¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 13, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XX)



Em 1962, Osvaldo Peralva, ex-apparatchik do Kominform em Bucareste, lança O Retrato. Peralva conhecia por dentro a máquina de mentiras do PCUS e a revelou tal como era. Ninguém acreditou. Mais recentemente, dois escritores não pouparam o malho nos comunistas. Na área do ensaísmo, Leo Gilson Ribeiro, com O Continente Submerso, anatematizado pela intelligentsia nacional. No jornalismo quotidiano, o genial Nelson Rodrigues. Graças a seu teatro, Nelson conseguia manter-se à tona no mundo das comunicações. Como desmontava a hipocrisia da então chamada classe burguesa, louvado era. Suas crônicas, o melhor do Nelson, sempre foram vistas como seu lado doentio.

No Rio Grande do Sul, desconheço ensaísta que tenha estudado a fundo a influência marxista na cultura gaúcha. No entanto, ela foi forte. Ao lado de um escritor de porte como Dyonélio Machado, temos expressões menores como Lila Ripoll, Laci Osório, Ivan Pedro de Martins, Edith Hervé, Isaac Axelrud, Otto Alcides Ohlweiler, Juvenal Jacinto de Souza, Josué Guimarães. Mais para nossos dias, aí estão Voltaire Schilling, Marco Aurélio Garcia, Luís Pilla Vares, Tarso Genro et caterva. Com a mania que têm os stalinistas de erguer monumentos a si próprios, estes últimos já devem estar planejando futuros bustos, ruas ou fundações com seus nomes. Você já imaginou a desgraça de ver um dia um seu neto marcando encontro na rua Pilla Vares, esquina Tarso Genro?

Estes fatos, que até as pedras da Rua da Praia conheciam, não podiam ser comentados. Ai de quem dissesse em público que estes notórios comunistas eram comunistas. Seria expulso de todos os círculos e proibido nas redações de jornais. Sem falar que portaria pelo resto de seus dias a pecha de delator. Verdade que João Batista Marçal, em Os Comunistas Gaúchos, tentou apanhar o touro pelas guampas. Deu-se mal. Jornalista interiorano, deslumbrado com a ideologia vigente na capital, tentou erguer pedestais a quem só fez por merecer a famosa lata de lixo da História.

Entre estes ilustres equivocados, há um que sempre recordo com carinho. É o Dyonélio. Conhecendo o homem de perto como o conheci, é difícil entender como endossou, durante toda sua vida, o embuste do século. Quando tentava extrair-lhe alguma coisa, o que pensava de Stalin, dos gulags, Dyonélio tirava o corpo fora: "não quero dar argumentos para eles". Preferia falar-me de coisas mais antigas. Dispunha uma Bíblia sobre um atril, apanhava um tomo de Renan e me passava sua interpretação de cada versículo. Atitude idêntica tomou em relação à sua obra. Entregou o Naziazeno (seu personagem mais forte, um pobre coitado torturado pela urgência de pagar um litro de leite) à sua própria sorte e mergulhou na Grécia e Egito de antes de Cristo com tal determinação que chegou a estudar grego e o regime das cheias do Nilo para estabelecer a geografia de seus personagens. Escreveu Os Deuses Econômicos. Para mim não resta dúvida alguma: temeroso de ver seu sonho despedaçado pela truculência real do socialismo, Dyonélio abandonou seu tempo e fugiu a trote largo rumo aos antigos.

Quanto aos demais escritores gaúchos que desenvolveram obra, perdoem-me os cultores de ídolos: de Erico Verissimo a Moacyr Scliar, todos foram omissos na denúncia da peste que contaminou o século. Verissimo constitui um problema para minha geração. Afável, receptivo, carinhoso com todo jovem que fosse visitá-lo, torna-se imune a qualquer crítica. Nélson Rodrigues, que estava longe de sua aura, escreveu: "Nunca me esqueço de Erico Verissimo. Tem tão escassa formação política que é capaz de pensar que somos governados ainda por Pedro II. E o nosso Erico achou-se na obrigação de vir a público meter o pau nos Estados Unidos. No Brasil, o intelectual tem que xingar a grande nação para sobreviver".

Denunciar o regime soviético, na época, era perder espaço nas universidades e na imprensa nacional. Esta sabotagem, eu a vivi na própria pele. Perdi empregos, tribunas, amigos e até mesmo mulheres, por sempre ter dito e escrito o que pensava da utopia soviética. Certa vez, estive debaixo do chuveiro com uma jornalista de esquerda, das mais excitantes, que me afastou de seu corpo com todas suas mãos e um argumento imperativo: "sinto por ti atração física e intelectual, pena que não afinamos ideologicamente". Assim eram aqueles dias.

Um pouco antes da queda do muro de Berlim, em visita a Dom Pedrito, fui visitar um dos melhores mestres que já tive, o professor Hugo Brenner de Macedo. Entre um chimarrão e outro, fui contando o que havia visto nos países do Leste por onde andei, mais o que sabia sobre outros. O professor Hugo me olhava com paciência e ceticismo. Ao final da charla, comentou: "deves receber fortunas fazendo palestras nesse tom mundo afora". Candura de quem não saiu da aldeia: fortuna teria feito se dissesse o contrário, como fortuna fizeram Amado, Neruda, Picasso, Brecht, Sartre e milhares de outros.