¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, agosto 30, 2004
 
MORTE À VARIG


Não me apraz falar em números quando escrevo. Hoje, as circunstâncias o exigem. Há alguns anos, reencontrei uma amiga gaúcha que há muito não via, e convidei-a para um chope no Brahma, na época em que o Brahma tinha dois bandoneóns, que continuavam tocando até mesmo quando os músicos dormiam. Ela voltava de uma viagem a Portugal e estava inquieta para trocarmos fichinhas. Mal iniciamos a pauta da noite, observei:

- Espero que não tenhas ido pela Varig.

Ela pulou em seus tamancos. "Não vim aqui para ser agredida. Ou mudas de assunto ou vou embora agora mesmo".

Ou seja, ela havia viajado pela Varig. O que me surpreendeu foi a intensidade da reação. Pacientemente expliquei que não pretendia agredi-la. Que se quisesse ir embora, que fosse. Mas isso não me impediria de dizer-lhe que só um viajante burro viaja pela Varig. Ou aqueles patrioteiros furibundos, que insistem em prestigiar "o que é nosso", por pior que seja. Ou ainda aqueles monoglotas atrozes, prisioneiros do idioma, que têm medo até de enfrentar uma aeromoça em espanhol. Ela pagara cerca de dois mil dólares por ida-e-volta. Ora, na época uma boa dezena de companhias aéreas fazia esse trajeto por algo em torno de 800, 700 e até mesmo 600 dólares. E com o que vai de 600 dólares a dois mil, dá pra fazer grandes festas em Lisboa.

Em todo caso, restava o enigma de sua reação violenta. Ocorre que a moça não só fazia psicanálise como estava se analisando com um desses vigaristas maiores que preparam os vigaristinhas menores para o ofício. Essa raça tem uma reação curiosa quando apertados contra a parede: "ou você muda de assunto ou levanto e vou embora". Várias vezes me encontrei em tais situações e, invariavelmente, a moça fazia psicanálise. No fundo, uma nostalgia da ditadura. Como infelizmente já não existia mais a censura do Estado, a moça instalava sua censura particular na mesa.

Mas falava da Varig. Há mais de três décadas viajo para o exterior, praticamente quase todos os anos, e sempre evitei a empresinha infame. Minhas primeiras viagens foram por mar, é verdade. Mas quando a falta de tempo me obrigou a voar, meu primeiro vôo foi pela LAP, Linhas Aéreas Paraguaias. Não lembro de tarifas nem da moeda da época - suponho que cruzeiros - mas o preço da passagem era um terço do preço praticado pela Varig. Havia um porém. A LAP não podia pegar passageiros no Brasil e levá-los diretamente à Europa. Tinha de voltar a Asunción e de lá repartir para a Europa. Brasileiro pode ser besta, mas há uma considerável parcela que não o é. Esta parcela era mais que suficiente para lotar qualquer vôo da LAP. A empresa tinha de partir de território paraguaio, mas nada exigia que o avião aterrissasse em território paraguaio.

Ora, aterrissar e decolar são operações que consomem não poucos dólares. Como não havia um só assento vazio no avião, este apenas sobrevoava Asunción e embicava rumo ao Norte. Várias vezes, sem querer, sobrevoei a capital paraguaia, sem jamais pôr os pés por lá. Essas incongruências perduram até hoje. Se você quer vir de Recife a São Paulo, por exemplo, sai mais barato comprar um bilhete Recife-Buenos Aires, pela Aerolíneas Argentinas, e descer discretamente em Guarulhos. Em minhas viagens, a Aerolíneas muitas vezes me salvou preciosas divisas, e até mesmo a Pluna uruguaia. Voar pela Varig era rasgar dólares.

Ano passado, convidei uma sobrinha que trabalhava em Londres para visitar-me em Roma. Ela nem me esperou. Descobriu uma passagem Londres-Roma-Londres por 50 libras e não resistiu. Ora, 50 libras são 250 reais. A distância entre Roma e Londres é de 1876 km e mais de duas horas de vôo. Entre Rio e São Paulo há 429 quilômetros e um vôo de 40 minutos. Quanto você paga por uma ida-e-volta neste trajeto, viajando pela Varig? Preço mínimo: 486 reais. Máximo: 920. Resumindo: por um trajeto quatro vezes menor que o de Londres-Roma, você paga, arredondando, de duas a quatro vezes mais.

Minha sobrinha, que trabalhou inclusive como garçonete para subsidiar seus estudos de inglês, logo encontrou outra viagem imperdível. Londres-Barcelona-Londres por 17 libras. A distância entre as cidades é de 1541 km e 17 libras significa 85 reais. Claro que esses não são os preços médios dos vôos na Inglaterra e muito menos na Europa. Pouco importa. O que importa é que uma garçonete, por exemplo, tem sempre a chance de passar um fim-de-semana em Roma ou Barcelona. Ajunte a isso o poder aquisitivo de um cidadão britânico e o salário médio de um brasileiro. A conclusão que se impõe a qualquer pessoa sensata é uma só: que morra a Varig.

Em 2.000, planejei uma viagem pela Escandinávia. Os preços da Varig beiravam os dois mil dólares. Fui à luta e encontrei uma passagem pela Swissair, São Paulo-Zurique-Oslo-Estocolmo-São Paulo por 669 dólares. Os patrioteiros que me desculpem, mas viajar pela Varig é atestado de estupidez.

A Varig, graças a suas relações sarnosas com Brasília, sempre afastou os brasileiros da Europa. Ou, enfim, do Exterior. Exercendo monopólio de vôos sobre o território nacional, sempre que pôde impediu que outras empresas oferecessem melhores preços aos viajantes. Recentemente, a Gol ofereceu vôos a 50 reais para 27 cidades brasileiras, fazendo concorrência até mesmo com ônibus. Acionado, o Departamento de Aviação Civil (DAC), correu imediatamente em socorro da Varig e cortou a chance de os brasileiros voarem como voam os europeus, isto é, voar barato.

A Varig, apesar de suas tarifas extorsivas, há anos não consegue sair do vermelho. No ano passado, o prejuízo da companhia foi de R$ 1,836 bilhão, ante um resultado negativo de R$ 2,867 bilhões contabilizados em 2002. Terça-feira passada, o The New York Times destacou a atual crise financeira da companhia brasileira de aviação. Segundo o jornal, o governo Lula está estudando a criação de um programa para salvar a Varig da falência, o que poderá resultar numa operação semelhante ao Proer - o programa de reestruturação dos bancos privados - que em anos passados foi amaldiçoado pelo PT.

Após infrutíferas tentativas de cooptar a TAM para safar a Varig da falência, o governo quer envolver o Ministério da Fazenda e o BNDES para criar um plano de salvação para a empresa. Ou seja: você, contribuinte, vai ser intimado a salvar uma empresa elitista e incompetente, que considera que voar é privilégio de gente fina. E cuja filosofia é impedi-lo de voar a preços humanos. Tudo isto com o pretexto de ajudar o setor brasileiro de aviação civil.

A história é antiga. O governo assume uma empresa falida, saneia suas finanças e a devolve ao mercado, bonitinha e para usufruto dos amigos do rei. Quem paga é você.

Que morram as empresas incompetentes. O governo petista assumiu um perfil capitalista, obediente às normas do FMI. Mas volta e meia tem uma recaída de socialismo e insiste em subsidiar a incompetência com dinheiro público. Alguém poderia preocupar-se com o desemprego dos funcionários. Bobagem. Quaisquer empresas que ocuparem o espaço corrupto da Varig necessitarão de pessoal de ar e de terra, devidamente treinados e com fluência no português.

O direito a viajar é algo que não está - mas deveria estar - na Declaração dos Direitos Humanos. Morte à Varig. Para que todo brasileiro tenha a mesma chance de voar que tem um garçom na Europa.