¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 03, 2004
 
DAS VANTAGENS DO ANALFABETISMO



Estou sendo vítima de assédio. Não de assédio sexual. Mas religioso, que me parece ser crime mais grave. Não passa dia sem que católicos, marxistas ou espíritas me repassem bibliografias. Recebi até mesmo insinuações da exótica Bola de Neve Church, que descobriu no cérebro de camarão dos surfistas um promissor campo de plantio. Recebo mails de pessoas que se pretendem imbuídas de fé cristã, mas jamais leram a Bíblia. De uma surfista da Bola de Neve, por exemplo, recebi mensagem me recomendando ler os "Evangélios". Porque nós, "cristões"... dizia a menina, a propósito já nem lembro de quê.

Ora, a Bíblia é livro muito bem escrito, e certamente melhor traduzido. Quem a leu jamais escreveria "evangélios" ou "cristões". Que o presidente da República assim escreva, não me espantaria. Mas não quem tenha lido o Livro. Isso é coisa de gente que não lê e só capta a oralidade. De gente que só ouve a lavagem cerebral do pastor. Quando o Supremo Apedeuta fala sobre saúde, nunca sabemos se está pronunciando a palavra com s ou ç. Essa é vantagem da oralidade. Escrever é um pouco mais complicado.

Munir-se de bibliografias e estudar a fundo doutrinas é terrível perda de tempo. Imagine que você, para conhecer o cristianismo, tenha de ler desde a Bíblia a Santo Anselmo, Orígenes, Tomás de Aquino, Agostinho, Hans Kung e teólogos outros. Só a leitura da Bíblia já é empreitada que exige tempo e conhecimentos históricos. A Suma Teológica, por exemplo, tem doze volumes. Imagine então que você, ao ler a Bíblia, embrenhar-se pela Suma, Cidade de Deus, Ser Cristão, etc., passou a descrer do cristianismo. Busca então outra fé. Sem ir mais longe, o marxismo, como fizeram boa parte dos católicos que se desiludiram dos preceitos do Nazareno.

Aí vem outra bibliografia colossal. Para entender os prolegômenos, você precisa ir às fontes, desde os socialistas utópicos a Hegel, Engels e Marx. Teria depois de ler aquele calhamaço religioso travestido de pensamento científico, O Capital. Depois os comentaristas, que são centenas. Mais os dissidentes. Só aí, você empenhou metade de sua vida.

Digamos então que, dadas as reviravoltas do século, você perdeu a fé no marxismo. Procura então outra. Espiritismo, freudismo, talvez islamismo. Novas bibliografias. Você vai desperdiçar sua vida lendo, sem talvez chegar a nada. Recebo continuamente sugestões bibliográficas. Como se livro fosse atestado de verdade. Ora, um olhar perfunctório sobre as crenças que o mercado oferece, nos mostra sobejamente que os livros têm sido os objetos mais mentirosos da história da humanidade.

Conheço não poucos destes eternos migrantes. O mais conhecido deles foi Roger Garaudy. Do catolicismo migrou para o marxismo, percurso banal no Ocidente. Insatisfeito com o marxismo, refugiou-se no islamismo. Em Porto Alegre, conheci um jornalista que repetiu este turismo espiritual. De católico virou stalinista e do stalinismo migrou para o islamismo. Me consta que morreu virando o bumbum pra lua na hora das preces e cumprindo o ramadã. Às vezes, a ordem do percurso se inverte. Do marxismo passam ao islamismo e do islamismo ao catolicismo. Constituem um exemplo perfeito do antigo axioma: a ordem dos fatores não altera o produto. São eternos buscadores de fés, e não encontram sossego fora de uma crença em um Absoluto qualquer.

Recentemente, recebi vasta bibliografia sobre espiritismo, de um leitor com alma de apóstolo. Surpreendeu-se quando confessei-lhe ser um estudioso de religiões. Não entendia como um estudioso de religiões pudesse ser ateu, quando é precisamente o estudo aprofundado das religiões o que nos leva ao ateísmo. Revelei ter também uma extensa biblioteca marxista em casa, sem nunca ter sido marxista. Então você pode começar a ler Kardec, me sugeriu. Declinei o convite. Disse-lhe que só me interesso pelas grandes mentiras da humanidade, não me sobra tempo para as pequenas.

Passei outro dia no setor de livros da Fnac. Estantes e mais estantes de ficção. Mas deixemos estas de lado. Ficção, por definição é mentira. Ao comprarmos um romance, sabemos que não se trata de uma história real, mas de fruto da imaginação. Ficção não é o problema. A mentira mais sutil está nos ensaios, que pretendem dissertar sobre verdades.

Prateleiras e mais prateleiras de livros apologéticos sobre o cristianismo, catolicismo, protestantismo, islamismo. Tudo mentira. (Excluo disto os estudos sérios sobre religião, mas estes são raros). Mais prateleiras de auto-ajuda. Tudo embuste. O mercado da auto-ajuda cresceu a tal ponto que até mesmo um líder religioso, que vive da caridade pública enquanto não realiza seu sonho de uma teocracia, o Oceano de Sabedoria - conhecido também por Dalai Lama - resolveu nele investir. Paulo Coelho e Lya Luft também. Não por acaso, muitas vezes os encontramos juntos na lista dos autores mais vendidos, e não estou fazendo trocadilho. Sem falar em misticismos outros, psicanálise, astrologia, budismo, bruxaria, Wicas, feng shui, quiromancia, xamanismo, bruxaria, cabala, lingüística, neurolinguística e sei lá quantas outras religiões, crenças e teorias, que seres humanos mais dotados para o engodo criaram para enganar seus próximo, mais vulneráveis à vigarice . Houve época em que as obras marxistas cobriam paredes. Literatura sobre Cuba virou gênero literário, cada livraria tinha uma estante exclusiva dedicada a Castro e ao Che. Tudo mentira e nada mais que mentira.

Nestes dias de indústria do livro, procurar neles verdades é aposta arriscada. No mais das vezes, o livro é instrumento de proseletismo e enganação. Diz um provérbio oriental: quem acredita em tudo que lê, melhor não tivesse aprendido a ler.