¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 10, 2004
 
EFEMÉRIDE INCÔMODA

Transcorreram ontem quinze anos da queda do Muro de Berlim. Os jornais, sempre tão preocupados com efemérides, deixaram passar esta em brancas nuvens. A Folha de São Paulo, por exemplo, deu cinco colunas de meros nove centimetrinhos ao assunto, e isso porque o repórter foi subsidiado pelo Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. Não fosse a mordomia, a Folha sequer lembraria o fato. O Estadão foi acometido de uma amnésia profunda: nem um pio. Pelo jeito, alguém por lá andou lendo a Folha e, um dia após a data, resolveram correr atrás do prejuízo. Apelaram a um redator americano, para tratar do assunto, Roger Boyes, do The Times. Os jornais estão preferindo reservar páginas inteiras, nestes dias, à agonia de um terrorista corrupto, Arafat, que carreou milhões de dólares de ajuda internacional à Palestina para suas contas secretas na Suíça.

Escreve-me o leitor Marco Aurélio Antunes, que não tem medo de ter memória:

Prezado Janer:

Ontem, dia 9 de novembro, lembrei os quinze anos da queda do Muro de Berlim, e a minha interpretação sobre o assunto gerou muita polêmica em grupos de debates na Internet.
Penso que a queda do Muro de Berlim foi um fato importante, que significou o fim do totalitarismo comunista. Mas há pessoas que, seguindo as teorias de Anatoliy Golitsyn, autor do livro New lies for old, afirmam que foi tudo uma farsa, uma "estratégia" para enganar o Ocidente, e que o comunismo retornaria no futuro. Acredito que a queda do comunismo aconteceu por causa da ineficiência intrínseca do sistema, incapaz de gerar riqueza, o que, aliás, já fora mostrado pelos economistas liberais austríacos na primeira metade do século XX.
Eu gostaria de saber a tua opinião sobre o significado da queda do Muro de Berlim. Vi no teu perfil do Orkut uma foto tua junto ao Muro. Eu gostaria que tu escrevesses sobre o assunto no teu blog.



Marco:

na foto me vês dando uma mãozinho, ainda que simbólica, à História. Não pude resistir. Em janeiro de 90, quando parte do muro ainda estava em pé, me muni de um martelo e fui lá quebrar meus cacos. A solidez do Muro era tal que quase rebentei os dedos para extrair quatro míseros caquinhos. A meu ver, foi a segunda data mais significativa do século, se considerarmos a Revolução de 17 como a primeira. Vários jornais europeus consideraram o fato e suas decorrências como a segunda revolução do século XX. Em nossa imprensa, perplexidade, luto, dores pungentes no fundo do coração.

Já fiz várias vezes esta experiência: perguntar a pessoas de minha idade, ou mais jovens, a universitários e jornalistas, o que ocorreu em Nove de Novembro de 1989. A data é até fácil de guardar, por ser aliterante. Ninguém lembra, ninguém sabe, ninguém viu. 11/9 todos lembram. 9/11 já está enterrado nos escaninhos da memória. Ocorre que o 9/11 transformou muito mais o mundo e o século que o incidente do 11/9. Parece que professor algum, jornalista algum, percebeu a importância do fato. Ou, propositadamente, o omite a seus alunos e leitores. Não é de espantar. Imprensa e universidade brasileiras estão contaminadas até os ossos pela nostalgia do comunismo. Viúvas sofrem muito ao relembrar a morte do marido.

Golitsyn pertence à mesma estirpe destes autores que afirmam ter sido Bush quem mandou destruir as Torres Gêmeas, que avião algum foi lançado contra o Pentágono, que a viagem à Lua foi um filme feito por Kubrick. Estranhamente, sempre encontram editores sem escrúpulos, que sabem que ficção sempre vende. (Nada contra a ficção. O problema é produzir versões ficcionais da História, como se História fossem).

Em verdade, o Nove de Novembro foi elegido como data histórica por seu caráter emblemático. O mundo soviético há muito vinha desmoronando, rangendo em suas estruturas. Antes da queda do Muro, alemães do Leste e poloneses fugiam para o Ocidente, via Hungria, que tinha fronteiras mais complacentes. A antiga Iugoslávia era outra porta de entrada para a Europa rica e livre. Hungria, a ex-Tchecoeslováquia e a Polônia já migravam, pouco a pouco, para uma economia de mercado. A vida - dizia-se na Europa - é como uma viagem aos países do Leste: curta e cheia de aborrecimentos. Mas Budapeste, Praga ou Varsóvia já eram palatáveis ao viajante acostumado às liberdades da Europa de cá.

O socialismo soviético caiu de podre. O Nove de Novembro é apenas o evento mais espetaculoso do processo todo. A solidez estúpida daquele muro lhe dava uma certa aparência de eterno. Não era. O comunismo, muito menos. Em parâmetros históricos, durou o que duram as rosas. Este pensamento obsoleto, hoje, só sobrevive nas universidades brasileiras e republiquetas tipo Venezuela, Cuba ou Coréia do Norte.

Abraço, Marco.