¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 17, 2004
 
BRASIL RUMA AO BALBUCIAR


Ricardo Bonalume Neto, excelente redator de ciências da Folha de São Paulo, nos trouxe há pouco uma notícia reconfortante: que os bilíngües têm massa cinzenta mais densa. Segunda a revista científica britânica Nature, aprender uma segunda língua modifica a anatomia do cérebro. E, quanto mais cedo se aprende, maior a modificação. O achado seria uma comprovação neurológica de algo que qualquer imigrante que tenha filhos sabe muito bem: crianças tendem a aprender idiomas com mais facilidade do que adultos. Pesquisadores do Reino Unido e Itália - prossegue a revista - fizeram imagens por ressonância magnética funcional do cérebro e constataram que os bilíngües têm uma densidade maior da chamada massa cinzenta na região cerebral conhecida como córtex parietal inferior esquerdo."O grau de reorganização estrutural nessa região é modulado pela proficiência obtida e pela idade de aquisição", afirmam Andrea Mechelli e colegas do Departamento Wellcome de Imageamento de Neurociência, de Londres, e da Fundação Santa Lúcia, de Roma, que assinam o estudo.

Os primeiros testes foram feitos com pessoas que tinham o inglês como língua nativa - nos traduz Bonalume. Foram recrutados 25 monoglotas com pouca exposição a línguas estrangeiras. Mais 25 bilíngües "precoces", isto é, que aprenderam uma segunda língua européia antes de cinco anos de idade e a continuaram praticando. E 33 bilíngües "tardios", que só aprenderam outra língua entre os 10 e os 15 anos. Todos os voluntários tinham idades e grau de educação semelhantes.

Independentemente deste mero dado físico, a densidade maior ou menor da massa cinzenta, não são necessárias grandes pesquisas para perceber-se que o bilíngüe - e mais ainda o poliglota - tem mais acuidade mental que o prisioneiro de um só idioma. O homem que fala várias línguas conhece étimos, a migração de uma palavra de uma língua a outra, suas diferentes acepções em diversos países ou períodos históricos. Claro que seu cérebro é privilegiado. No aprendizado das línguas - dizia-me um amigo poliglota - o mais difícil são as primeiras quinze. Depois destas quinze, tudo se torna mais fácil. O cérebro agiliza-se de tal forma que as demais passam a ser praticamente intuídas. Conheço de perto alguns destes seres. Eles já não mais estudam uma língua. Estudam grupos de línguas ao mesmo tempo, o que facilita o aprendizado.

Ironicamente, nestes dias em que os cientistas constatam a superioridade do cérebro bilíngüe ou poliglota, mergulhamos em pleno governo de um pobre diabo monoglota. As conseqüências não se fizeram esperar. No início deste outubro - lemos ainda na Folha - o ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores, anunciou mudanças no Instituto Rio Branco, que forma os diplomatas do país. Não será mais eliminatória a prova de fluência em línguas estrangeiras na admissão ao curso. Ou pretender-se-ia que o cérebro de um reles diplomata fosse superior ao bestunto do chefe da nação? No que diz respeito a línguas, eliminatória será só o português. O candidato inseguro no vernáculo sempre fará melhor se desistir do Rio Branco e candidatar-se à Presidência da República. Terá boas chances de ser melhor sucedido.

Até aqui, eram eliminatórias as provas escritas de francês, inglês e espanhol e a oral de inglês. Para Amorim - que vê isto como um grande avanço - o exame atual desestimula pessoas que não tiveram vivência no Exterior e que não aprimoraram conhecimentos de línguas estrangeiras. Nesta filosofia, reside todo o projeto do atual governo: nivelar por baixo. Quem um dia teve a curiosidade intelectual de estudar línguas, de abrir janelas para o mundo, aqueles jovens que foram - cheios de coragem mas sem um vintém - para os Estados Unidos ou Inglaterra, que lavaram pratos e venderam pastéis para subsidiar seus estudos de inglês, estes não terão mérito nenhum por seus esforços. A partir do ano que vem, o Itamaraty será invadido por monoglotas atrozes, que precisarão preparar-se desde o b-a-bá nos instrumentos fundamentais de seus ofícios.

Esta medida é um remendo óbvio ao Programa de Ação Afirmativa, anunciado em março deste ano pelo Instituto Rio Branco. Num gesto de racismo às avessas, o Instituto passou a oferecer bolsas de estudo no valor de R$ 25.000,00, a candidatos negros que queiram ingressar na carreira diplomática. Se você um dia pensou nessa carreira, é melhor que seja negro e analfabeto. Se for branco e culto, vá tirando o cavalinho da chuva, que cultura não é moeda que tenha curso nesta era Lula. Onde se viu ser mais culto que o Supremo Apedeuta?

Não bastasse este escândalo que aos céus clama justiça, o governo está distribuindo um kit "para combater racismo nas escolas". Será ensinado que não provém de ignorância expressões como "muié" (mulher), "simbora" (ir-se embora) e "zoiá" (olhar). O dicionário Aurélio está na alça de mira dos novos pedagogos, já que no verbete "cabelo" estão variantes que depreciam o negro: cabeça cocô-de-rola, cabelo ruim, cabelo de cupim e carapinha. Neste trote em que marcham as mulas, até o Monteiro Lobato arrisca a ir para a fogueira. Em O Presidente Negro, o escritor taubateano nos fala de um instituto de desencarapinhamento, já que na sociedade futura concebida pelo autor, os negros tinham conseguido libertar-se do estigma da cor, mas não da carapinha. Neste mesmo trote, vai também para a fogueira o samba já clássico, Nega do cabelo duro, de Rubens Soares e Davi Nasser.

Não bastasse esta censura que, ao melhor estilo stalinista, pretende reescrever dicionários, em um dos livros do "kit racismo", a palavra mulato é condenada como termo desumano e pejorativo. E mulata será que pode? Esta glória da micigenação brasílica, cantada em prosa e verso deste que existiu, tanto em romances como em poesia, canções e sambas, terá virado palavrão? Vamos reeditar obras literárias, reescrever sambas, criar novas rimas, só para satisfazer a sanha racista destes burocratas stalinistas do Planalto que pretendem se apropriar da língua? Logo da língua, que quem faz é o povo?

O atual governo começa a mostrar as garras. Não conseguindo censurar a imprensa, ataca o mal pela raiz: quer censurar as palavras. De quebra, desqualifica quem quer que queira fazer um uso correto do vernáculo. Não satisfeitos em desqualificar as pessoas cultas, os novos pedagogos colocam no ror de delinqüentes quem quer que aponte um erro de prosódia na fala de um aluno. O PT, finalmente, confessa seu rumo: a barbárie.

Senhores professores de português, sejam "homis" ou "muiéres", abram os "zóio". Cuidado ao corrigir provas. Nem ousem reprovar um aluno por questões vernáculas. Pode render um belo processo por racismo. Crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, conforme reza a Constituição-cidadã. E muita cautela se você fala duas ou mais línguas. Será, ipso facto (ops!), um inimigo da nação. Caso você tenha adquirido alguma cultura, disfarce. É um perigo. Remember Pol Pot.

Bárbaro é palavra intimamente ligada a balbuciar. Para os helênicos, bárbaros eram os estrangeiros que apenas balbuciavam o grego. Os neopedagogos de Brasília estão rumando, entusiasticamente, para lá.