¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, setembro 03, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXVIII)


A aridez dos textos jurídicos, mais a fúria legiferante de Brasília, me fez concluir, já no segundo ano de Direito, que advocacia não era o meu rumo. Concluí o curso por teimosia. Para não ouvir o argumento: ele critica o Direito porque não pode concluir o curso. Havia um outro atrativo. O curso era de freqüência livre, mas me obrigava a passar umas oito semanas por ano em Santa Maria. E lá havia duas irmãs musicistas, mais um pianista carioca. Nos encerrávamos os quatro em longas noitadas de vinho e música. Estas noites de álcool, sensualidade, carinho, debates e sonhos foram o melhor legado de meus estudos jurídicos.

Aquele grupo foi um dos raros refúgios que encontrei, na época universitária, onde não imperava o debate ideológico. Direita e esquerda eram palavras que só usávamos para definir no máximo a posição de um copo. Nosso universo era o de Brahms, Bizet, Scriabin, Nietzsche, Cervantes. Pelas seis da manhã, eu abandonava aquele topos uranos particular para penetrar, às oito, bocejando, no mundo cinzento e aborrecido das leis. Quando concluí os exames de final de curso, ao voltar de ônibus para Porto Alegre, o rio Guaíba me convidou a um gesto simbólico. Joguei de uma das pontes os raros tratados que me restavam.

Quanto à Filosofia, esta perdia o interesse à medida que nos afastávamos da Grécia em direção ao mundo contemporâneo. As aulas sobre Heidegger ou Sartre sempre me fizeram dormir. Não conseguia ver pensamento algum, muito menos lógica, naqueles tijolos recheados com um palavrório vazio. Algo ficará do teatro e dos contos de Sartre. Mas o filósofo sempre foi intragável. Sua fama na universidade brasileira é mais um subproduto da indigência dos intelectuais tupiniquins, sempre deslumbrados com qualquer arroto emitido em Paris. Nossos professores - como também meus colegas -fingiam entendê-lo para não passar por deficientes mentais. O autor de O Ser e o Nada foi um dos maiores embustes do século passado. Segundo Simone de Beauvoir, em La Force des Choses, certo dia Sartre ria feliz por ter escrito uma frase tão complexa que nem ele conseguia entender. Nelson Rodrigues definiu-o com agudeza: "o pensamento de Sartre é de uma profundidade que uma formiguinha atravessa com água pela canela". Quando a Heidegger, hoje sabemos o que se escondia atrás de seus textos impenetráveis. Nada menos que um anti-semita colaborador do nazismo.

Com os diplomas de Direito e Filosofia na mão, fui buscar emprego nos Diários Associados. O ano era 1969, quando jornalista era quem escrevia bem e não quem tinha diploma de um curso de jornalismo. Fui admitido inicialmente como repórter no Diário de Notícias, ganhando um salário ínfimo. Do que não me arrependo. Direta ou indiretamente, o jornalismo me fez viajar e me permitiu viver no Exterior.

Minha relação com a profissão sempre foi de conflito. Logo vi que não tinha prazer algum na reportagem e optei pela redação. O trabalho de redator é duro e exige uma larga dose de cultura de quem ocupa o cargo. A cada minuto podem surgir palavras, conceitos, países ou fenômenos do qual o redator jamais ouviu falar, e ele tem de destrinçá-los na hora. Ou então não é redator. O desafio era interessante, mas o ofício não me agradava. Redator não escreve, apenas redige. Para compensar meu sofrimento diário, consegui uma coluna no jornal, que intitulei de Diário sem Notícias. Do dia pra noite, fiquei feliz. Como cronista, de certa forma consegui criar um espaço onde podia expressar-me livremente, sendo censurado raramente. Isso quando escrevia em jornais de pequeno porte. A censura é diretamente proporcional à importância de um órgão de imprensa. Quanto maior é sua tiragem ou difusão, maior é a censura.

Daí minha preferência pelos jornais pequenos. Para alguns, escrevi inclusive de graça. O eventual pagamento por uma crônica era ridículo. Dado o ritmo da inflação, de ridículo se aproximava de zero de mês em mês. Ora, discutir o acréscimo de mais um pouco a quase nada era mais ridículo que a própria paga. Em Santa Catarina, um editor foi franco. Poderia até mesmo pagar-me para assinar uma coluna. Mas a paga seria insignificante. "Tu terias de arranjar um jeito de aumentar teu salário utilizando a coluna". O editor sugeria, com a maior naturalidade, que eu me corrompesse. A hipótese não me atraiu e acabou me empurrando para São Paulo.