¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, novembro 15, 2004
 
CARLOS FREIRE (I)
Foi lançado, na última Feira do Livro de Porto Alegre, o livro Babel de Poemas, antologia de 60 poemas de 60 línguas diferentes, traduzidos pelo professor e poliglota gaúcho Carlos Freire.
Aos interessados em línguas e lingüística, reproduzo a entrevista que Freire me concedeu há uns dois anos.
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Considerado pela Universidade de Cambridge como um dos dois mil eruditos do século XXI, ele já estudou sistematicamente mais de cem línguas, das quais domina sessenta. Há mais de quarenta anos vem desenvolvendo o projeto de estudar sistemática e cientificamente duas novas línguas por ano. Uma monografia sua, Los fonemas oclusivos y africados del aymara y del georgiano, foi publicada em espanhol pela Universidade de Sucre e traduzida ao russo e ao serbo-croata. Nasceu em Dom Pedrito, RS, há setenta e um anos e estudou nos Estados Unidos, Espanha, Itália, China, na ex-Iugoslávia, na ex-Tchecolosváquia e na ex-URSS. Vive atualmente em Florianópolis.

- Onde e como surge teu interesse por línguas?
- O meu interesse pelo estudo das línguas estrangeiras surgiu cedo, quando era ainda estudante ginasiano, ao dar-me conta de que ler os clássicos estrangeiros em traduções representava uma enorme desvantagem, isto é, que somente lendo no original eu poderia usufruir do prazer estético que só o original oferece plenamente. Depois, o fascínio pelo estudo, pela descoberta, através das línguas, de outros tantos mundos, culturas e maneiras diferentes de pensar tomaram conta de mim, principalmente com as muitas viagens que realizei mais tarde. O conhecimento de muitas línguas estrangeiras deu-me a oportunidade de fazer amizades com muitas pessoas em vários lugares do mundo. O domínio de línguas estrangeiras nos fornece, talvez, a ferramenta mais eficiente para o conhecimento e a aceitação do diferente.

-Te dedicaste nos últimos anos a um empreendimento insólito em língua portuguesa e mesmo nas demais línguas, a tradução de 60 poemas de sessenta idiomas diferentes. Tens dificuldades para a publicação desse trabalho?
- Há mais de 20 anos venho fazendo traduções, tanto prosa como poesia, de muitíssimas línguas estrangeiras ao português. Primeiramente, comecei a fazer traduções de contos, principalmente, e de poemas como hobby. Ou melhor, como um desafio lingüístico para testar minha própria habilidade e conhecimento das línguas que vinha estudando sistematicamente há mais de 40 anos. Me explico... quando estudo uma determinada língua, me proponho como objetivo final chegar ao ponto de poder traduzir algo dessa língua ao português. E, se possível, conseguir comunicar-me nela oralmente. Comecei com as traduções de pequenos poemas das línguas latinas, germânicas e eslavas. Depois... as demais. Mais tarde, aconselhado por amigos, resolvi reunir todas as traduções a fim de fazer uma antologia multilingüe, na qual constasse o original vis-à-vis com a respectiva tradução ao português. E, como apêndice, pequenas notas biográficas e lingüísticas onde dou algumas informações sobre algumas línguas exóticas ou pouco conhecidas do leitor brasileiro, como georgiano, maltês, romani, papiamento, romanche, indonésio, sauíli, albanês. Etc.
Sim, tenho dificuldade de encontrar um editor. Algumas editoras (universitárias, principalmente) disseram-me que havia problemas técnicos - doze alfabetos diferentes, necessidade de criar vários sinais diacríticos e símbolos diferentes - creio porém que a razão principal foi a constatação de que semelhante edição poderia ser onerosa e com pouco retorno financeiro.

- Onde aprendeste línguas não-latinas, como chinês, russo e árabe?
- As línguas latinas e as germânicas estudei-as em Porto Alegre, na PUC. As eslavas estudei nos Estados Unidos, Itália, Iugoslávia, Tchecolosváquia e na ex-URSS. O russo eu já tinha iniciado aqui no Brasil, com emigrantes, durante a época que estava na universidade. Com o russo criei um método que considero muitíssimo eficiente. Fui morar com uma família russa para ter a possibilidade de aprendê-lo na prática, na necessidade de cada dia. A parte teórica eu estudava sozinho.
O chinês, que tinha começado aqui no Brasil, com nativos dessa língua (o mandarim) tive, mais tarde, a oportunidade de seguir um curso regular na Universidade de Madri e, depois, na Universidade do Texas. Bem mais tarde, por volta de 1985, fiz um curso intensivo na Universidade de Pequim. Estudei o árabe, principalmente, com os muitos amigos palestinos que tinha aqui no Brasil. Depois tive a oportunidade de seguir um curso teórico-prático dessa língua, também na Universidade de Madri.
Em resumo, poderia dizer que estudei umas 30 línguas em cursos regulares, oficiais ou universitários. As demais, estudei-as autodidaticamente. Alguém já disse que as dez primeiras são as mais difíceis. Depois, de acordo com o objetivo em vista ou a necessidade momentânea, a gente inventa o seu próprio método.

- Julgas ser o chinês uma língua simples. Fala.
- Sim, o chinês é muito simples, no sentido lingüístico do termo. Isto é, uma língua simples em contraste com as indo-européias, por exemplo, que são línguas complexas. Creio que esta é, justamente, a razão principal porque a sua aprendizagem se torna tão difícil para nós, ocidentais. Estamos acostumados às estruturas lingüísticas complexas, como a do português. O chinês é extremamente conciso, não tem gêneros nem números gramaticais e o verbo não se conjuga. Simples não é sinônimo de fácil e, no caso do chinês, é antônimo. As estruturas simples tornam-se difíceis, confusas, pois não sabemos como compará-las com as nossas.
- Na Bolívia, encontraste um futuro "não-aristotélico" no aimara. Conta melhor essa descoberta.
- Durante minha longa estada (dez anos) na Bolívia, onde dirigi o Centro de Estudos Brasileiros em La Paz, nomeado pelo Itamaraty, tratei logo de estudar as línguas altiplânicas, com falantes nativos. Essa experiência me foi muito valiosa, pois pouco mais tarde fui convidado a lecionar Lingüística Contrastiva na Universidade Mayor de San Andrés, em La Paz. Foi comparando as estruturas lingüísticas dessas línguas com várias outras, indo-européias ou não, que cheguei a algumas conclusões interessantes sobre as notáveis semelhanças fonéticas delas com as línguas caucásicas e das características estruturais com as línguas altaicas.
Quanto ao aimara, como demonstrou cabalmente o matemático e aimarista boliviano Guzmán de Rojas, "existe uma lógica lingüística diferente, não-aristotélica, claramente incorporada na sintaxe dessa língua".

A comunicação deficiente, ou melhor, o desentendimento multissecular entre os indígenas e os conquistadores e seus descendentes explica-se, em grande parte, devido a sua diferente cosmovisão que, no caso dos aimaras, reflete-se nitidamente em sua sintaxe através de morfemas especiais bem definidos. Nós que falamos línguas indo-européias estamos imbuídos da concepção aristotélica, dicotômica, de verdadeiro X falso, certo X errado, sim X não, e temos certa dificuldade em aceitar ou compreender a concepção trivalente: certo-errado-verossímil, do aimara, onde a ambigüidade ou o terceiro não incluído tem valor de verdade.

A fim de tornar mais claro o tipo de lógica trivalente do aimara usarei dois exemplos da notável monografia de Guzmán de Rojas, Problemática Lógico-lingüística de la Comunicación Social en el Pueblo Aimara. Quando um falante nativo aimara, expressando-se em espanhol, diz: "- Mañana he de venir nomás", as palavras usadas não coincidem com o significado que as mesmas têm em espanhol, ou teriam em português. A expressão "nomás", muito típica do espanhol popular da Bolívia e do Peru, em situações semelhantes, revela, na verdade, o pensamento aimara maltraduzido ao espanhol. Em sua língua materna usaria a frase: "-Qharürux jutätki", onde o morfema "ki" traduz ou expressa a dúvida simétrica, o terceiro valor da verdade, o que simplesmente não existe em nossas línguas. Usa, pois, a expressão "nomás" para traduzir o sufixo "ki", indicativo apenas de verosimilhança.

Na realidade, ele quer dizer o seguinte: "amanhã pode ser que eu venha ou pode ser que eu não venha. Não estou me compromentendo". Quando diz, porém "- Mañana he de venir pues", usa o "pues" para traduzir o sufixo "pi" do aimara, que indica certeza. Assim, "- Qharüru jutätpi" é a forma aimara que corresponderia ao nosso "- Amanhã eu virei certamente, me comprometi". Vemos, portanto, que o aimara tem um futuro positivo, um futuro negativo e um futuro de dúvida simétrica. Assim que, se os nossos políticos falassem em aiamara, teriam de escolher bem o tipo de futuro a que se referem.

- Andei pesquisando sobre o Guzmán de Rojas. Não sei se sabes, mas ele criou o Qopuchawi, um ICQ que traduz instantaneamente mensagens a seis idiomas.
- Durante minha longa estada em La Paz, tive o privilégio de fazer amizade com Guzmán de Rojas e de acompanhar, de perto, o seu projeto. E sabes qual é a língua que usa como base para a tradução das restantes cinco? É o aimara, uma língua aglutinante de extraordinária regularidade sufixal.

- Tens um estudo sobre as afinidades fonológicas entre o aimara e as línguas caucásicas, publicado pela Universidade de Sucre e traduzido ao russo.
- A minha monografia se chama Los fonemas oclusivos y africados del aymara y del georgiano, publicado pela Universidade de Sucre. Pouco depois foi traduzido ao russo, pois a comparação com o georgiano sempre interessou os lingüistas soviéticos. Mais tarde, entre 1968-88, período em que exerci a função de Leitor de Língua Portuguesa na Universidade de Belgrado, esse trabalho foi traduzido ao servo-croata, pois despertara muito interesse não apenas aos lingüistas mas também a alguns antropólogos e outros profissionais que assistiram às minhas conferências. Estou convencido de que tanto o quíchua como o aimara são línguas tipologicamente altaicas. Contudo, fonologicamente se assemelham às línguas caucásicas e, particularmente, ao georgiano, a língua materna de Stalin.

- Podes nos contar como chegaste lá?
- Como cheguei lá? Por acaso... Eu estava dando uma aula de fonologia aos meus alunos de Línguas Latinas da Universidade de La Paz. Apresentei-lhes uma fita gravada numa língua desconhecida para eles (e para mim mesmo, naquela ocasião). Depois de terem ouvido o texto várias vezes no laboratório lingüístico eu lhes pedi que transcrevessem com o alfabeto fonético internacional (IPA) as palavras que tinham escutado repetidas vezes. Terminado o trabalho, verifiquei que aqueles alunos, cujas línguas maternas eram o quíchua e o aimara, acertaram mais de 80% o exercício, enquanto que os falantes nativos de outras línguas tiveram um acerto de, no máximo, 20%. A conclusão? Quem ouve pela primeira vez uma língua desconhecida e consegue identificar mais de 80% de seus fonemas é porque, quase seguramente, esses mesmos fonemas existem nas suas línguas maternas.

Depois disso prossegui com minhas investigações, entrei em contato com colegas da Universidade de Tbilissi, capital da Geórgia e, para minha surpresa, fui convidado a fazer pesquisas de campo in loco pela Academia de Ciências da então República Socialista da Geórgia. O meu trabalho, Los fonemas oclusivos y africados del quecha y del aymara é o resultado prático dessas pesquisas. E, de fato, o georgiano, aquela língua desconhecida das aulas de fonologia, tem notável semelhança fonológica com o aimara.
(continua)