¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, dezembro 14, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXXVII)


Nos anos 60, a social-democracia sueca, em uma tentativa de captação de mão-de-obra barata, desfechou uma ofensiva de charme nos países do Terceiro Mundo. Jornalistas e escritores apressados louvavam o bem-estar sueco, sua legislação trabalhista, a libertação da mulher e, last but not least, a revolução sexual. Isca infalível dos pragmáticos luteranos lançada aos países latinos e africanos, católicos e muçulmanos e, antes de mais nada, pobres. Ocorre que sem a mão-de-obra do migrante não há paraíso. Os marxistas pretendiam ter uma solução ao problema, Lênin sonhava com uma sociedade em que o pedreiro seria também engenheiro. Delírio demagógico: o pedreiro jamais terá tempo para estudar engenharia e o engenheiro estaria dilapidando sua instrução caso se dedicasse a empilhar tijolos.

Utopistas mais contemporâneos imaginam que a máquina substituirá o trabalho escravo. Pode ser. Mas sempre alguém terá de tirar o lixo das ruas ou limpar latrinas, ainda que com máquinas. Os europeus decidiram que este alguém é o imigrante. A este pobre diabo, oferecem salários e condições de trabalho que ele jamais teria em seu país. No caso da Escandinávia, um aceno erótico de brinde, as adoráveis louras nórdicas. Meu conflito com a Suécia foi elementar: eu queria apenas as louras, sem o ônus do trabalho vil.

Enfim, nem tanto elas. A Suécia tinha outro apelo poderoso. Nem só de mulher vive o homem. Pertenço a uma geração fascinada pelo cinema. Mais que os livros, foram os filmes que nos jogaram na vida. Paralelamente à literatura, tínhamos como mestres Chaplin, Buñuel, Bergman, Fellini, Kurosawa, Louis Malle, o confuso Goddard, e até mesmo o chato e hoje insuportável Antonioni. Serei cineasta, pensei então, vou estudar com Bergman, minha visão de mundo eu a transmitirei em fotogramas.

Santa ingenuidade. A Suécia, a rigor, me queria como lavador de pratos ou algo próximo. Fiz um semestre de Filmvetenskap - Ciência (sic!) do Cinema - na Stockholms Universitet. Pura teoria. Ao intuir que saíria de lá com muita erudição em história do cinema, mas sem saber como abrir uma lata de negativos, fiz as malas e voltei. Se jamais lavei pratos em casa, não iria lavá-los para estrangeiros. Não poucos brasileiros e latino-americanos aceitaram este e outros trabalhos servis como uma iniciação à Europa. Certa noite, em um hotel medíocre da Rue Cujas, em Paris, encontrei como porteiro de noite Gerd Bornheim, gaúcho, meu professor de filosofia cassado em 68. Este jamais foi meu projeto. Da Europa queria cultura, não sustento.

Cinema, antes de ser talento é dinheiro. Na cobertura de um festival de Cannes, ao perceber que a verba de publicidade de um Apocalypse Now, por exemplo, financiaria uns dez longa-metragens no Brasil, perdi qualquer veleidade pela arte. Pelo menos por enquanto, cinema é luxo não permissível ao que os europeus chamam de Terceiro Mundo. Às vezes, em um aceno de paternalismo, Cannes ou Berlim premiam alguma produção barata contestando o Estado, geralmente financiada pelo próprio Estado.

Melhor escrever. Que mais não seja, sai mais barato produzir uma obra tendo como infra-estrutura uma cadeira e uma mesa, máquina e papel. A decisão dependeu em boa parte de uma suissesse, Federica de Cesco. Colega de aulas de sueco, ela estava em Estocolmo para escrever um romance ambientado em aeroportos internacionais. Fazíamos exercícios de gramática, quando ela disse ser forfättarina. O que em sueco quer dizer escritora. Como jamais havia visto uma suíça de perto, menos ainda uma escritora suíça, perguntei quantos livros escrevera.

- Vinte e cinco. Estou redigindo o vigésimo oitavo e com dois no prelo.

Decidi examinar mais de perto a promessa do Simenon de saias. Em seu apartamento, uma prateleira exibia dezenas de exemplares de algumas traduções de alguns de seus livros. E eu jamais ouvira falar da Federica.

- É normal. Tudo o que escrevo não tem importância alguma. Escrevo para meu sustento. Não tenho nada a dizer a ninguém.

Em quanto tempo escrevia um livro?

- No tempo que o editor pedir. Se quiser em quatro semanas, O.K.

Latino e cheio de depoimentos a prestar sobre o pretendo paraíso social escandinavo, pareceu-me que também poderia escrever. Deste encontro surgiu O Paraíso Sexual Democrata. Havia lido dezenas de livros sobre a Suécia antes de rumar ao éden nórdico. Nenhum deles mostrava o que eu via. Havia uma outra motivação poderosa. Ao voltar a Porto Alegre e ver, na Rua da Praia, sempre as mesmas gentes rumando nas mesmas horas ao mesmo trabalho, precisei convencer a mim mesmo que um dia havia saído de lá.

O livro foi aceito pelo primeiro editor que procurei no Rio. Para uma primeira obra de um autor desconhecido, foi longe: teve quatro edições no Brasil e uma tradução na Argentina. Ingênuo atroz, precisei de alguns anos para descobrir o porquê. Ao criticar a social-democracia sueca, eu oferecia um regalo divino aos marxistas. Sem ser comunista nem compagnon de route, prestei bons servicos a uma causa estúpida.

De Cesco, sem saber, conduziu-me a uma outra viagem, esta na geografia. Só um de seus livros lhe agradava, era sobre o Saara argeliano, mais precisamente sobre os tuaregues da região de El Hogar. Alguns anos depois, já em Paris, fui lá conferir. O deserto mexe com nossas camadas místicas. Há muito estava liberto da crença. Mas me ocorreu que, se Deus existisse, teria nascido naquelas paragens lunares. Não estava muito longe da verdade. As três religiões mais influentes do mundo contemporâneo nasceram de civilizações do deserto.

Viajando e conhecendo gentes, concluímos que a concepção de espaço sempre vai depender das dimensões do país que uma pessoa habita. Para um francês, por exemplo, cujo território tem no máximo mil quilômetros entre as extremidades mais longínquas, Estocolmo fica dans le bout du monde. Para um panamenho em Paris, até Amsterdã está longe. Já para um brasileiro, ir de Lisboa a Oslo é como não ter ainda saído do próprio território. Em um retorno ao Brasil, no Eugênio C, costeamos o continente a partir do Nordeste, o que dá dois dias de navegação até o Rio. Uma francesa me perguntava: ce pays ne finit jamais?

E tínhamos mais dois outros dias até o porto de Pelotas, no extremo sul.