não incomoda ninguém: quando acorda fica o tempo todo rindo; depois cansa e dorme novamente. Deve comer nalgum portal, tranqüilamente, a dádiva de umas sobras que o lixo comeria com a enorme boca dos latões. A sucessão de sono e riso, sobre os bancos duros da Estação Rodoviária, mostra que Conceição é uma mulher ocupada; não há melhor ocupação, nesta terra convulsa, em que tanto se canta, em que tanto se mata, do que dormir e acordar sorrindo, os dois momentos mais genuínos da graça da contemplação.
 
O grande momento do homem, segundo o mito, foi o do sono imposto a Adão pelo Criador, para lhe tirar a costela de que fez Eva: se não fosse o sono adâmico, que os anestesiologistas querem que seja a primeira forma de anestesia com fins operatórios, Conceição não estaria ali na sua improvisada cama na rodoviária. Ela é a mulher, linha multiplicada de milhões de Evas que surgiram da costela do Adão solitário, para que houvesse a seu lado uma companhia. Ninguém duvida que, ao acordar vendo a primeira mulher, o primeiro homem tenha esboçado o sorriso inicial do amor, filho do que enxergou nos lábios de Eva: pois a primeira mulher, vendo-se mulher, não podia deixar de sorrir, porque era a festa nascente, a fonte da canção, a rima de todos os versos, o ritmo do primeiro poema e a secreta alegria de ser fecunda como a terra, mil vezes assolada pelos temporais, trezentas mil vezes calcinada pelo sol, bilhões de vezes devastada pelos invernos, e outras tantas vezes fecundada para verdejar na gargalhada dos galhos, para tingir de flores a estrada dos ventos e para estourar na oferta dos frutos. Conceição dorme, e quando acorda ri. Pode ser feia ou bela, jovem ou velha, valente ou medrosa. Conceição pode comer o refugo de algum almoço, ou a varredura de um jantar.
 
Seu banquete solitário, devorado em pé, na soleira de uma vivenda, ou no corredor de um edifício, não é uma humilhação: é um momento ritual subterrâneo, passageiro, que precede o sono sobre o banco da Estação Rodoviária; o sono abandonado de quem dorme na graça de uma liberdade que não está no leito convencional dos quartos de dormir; o sono que é um vôo para o astro do riso, para a bem-aventurança dessa festa muscular da face que se entrega ao mundo aberta e receptiva como uma abreviatura do júbilo celeste. Dormir e sorrir é o que fazem os pássaros, que mergulham, com o sol, na escuridão das noites, para trazerem a madrugada no riso da garganta e na gargalhada inquieta das asas que tecem pelo espaço a velocidade das fugas.
 
Talvez já tenham arranjado para Conceição uma casa, uma cama e uma janela. Em um asilo, ou na furna encantada de um salão de loucos. Não importa: lá onde estiver, Conceição dormirá, acordará para rir e quando ficar cansada do riso, dormirá de novo, o que não deixa de ser (e só os insones sabem) uma forma profunda, secreta e misteriosa de continuar rindo. Não inventei Conceição. O repórter a descobriu. Mas gosto de pensar que ela continuará sempre ocupada em dormir e rir, as mais sérias ocupações que alguém pode ter para não ter preocupações, que são o objeto trágico da Economia Política.