¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, setembro 02, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXVII)


Outra obra que nos caiu nas mãos, nos dias de Dom Pedrito, foi a História da Filosofia, de Will Durant. Pragmático como todo americano, o autor pouco se detinha em questões metafísicas e via a filosofia como um instrumento de investigação da trajetória do homem na história. A leitura de Durant me conduziu a um dos cursos mais inúteis que já fiz, o de Filosofia na UFRGS. Julgava que, estudando filosofia, encontraria o sentido da vida. Como se a vida em si tivesse algum sentido, a não ser o que lhe conferimos. Nos dois primeiros anos de curso, mergulhei fundo na nova disciplina.

Enquanto estava na Grécia, tudo era deslumbramento. À medida que me aproximava dos contemporâneos, frustração. No dia em que Gerd Bornhein afirmou, com todas as letras, que "o objeto da filosofia, hoje, é decidir qual é o objeto da filosofia", me senti roubado. A serpente mordia a própria cauda. Se no ginásio tive vários professores que me marcaram, da universidade só me restaram as aulas de dois: o Leônidas Xausa, com quem estudamos Platão, mais precisamente A República, e Dagmar Pedroso, que nos introduziu tanto na lógica dos estóicos e megáricos como na aristotélica. No decorrer de meu cronicar, seguidas vezes encontrei um leitor mais culto que percebeu meu aprendizado: "nota-se que estudaste lógica".

Hoje em dia, no Brasil, intitula-se filósofo qualquer escrevinhador que um dia cursou filosofia. Ou que, mesmo sem ter cursado filosofia, transitou por essas disciplinas bastardas, tipo sociologia ou antropologia. A filósofa Marilena Chauí, o filósofo Carlos Nelson Coutinho, o filósofo Gerd Bornhein, etc. Em geral, esquerdófilos em crise de identidade e busca de um ofício. O vício, como tantos outros, vem de Paris. Ao apresentar meu currículo na Sorbonne, uma secretária espantada me mostrou todos seus dentes: Tiens, vous êtes philosophe! Que nada, moça - protestei - apenas fiz um cursinho na área. Filósofos foram Sócrates, Platão, Kant, Hegel, Nietzsche. Nem a Sartre confiro este título. Sartre, diga-se de passagem, nunca passou de um stalinista deslumbrado com tiranias.

Paralelamente ao curso de Filosofia em Porto Alegre, fiz Direito em Santa Maria. Minha formação, no entanto, ocorreu em outra academia, que gosto de chamar de Universidade Livre da Praça da Alfândega. Nos anos 60, quando um assalto na rua era manchete de primeira página nos jornais, a Praça da Alfândega de Porto Alegre abrigava uma fauna das mais variegadas de noctívagos, desde jornalistas a universitários, passando por cineastas e outros utópicos. Conversávamos até o clarear do dia, nos reabastecendo de vez quando com um sanduíche no Café do Matheus, demolido pela fúria imobiliária dos bancos nos 70. Peripatéticos sem acrópole, a praça fazia as vezes de ágora ateniense. Dos cursos de Filosofia e Direito, me restam noções valiosas, é verdade. Mas minha introdução nas Letras e no mundo do pensamento ocorreu naquelas madrugadas absurdas, conversando com amigos, entre ratos e mendigos, bêbados e jornalistas - com perdão pela tautologia.

A universidade jamais me passou as bibliografias que recebi na Praça da Alfândega. Nietzsche, Pessoa, Dostoievski, Swift (o original, não as adaptações), fui descobri-los na madrugadas de boêmia. Através da livraria Coletânea, cujo prédio foi também demolido pelos bancos em 77, recebíamos farta literatura da França e da Argentina. A livraria era apenas um corredor onde, entre outros, o Mário Quintana fazia sua ronda noturna das lombadas. Nas noites de inverno ou de chuva, a Coletânea era o último refúgio daqueles seres sem sono, que preferiam enfrentar qualquer intempérie a ficar em casa. Na época, eu curtia um derrame pleural, mas não seria o frio ou a umidade que me fariam guardar repouso. Daquelas noites, deduzo algo que se torna a cada dia mais evidente: a farsa dos cursos da área humanística na universidade brasileira. Neles se estuda tudo, menos o essencial. Toda a cultura que me foi de alguma valia, eu a adquiri em conversas sem compromisso, em recomendações de livros por parte de amigos e mesmo em leituras vadias.

Meu mestre, naquelas noites, foi o Aníbal Damasceno Ferreira, já definido por alguém como "artífice silencioso da vida cultural de Porto Alegre". Sem formação universitária alguma, é um dos intelectuais mais lúcidos que a cultura gaúcha produziu. Entre outras coisas, tínhamos em comum a experiência da tuberculose. O Damasceno era da época do pneumotórax, eu já gozava do conforto da estreptomicina. Seus anos de leito foram anos de leitura, principalmente de autores ingleses. A este colega de bacilos devo minhas leituras de Swift, não daquele Swift adaptado a adolescentes que andei lendo nalgum livro infantil, mas do deão irascível, de humor implacável.