¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, março 20, 2005
 
MÃE PEDE PUNIÇÃO CRISTÃ AO PAPA


A presidente das Mães da Praça de Maio da Argentina, Hebe de Bonafini, demonstrou ser pessoa de excelente formação cristã, nesta sexta-feira passada, ao dizer que o Papa João Paulo II "vai morrer queimado no inferno, incendiado, incinerado por tudo o que diz". Ou seja, desejou à Sua Santidade tudo que sua Igreja um dia desejou a quem dela ousasse discordar: morrer pelo fogo e ir para o inferno. Este cristianíssimo desejo não deixa de ser interessante. Se deixarmos de lado as idéias incendiárias desta santa senhora, não seria mau que Sua Santidade tivesse um colóquio com o Adversário. Afinal, segundo os Evangelhos, foi o único interlocutor que Cristo aceitou por quarenta dias seguidos. Papo desinteressante não deve ter sido. Aliás, entre Jeová e Satã, eu sempre preferi o Tentador. Jeová troveja, ordena, prende e arrebenta. Satã, mais sutil, tenta, usa da sedução. E o ser humano, evidentemente, sempre preferirá ser seduzido a ser humilhado.

E por que assim se manifestou esta digníssima mãe? Ocorre que um capelão do Exército argentino, Antonio Baseotto, andou sugerindo jogar ao mar o ministro da Saúde, Ginés González García, por causa de sua posição a favor da descriminalização do aborto. E a expressão "jogar ao mar" fere fundo na Argentina, cujos oficiais foram acusados de jogar ao mar os opositores políticos na ditadura Argentina dos anos 70. Verdade que não se viu corpo algum de volta à praia. Existe crime sem cadáver? Normalmente, não. Mas quando estão em jogo interesses das esquerdas, não é preciso cadáver para acusar alguém de um crime. Aliás, está se revelando uma estratégia eficaz acusar pessoas de crimes que, por sua natureza, não podem ser provados. Onde estão os cadáveres dos 19 ianomâmis massacrados em 93? Em parte alguma, pois os ianomâmis costumam incinerar seus mortos. Onde estão as cinzas dos mortos? Em parte alguma, pois os ianomâmis costumam comer as cinzas de seus mortos.

Mas não reside na ameaça do capelão a irritação da senhora Bonafini. Afinal, se recorrermos ao passado, esta história de jogar ao mar não é nada original. Já está na Bíblia. Ameaçados em meio às ondas por uma forte tempestade, os gentios não hesitaram em jogar Jonas ao mar para acalmá-lo. Verdade que Jeová o resgatou através de um providencial peixe que o engoliu. Após três dias, ordenou ao peixe que vomitasse Jonas, e assim foi feito. Por mais que as mães da Praça de Maio tenham implorado ao mar que vomitasse algum cadáver de seus filhos, o mar del Plata, menos complacente que Jeová, não vomitou ninguém.. Não, não foi por isso que a senhora Bonafini desejou a Sua Santidade um fim tão candente.

E sim porque o Vaticano, para o qual jogar ao mar é método bastante familiar - aliás registrado no Livro - decidiu apoiar o pronunciamento do bispo militar da Argentina. Quem sabe jogando ao mar um ministro se aplaque a fúria abortista das mães argentinas, como se acalmou Jeová nos tempos bíblicos com a entrega de Jonas, deve ter sido este o pensamento dos misóginos da Santa Sé. "Não há perdão possível, nem de Deus para a decisão tomada pelo Vaticano", disse a presidente das Mães da Praça de Maio. Demonstrando ser efusiva simpatizante dos métodos usados pela Igreja na Idade Média, declarou alto e bom som à imprensa: "Nós queremos que o Papa queime vivo no inferno". O que deve ter provocado interessantes discussões teológicas nos corredores do Vaticano. Afinal, antes de mandar os dissidentes para o inferno, a Igreja os queimava aqui na terra mesmo, em fogo lento, para que fossem se acostumando à temperatura ambiente no Hades.

Não tenho simpatia nenhuma por este senhor que ocupa o trono de Pedro. Se se dirigisse a seus fiéis em seus pronunciamentos, eu nada teria a ver com o assunto. Ocorre que fala urbi et orbi. Se dirige aos Estados do planeta todo e quer impor a todo ser humano sua visão de mundo. Bush, manda-chuva de um império mais imponente que o vaticano, pelo menos é mais modesto. Suas arengas contra o aborto, relações pré-matrimoniais e homossexualismo se referem apenas ao território que governa, os Estados Unidos. João Paulo II, neste sentido, em nada difere dos aiatolás iranianos ou mulás árabes, que até agora não conseguem separar Igreja de Estado.

A separação entre clero e laicato, que foi um dos mais poderosos fatores de progresso da Europa, data do século XI. Curiosamente, não foi iniciativa de leigos, mas obra do papa Gregório VII. A chamada reforma gregoriana visava subtrair a Igreja à dominação dos leigos e, principalmente subtrair o papado romano das pretensões do imperador germânico. Dez séculos depois, vemos João Paulo tentar destruir a obra de seu predecessor, ao pretender submeter o laicato internacional ao cetro vaticano.

Esta confusão entre Igreja e Estado origina-se de uma outra anterior, a confusão entre Ética e Direito. Recebo pilhas de e-mails de leitores católicos, alguns dos quais me têm em grande apreço, defendendo a exótica idéia de que aborto é crime. Leitores, em geral jovens, desconhecem a definição de crime: crime é o que a lei define como tal. Assim, nos países em que a lei define o aborto como crime, o aborto é crime. Nos países cuja legislação não o define como crime, não é e ponto final. E estes países são, em sua maioria, os que costumamos chamar de civilizados.

Ora, alegam os leitores, é um crime perante a Ética. Qual ética? - pergunto. A ética do leitor, evidentemente. Mas as éticas são muitas e não constituem sistemas normativos. Um leitor pode achar o aborto antiético, mas transgressões éticas não comportam sanções privativas de vida ou liberdade. Só se pode pôr alguém na cadeia ou na cadeira elétrica por uma transgressão ao Direito, jamais à Ética. Bem entendido, os sistemas jurídicos também são muitos. No Brasil, para não ir mais longe, aborto é crime. Mas se amanhã o Parlamento decidir que não é, deixa de sê-lo. E os católicos que enfiem a viola no saco.

Não tenho muitas simpatias por aquele senhor, dizia. Mas também não participo dos cristianíssimos desejos de Doña Bonafini, de impor ao Sumo Pontífice as cristianíssimas punições pelo fogo e pelo inferno, outrora propostas pela Santa Sé.

Mas que este senhor devia ser submetido a tribunal de crimes contra a humanidade, isto devia. O Papa, ao manifestar-se contra políticas de natalidade e preservativos, tem provocado genocídios múltiplos, particularmente no Terceiro Mundo e nos países africanos onde grassa a Aids. Porque no Primeiro suas homilias já são motivo de chacota.

Ateu sendo, advogo para João Paulo um tribunal civil e punições escritas não em livros sagrados - como Doña Bonafini - mas no Código Penal.