¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, setembro 24, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXXII)


A affaire Balaustre


Memória puxa memória e não está fácil sair de Porto Alegre e partir rumo a outros nortes. No dia 20 de outubro de 1971, a Folha da Tarde publicava um

CONVITE PARA ENTERRO

A Ivanhoé Produções, a Ivanhotur, a Ivanhocred, a Ivanhoplan, a Ivanhoinvest, cumprem o doloroso dever de participar a seus clientes, amigos, acionistas e fornecedores, o falecimento de seu mais antigo sócio, presidente e fundador

PEDRO LOUZADA BALAUSTRE

ontem falecido e convidam as pessoas de suas relações para assistirem as cerimônias de seu sepultamento. O féretro, hoje às 14 horas, sairá da Igreja Matriz da cidade de Muçum para o cemitério local.

Muçum, 20 de outubro de 1971

Pedro Louzada Balaustre - fruto da imaginação desocupada de jornalistas não muito sóbrios - surgiu inicialmente ao final de uma crônica esportiva. Ao retornar de uma excursão vitoriosa de seu time ao interior do Estado, envolto na bandeira colorada, o velho Balaustre abraçara-se ao monumento ao Laçador, a voz enrouquecida pelos vivas e vaias. Surgiu mais tarde numa seção de Cartas à Redação, congratulando-se com a ação purificadora da Revolução de 64. Era um conservador, o velho Balaustre. Onde houvesse brecha em algum jornal, lá estava o homem: nos documentos perdidos, aniversários, crônica esportiva e colunas assinadas. Sua morte foi recebida com incredulidade e indignação pelos jornalistas que o haviam criado. Hipóteses e investigações não muito rigorosas não levaram a conclusão alguma, e o assassino continua até hoje impune. Enfim, morto o personagem, só restava criar-lhe uma imagem póstuma. Dois dias após seu passamento, na mesma Folha da Tarde, lia-se:


COMUNICAÇÃO À PRAÇA


Os homens passam, mas as instituições ficam. As empresas ligadas ao holding Ivanhoé, sob o impacto, ainda, do doloroso passamento de seu fundador e diretor presidente PEDRO LOUZADA BALAUSTRE, cumprem o dever de comunicar aos seus acionistas, amigos e clientes que as atividades do grupo terão prosseguimento normal e desenvolvimento crescente. Com sucursais e agências nas principais praças do país, o complexo Ivanhoé não precisa encostar-se a ninguém para ser grande no Rio Grande do
Sul e no Brasil. Vale pela eficiência instrumental das empresas que o integram, pelo seu know-how, pela incomum qualidade de seu staff e pela austeridade dos que o dirigem. Assume a direção de nossos negócios, seu filho PEDRO LOUZADA BALAUSTRE JÚNIOR, assessorado pelo comendador ASPECYR UMBRELLA.

São Paulo, 21 de outubro de 1971.

IVANHOÉ PRODUÇÕES - Ivanhodata - Ivanhotum - Ivanhobral - Ivanhotur - Ivanhopress - Ivanhovest - Ivanhocred - Ivanhoplan
Na época, eu mantinha coluna assinada no Diário de Notícias. Obviamente, registrei o fato com gosto, não sem acrescentar mais algumas virtudes ao homem.

O falecimento de Pedro Louzada Balaustre sensibilizou gregos e troianos. Empresário de grande visão e humanidade, excepcionalmente aberto a idéias novas, tinha livre trânsito tanto nos círculos culturais como empresariais do país. Homem de humildes origens, possuía uma visão saudavelmente civilizada do mundo. Suas dimensões são apenas comparáveis ao personagem de Khazam, em The Arragement. Era conhecido como o Lincoln do Oeste Catarinense, região onde implantou a Ivanhopin, empresa que originaria mais tarde o poderoso grupo Ivanhoé. Pedro Louzada Balaustre morreu em sua fazenda no município de Muçum, a 19 do corrente, vítima de insidiosa moléstia.

Uma certa comoção perpassou os porto-alegrenses. O empresário era pouco conhecido no Rio Grande do Sul, mas não passa despercebida a morte de um homem que cria todo um império econômico. A Comunicação à Praça - nota de leitura obrigatória para todo industrial ou comerciante - foi publicada para dar fim aos insistentes boatos de que o complexo Ivanhoé seria assumido por grupos estrangeiros. Redatores de assuntos financeiros registravam a queda das ações de algumas empresas e uma subida compensatória de outras. O comendador Aspecyr Umbrella negou-se a quaisquer declarações ao descer no aeroporto Salgado Filho, o que só aumentou os rumores em toro ao caso. Para seu dissabor, perdeu bengala e passaporte na chegada. Nos meios editoriais negociava-se a publicação das memórias póstumas do capitão-de-indústria, possibilidade que preocupava muitos cidadãos acima de qualquer suspeita. No Correio do Povo, alguém colocou discretamente uma página na caixinha de necrológios. Gaúcho algum poria em dúvida uma afirmação impressa nas austeras páginas do Róseo. Dia seguinte, graças à autoridade do jornal, o capitão de indústria passava a existir de fato.

PEDRO LOUZADA BALAUSTRE

Em sua fazenda, no município de Muçum, faleceu a 19 do corrente o pecuarista e industrial Pedro Louzada Balaustre, diretor e fundador do grupo Ivanhoé, com uma dezena de organizações associadas e subsidiárias, principalmente nos Estados de São Paulo e Paraná. O empresário faleceu aos 65 anos de idade.
Pedro Louzada Balaustre era casado com a sra. Carmelita Umbrella Balaustre, deixando desse matrimônio três filhos: Pedro Louzada Balaustre Júnior, Jandira Louzada Balaustre e Nataniel Louzada Balaustre.

Fontes próximas ao governo falavam de estudo para manter no Estado o controle acionário do holding Ivanhoé. A um vereador ocorreu a idéia de homenagear o extinto dando seu nome a uma rua. Um deputado, que recebera um cartão com tarja negra agradecendo, em nome das empresas, sua presença às exéquias, pediu ao plenário um voto de pêsames pelo passamento do industrial, que foi concedido por unanimidade. Em sua alocução, dizia-se amigo de longa data do comendador Aspecyr Umbrella, tendo pois a certeza de Pedro Louzada Balaustre, o dinâmico Pedrinho, estava bem assessorado.
Leitor algum notou que em Porto Alegre havia uma empresa de seguros de razão social Aspecyr, com outdoors em todo o centro da cidade, cujo logotipo era um guarda-chuva. Editor algum se preocupou em checar se no Brasil - ou no sul do Brasil, que mais não fosse - existia algum holding Ivanhoé. Em Brasília, um outro deputado gaúcho, que também recebera o cartão de agradecimento, também solicitava a seus pares um voto de pêsames. O personagem que fora criação de uma noite de porre de jornalistas exercitando o senso de humor, graças à irresponsabilidade da mídia, passara a ter existência concreta.

Neste ponto, ocorre a morte definitiva de Pedro Louzada Balaustre. Ao final de uma sessão plenária da assembléia gaúcha, um jornalista chapa branca, amedrontado com as dimensões que a affaire estava tomando, comunicou ao solidário deputado a verdade sobre o caso. O deputado voou até a estenografia para evitar a inclusão do voto nos Anais e manteve contatos pessoais e desesperados com os proprietários das empresas jornalísticas. Pedro Louzada Balaustre desapareceu da memória dos homens. Exatamente quando se providenciava sua missa de trigésimo dia. Para celebrá-la, pensamos em nada menos que Sua Eminência o cardeal Don Vicente Scherer. A cerimônia seria na Catedral Metropolitana, bem entendido. Estava também sendo preparado um espólio do defunto, que seria enviado à Receita Federal. Infelizmente, Balaustre teve vida curta.