¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, novembro 27, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXXVI)


Estocolmo - Cheguei em Estocolmo em um dezembro glacial, em 1971, após revirar a Europa a partir de Barcelona. Não sei como é a vida em Plutão, mas me parecia ter chegado lá. Fugia do Brasil e pretendia instalar-me em um país qualquer longe daqui. Minto, não era para um país qualquer. Estava com a Suécia na cabeça, obsessão irremediável. Hoje, tentando analisar o que me levou até lá, tenho de admitir: a mesma sexualidade submetida a uma camisa de força, que me fez rejeitar o cristianismo, me impeliu ao então chamado paraíso do amor livre. "Quando o sol se deita atrás dos fjordes, que mais resta senão ir para a cama e fazer amor?" - dissera uma atriz norueguesa. Minha pátria é a Escandinávia, pensei. De mala e cuia, para lá rumei, com a decisão de não mais voltar ao país do carnaval e do futebol.

Na mala, dois livros, meus últimos elos com a língua e com o continente sul-americano. O Martín Fierro e a Poesia Completa, de Pessoa. Partia para não mais voltar e precisava de algum antídoto contra a nostalgia. Foram certamente meus melhores companheiros de exílio. Em meio ao silêncio e à solidão glacial de uma cidade hirta de neve, nada melhor para aquecer a alma que um poema em língua da infância.
As fronteiras, afirmei no início destas reflexões, geram dois tipos de homem. Pertenço à segunda espécie, a daqueles que querem ver o lado de lá. Se na época das navegações Magalhães quase havia completado uma volta ao mundo, não me parecia ser difícil, na era da aviação, dar uma espiadela nas antípodas. Meus primeiros estímulos foram recebidos de pessoa que certamente não lembra meu nome, muito menos meu rosto. O que não deixa de ser significativo: muitas vezes jogamos algumas palavras ao léu, sem notar que um outro as colhe.
Nos dias da Universidade Livre da Praça da Alfândega, como chamávamos aquela pracinha ao lado dos Correios, surgiu em Porto Alegre um retornado de Moscou, o José Monserrat Filho, formado em Direito Espacial. Se na época a especialização me parecia solene, hoje a vejo com certa distância, tipo um ofício promissor caso algum satélite americano colidisse com um russo e a ONU ou o Tribunal de Haia tivessem poderes para dirimir a pendenga. Monserrat voltava da universidade Patrice Lumumba, estava ali a meu lado nas madrugadas do Café do Matheus, falava de um universo lá do outro lado do planeta. Adolescente, me era difícil conceber que aquele gaúcho, falando um português como o meu, falava também russo e vivera durante anos numa sociedade socialista. Sentia-me diante de um ser de ficção. No entanto ali estava o homem, concreto, de mão e ombros ao alcance do abraço, falando de sua experiência soviética.
Se por um lado me incitava a viajar, Monserrat terá provocado minha primeira desilusão face ao comunismo. Na Patrice, imaginava este ingênuo, cada estudante teria seu quarto individual, onde poderia receber não só amigos, mas principalmente amigas, e esta era minha concepção de paraíso, um território onde se pudesse dar livre expansão ao sexo sem cães de guarda por perto. O jurista intergalático foi franco: que não me iludisse, os universitários da Patrice viviam em quartos de seis, divididos em dois ou três beliches. Alojamentos a nível de paraíso, só para os príncipes africanos, que podiam inclusive levar seus haréns. Se Moscou queria influir no mundo muçulmano, não podia cortar as regalias dos fiéis ao Islã.
Naquela madrugada, a utopia soviética caiu uns 50 pontos em meu imaginário. Mais tarde, soube que os moscovitas não-participantes da Nomenklatura dispunham em média de cinco metros quadrados para habitar. Ora, em Porto Alegre, mesmo nos dias mais duros de universidade, sempre dispus de pelo menos uns vinte metros quadrados para exercer minha privacidade.
Mesmo assim, pedi bolsa a Moscou. Sair do Brasil sempre seria mais interessante do que ficar. Não fui selecionado. Só em Estocolmo fui descobrir que os deuses do Ocidente zelavam por mim.
No paraíso sexual-democrata, convivi com brasileiros que voltavam da Patrice. Terminado o curso em Moscou, não podiam ficar em território soviético. Muito menos voltar ao Brasil, naqueles dias de regime militar. Permaneciam no limbo dos internationela diskare. Em bom português, lavadores internacionais de pratos, vagando entre Paris e Berlim, Londres e Estocolmo, recebendo esmolas das social-democracias européias. Universitários latino-americanos que jamais se submeteriam a lavar uma louça em suas próprias casas, mas orgulhosos de estar na Suécia lavando pratos para estrangeiros. O que talvez explique em parte o alto nível de suicídios de latinos na Europa. Volto ao Martín Fierro de minha infância:

sangra mucho el corazón
del que tiene que pedir.