¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, março 06, 2005
 
ANAFABETISMO CONTAMINA

Fernando Henrique Cardoso é homem culto e - obras de sua juventude marxista à parte - raramente escreve bobagens. Neste domingo, em artigo para O Estado de São Paulo, intitulado "Democracia e Terrorismo", escorregou na História. Assim termina seu artigo:

"A Espanha heróica que, na pessoa de Miguel Unamuno, um de seus maiores pensadores, se indignou com os que proclamaram, durante a guerra civil, 'Viva a Morte! Abaixo a Inteligência!', haverá de inspirar-nos, una vez mais, para a reafirmação da esperança na paz, na democracia ou na vida".

Marxismo é como caxumba - costumo afirmar - ou dá na idade certa ou deixa seqüelas. FHC, pelo jeito, persistiu no obscurantismo além da idade normal do fenômeno. De seu artigo se depreende que um Unamuno republicano enfrentou, na Universidade de Salamanca, perversos militantes franquistas. A verdade histórica é bastante diferente.

A Guerra Civil Espanhola, fracassada tentativa de Stalin de pôr os pés na península ibérica e controlar o continente europeu, foi pródiga em mitos. Um deles, alimentado e realimentado pela imprensa durante décadas, é o famoso episódio de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, sendo desafiado pelo general "franquista" Millán Astray, com a frase não menos famosa: Viva la muerte! Muera la inteligencia! Ponho franquista entre aspas, pois se havia algum franquista naquela cerimônia, realizada no dia 12 de outubro de 1936 - Día de la Raza - este era Unamuno, que naquele momento representava oficialmente o general Franco. O reitor foi salvo da ira de Astray e da vaia de muitos dos presentes por Doña Carmen Pollo, mulher de Franco, que o conduziu pelo braço até uma viatura do Quartel General. No entanto, ao referir-se ao episódio, não há redator que não se refira ao "intelectual anti-franquista Miguel de Unamuno".

FHC não contou a história toda. Em História Ilustrada de la Guerra Civil, Ricardo de Cierva considera o episódio maltratado pela propaganda, silenciado pelos testemunhas autênticos e tergiversado por comentaristas empenhados em com ele demonstrar uma ou várias teses preconcebidas.

"Celebrava-se no Paraninfo da Universidade de Salamanca a Fiesta de la Raza. Assistia o ato a esposa do recém nomeado chefe de Estado, Dona Carmen Polo de Franco. Presidia a cerimônia o reitor da Universidade, don Miguel de Unamuno. Também estavam presentes, entre outras personalidades, José María Pemán e o general Millán Astray. Este último, em um breve discurso, intercalou um inciso inoportuno no qual confundiu regionalismo com separatismo. Invocou logo a Morte, noiva de sua Legião. Feito o silêncio, todos os olhares convergiram para don Miguel de Unamuno".

Millán Astray era um general de Infantaria, que havia participado das campanhas das Filipinas e Marrocos. Nesta última, perdera um olho e um braço. Julián Zugazagoitia o descreve como um "general recomposto com garfos, madeiras, cordas e vidros". Em sua alocução, falara dos dois cânceres que corroem a Espanha: País Basco e Catalunha. Unamuno, basco e iracundo, tomou a palavra.

- Calar, às vezes, significa mentir - disse o reitor com voz firme - porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência. Eu não poderia sobreviver a um divórcio entre minha consciência e minha palavra, que sempre formaram um excelente par. Serei breve. A verdade é mais verdade quando se manifesta desnuda, livre de adornos e palavrório. Gostaria de comentar o discurso - para chamá-lo de alguma forma - do general Millán Astray, que se encontra entre nós.

Segundo o relato de Luis Portillo, em Vida y martírio de don Miguel de Unamuno, o general tornou-se rígido.

- Deixemos de lado - continuou Unamuno - o insulto pessoal que supõe a repentina explosão de ofensas contra bascos e catalães. Eu nasci em Bilbao, em meio aos bombardeios da segunda guerra carlista. Mais adiante, me casei com esta cidade de Salamanca, tão querida, mas sem esquecer jamais minha cidade natal. O bispo, queira ou não, é catalão, nascido em Barcelona.
Após uma pausa em meio ao silêncio tenso, continuou:

-Acabo de ouvir o grito necrófilo e sem sentido de Viva a Morte! Isto me soa o mesmo que Morra a Vida! E eu, que passei toda minha vida criando paradoxos que provocaram o enfado dos que não os compreenderam, tenho de dizer-lhes, como autoridade na matéria, que este ridículo paradoxo me parece repelente. Posto que foi proclamado em homenagem ao último orador, entendo que foi dirigida a ele, se bem que de uma forma excessiva e tortuosa, como testemunho de que ele mesmo é o símbolo da morte. E outra coisa! O general Millán Astray é um inválido. Não é preciso dizê-lo em tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Mas os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, há hoje em dia inválidos demais na Espanha e logo haverá mais, se Deus não nos ajuda. Um inválido que careça da grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem - não um superhomem - viril e completo apesar de suas mutilações, um inválido, como disse, que careça dessa superioridade do espírito, costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados em torno a si. O general Millán Astray gostaria de criar uma Espanha nova - criação negativa, sem dúvida - segundo sua própria imagem. E por isso desejaria ver uma Espanha mutilada, como inconscientemente deu a entender.

Astray não consegue conter-se e grita:
- Morra a inteligência!
José María Pemán corrige:
- Não! Viva a inteligência! Morram os maus intelectuais!
Há um alvoroço no Paraninfo, professores togados cercam Unamuno, os camisas azuis se juntam em torno a Astray. Unamuno retoma a palavra:

- Este é o templo da inteligência. E eu sou seu sumo sacerdote. Vós estais profanando seu recinto sagrado. Eu sempre fui, diga o que diga o provérbio, um profeta em meu próprio país. Vencereis mas não convencereis. Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis, porque convencer significa persuadir. E para persuadir, necessitais algo que vos falta: razão e direito de luta. Me parece inútil pedir-vos que penseis na Espanha. Tenho dito...

A esposa do general Franco, rodeada por sua escolta, toma Unamuno pelo braço e o conduz até a porta da Universidade, onde o esperava um carro do Quartel General. Mas a narração soa melhor aos ouvidos dos leitores - amestrados por um pensamento de esquerda - mostrando Astray como franquista, afinal era general. Unamuno - basco, filósofo e reitor de uma universidade - só poderia ser anti-franquista. Para vender, os jornais transmitem ao leitor o que o leitor gosta de comprar. A mentira impressa passa então a fundamentar teses e tende a fixar-se como História. Mas os fatos são teimosos e, mais dia menos dia, mostram sua verdadeira face.

Há um sofisma safado na frase final de FHC. Ele mescla realidades completamente distintas. Ao falar "na Espanha heróica que, na pessoa de Miguel de Unamuno, se indignou...", está falando em verdade na Espanha do gerenalíssimo Franco Franco de Bahamonde - que salvou a Espanha e a Europa do totalitarismo soviético - e que naquela cerimonia era representado oficialmente por Unamuno. Mas FHC jamais admitiria tal fato. Seria renegar toda sua vida. Conclui então sua frase com outra completamente oposta: "...se indignou contra os que proclamaram, durante a guerra civil, 'Viva a Morte! Abaixo a Inteligência!". A frase, proferida no ardor do debate, é de uma infelicidade extrema. Mas Millán Astray e José Maria Pemán, naquele momento, representavam o pensamento do mesmo Francisco Franco que Unamuno representava. Ambas as partes defendiam o mesmo lado. O qüiproquó era outro: o confronto entre os nacionalismos do galego - como Franco - Millán Astray e do basco Miguel de Unamuno.

É difícil conceber como um acadêmico do porte de Fernando Henrique tenha repetido mais uma vez este embuste. Serão seqüelas de sua caxumba temporã. Ou, quem sabe, à força de debater com Lula, está sendo contaminado por seu analfabetismo. Na mais benévola das hipóteses, está mal servido de ghostwritters.