¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, agosto 27, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXVI)


Verdade que a Aids empanou os encantos do nobre ofício. Sou de uma geração que não se entende bem com a camisinha. Hoje, em parte por precaução, tenho mantido distância das meninas. Digo em parte, pois há outras razões. Cheguei àquela idade em que uma ópera ou um bom livro consegue me excitar mais do que muita mulher. Teve época em que, se a Kiri Te Kanawa viesse cantar em Porto Alegre e eu tivesse a perspectiva de uma noite com uma menina, a Kiri não contaria comigo para ouvir seus trinados. Era a época da estupidez juvenil.

Há algum tempo - anos 90, ainda na época do fax - percorrendo os classificados que anunciam acompanhantes e massagistas na Folha de São Paulo, encontrei uma que dizia enviar sua foto por fax. Maravilha, pensei, a tecnologia contemporânea a serviço do mais antigo dos ofícios. Paguei para ver. Telefonei pra moça e dei-lhe meu número de modem. Ela foi entrando aos poucos na tela, seu corpo levou seis minutos para chegar todo.

Por alguns dias a tive prisioneira na memória de meu disco rígido, em lingerie, "peitos durinhos e bumbum arrebitado", como anunciava. Telefonei para agradecer-lhe a cortesia, perguntei quanto custavam seus serviços. Cem dólares a hora, me respondeu. E aí a velha profissão perdeu para a tecnologia de ponta. Por cem dólares eu comprava uma enciclopédia em CD-ROM, que me oferecia centenas de horas de aprendizado ou lazer. Sem precisar usar camisinha. Verdade que o sexo sempre valeu mais que a cultura. Hoje, no mercado informal - para usarmos um neologismo - você consegue uma Britannica por 20 reais. Se for buscar naquilo que Marx chamava de Lumpenproletariat, certamente encontrará mulher pelo mesmo preço. Mas aí sexo não é alegria, e sim tristeza. O que está acabando com a prostituição - já disse alguém - é o amadorismo.

Nos dias de Europa, pouco as freqüentei. Um primeiro problema, o abismo entre as tarifas tupiniquins e as de Primeiro Mundo. Como bolsista ou turista, pagaria excessivamente caro por algo que, afinal, no Brasil, é tão bom ou melhor que lá. Em uma passagem por Copenhague, em um sexklubb, uma menina de óculos, com perfil de universitária, me propôs durante um lifeshow algumas carícias orais. Topei. Ao pagá-la, senti-me na obrigação de pedir desculpas. Via-se que não era do ramo e fazia aquilo como bico. Enfim, revendo o episódio a partir destes dias, em que presidentes constrangem estagiárias a felações, não me sinto tão vil. Ainda em Copenhague, tentei uma profissional nas ruas do ofício. I speak a little english, fui avisando. It's enough, me disse a moça. No mundo do comércio, poucas palavras bastam.

Jamais me entendi bem com elas no estrangeiro. A relação com a prostituta exige uma cumplicidade sociológica e até mesmo vernácula. Em Paris, mais para ver como era, visitei duas. A primeira anunciava várias modalidades, desde sexo à espanhola, à francesa, à sueca, à grega e à inglesa. Fiquei intrigado. Já havia vivido na Suécia e nada via de diferente na sexualidade aborígene. A oferta era tão cosmopolita que não resisti. Fui chez elle e perguntei por cada fórmula. À espanhola, sei lá porque, era entre os seios. À francesa, era oral. À sueca, manual, à grega anal. A cada parâmetro, o preço ia subindo. Bom, e à inglesa, como é que é? - quis saber.

Era o mais caro dos menus. Na época, cerca de mil francos. Deveria ser o melhor. Em que consiste? "Eu te algemo na cama, sapateio em cima de você e depois uso um chicote". Merci bien, chérie, nesta altura sou mais um papai-mamãe. O ser humano é mistério profundo. Nunca entendi como sentir prazer na dor. Já os britânicos, parece que entendem.

A segunda, Madame Brouillard, uma felliniana e circunspecta senhora de óculos que fazia ponto na entrada da rua Saint Denis. Em homenagem a Fellini - ou talvez a mim mesmo - contratei-a. Ela me lembra hoje a mais esteatopígica das personagens da Cidade das Mulheres. Em outro giro por Paris, revi Madame Brouillard no mesmo ponto, em um inverno ameno, envolta nas brumas que lhe davam o nome, eterna, hierática e com ar professoral. Claro que eu não ocupava espaço algum em sua memória.

Que mais não fosse, eu não fora à Europa para pagar mulheres. Me sentiria o último dos homens se não as tivesse de graça.