¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, agosto 10, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXIV)


Se disser que me eduquei entre putas e comunistas, não estou fazendo nenhum jogo de palavras, como tampouco estou longe da verdade. Em verdade, não gosto da palavra puta, tornou-se pejorativa em seu curso na história. Prefiro falar de profissionais. Liberto das crendices católicas, fui delas me aproximando, com um misto de excitação e temor. Em Dom Pedrito, onde vivia nos cabarés, só conheci - no velho e sovado sentido bíblico da coisa - uma.

No rio Santa Maria, no passo do Don Pedrito, havia duas praias, antes que os arrozeiros destruíssem o rio. Uma destinada às famílias e, à jusante, a do baixo mundo pedritense. Mal descobri a praia das moças, me mudei para lá. Uma bela tarde, pus três delas em uma canoa e remei rio acima, queria levá-las ao universo que lhes era proibido. Navegamos serenamente entre a "gente de família", que aliás se comportou com elegância, sem demonstração alguma de escândalo. A aura execrável que me cercava, de catolicão que um dia pretendera acabar com a prostituição na cidade, transfigurou-se em coroa de louros. Coisa de dez anos depois, encontrei uma daquelas meninas em uma boate de Porto Alegre. Ao reconhecer-me, me levou para sua quitinete e não aceitou pagamento: "tu mereces, reconheci teu rosto, sempre foste um revoltado". Não sei se, algum dia na vida, recebi elogio que me tocasse tão fundo.

Só fui freqüentá-las com certa assiduidade em Porto Alegre. Não desconheço os embates mais ou menos desesperados com as pobres meninas da Voluntários da Pátria ou Riachuelo, nos dias de maior angústia e falta de dinheiro. Em um dos quartos que habitei, escrevi em um mural na parede dois versos de Geir Campos:

Comer o fruto amargo e não cuspir,
cumprir o trato injusto e não falhar.

Duas adolescentes, que apanhei nas proximidades da Faculdade de Filosofia, choraram boa parte da noite ao ler o poema.

Na universidade, a vida sexual tornou-se mais tranqüila. Só havia um problema. Para chegar aos braços de uma menina, era preciso citar muita Simone de Beauvoir, Wilhelm Reich, Henry Miller. Até mesmo com Carmen da Silva, uma feminista tupiniquim, se conseguia alguma coisa. As universitárias, filhas da classe média, teorizavam demais. A liberdade que as universitárias sonhavam, encontrávamos nas meninas que trabalhavam em farmácias ou lanchonetes, sem precisar citar autores europeus. Mesmo quando mais folgado, não traí as profissionais que me haviam aplacado ímpetos quase suicidas nos dias de solidão. Mas mudei de status, freqüentava agora as meninas das boates da Andrade Neves. Delas, eternas saudades. Particularmente de uma noite de festa, em que a aniversariante, uma de minhas preferidas, me elegera como convidado de honra, condição que me era desconhecida.

Levei-lhe uma dúzia de rosas, mal entrei senti que ela tentava conter as lágrimas. Lá estava todo o bordel, mas a atmosfera nada tinha de erotismo. Era uma reunião familiar, com crianças, mães, pais, filhos. Ela estava linda, vestida em patchwork. Entramos na sala de mãos dadas. Apresentações - em verdade desnecessárias, eu era freguês de livreta de quase todas -, brindes, alegria geral. Foi quando chegou um fotógrafo.

Os machos presentes debandaram, uns queriam saber que horas são, "sabe, lembrei que tenho um compromisso", outros se concentravam na cozinha. Na hora de partir o bolo, Carmen me olhou como quem aposta tudo em uma só ficha. Medo bobo. Partimos o bolo juntos, uma mãozinha na outra. Ela quis beijar-me, beijei-a. Por estas fotos, tenho muito carinho. Me imagino às vezes como político, disputando uma deputação qualquer. Um adversário me ameaça com aquelas fotos. Por favor, que as publique na imprensa, em cores e preferentemente ampliadas, que delas muito me orgulho.

Naqueles dias, como dizem os evangelhos, sempre me senti melhor entre as profissionais que em uma reunião de família, e não tenho razão alguma para negar estas preferências. Em família, por mais honesto que seja o relacionamento entre pais e filhos, anfitriões e convivas, sempre há dissimulação e zonas de sombra. Entre elas, a verdade crua do instinto, a ausência da hipocrisia. Naquela noite, enxuguei lágrimas no rosto de Carmen madrugada afora. E não foi só no rosto dela.