¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, abril 02, 2005
 
REJUBILAI-VOS, CARÍSSIMOS!


Em A Peste, de Albert Camus, o padre Paneloux faz uma longa exposição sobre os flagelos que acometeram os homens por vontade divina. Como o Cristo, ele aceita passivamente o Mal, sem mesmo se interrogar sobre as eventuais motivações da divindade. Se o Cristo, em um momento de sua agonia, deixa escapar o lamma sabachtani, Paneloux morrerá sem uma só palavra nos lábios.

"Há muito tempo, os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, de se obter a eternidade. Aqueles que não haviam sido atingidos se enrolavam nos lençóis dos pestíferos para terem a certeza da morte. Sem dúvida, este desejo furioso de saúde não é recomendável, pois denota uma deplorável precipitação, bem próxima do orgulho. Não se deve ser mais apressado do que Deus. Tudo o que pretende acelerar a ordem imutável, estabelecida de uma vez por todas, conduz à heresia. Mas este exemplo, pelo menos, traz sua lição. Para nossos espíritos mais clarividentes, faz luzir este brilho delicado de eternidade que jaz no fundo de todo sofrimento. Esta luz ilumina os caminhos crepusculares que conduzem à libertação. Ela manifesta a vontade divina que, sem falhar, transforma o mal em bem".

Cristão não sendo, não vejo motivo algum para alguém enrolar-se em lençóis pestilentos para apressar o encontro com a eternidade. Mas dou razão ao padre Paneloux e aos cristãos da Abissínia. Se a eternidade é o sumo bem, melhor apressar a viagem até ela. Neste gosto pela morte reside a lógica do cristianismo, cujos praticantes bebem sangue, comem carne humana e têm como símbolo um instrumento de tortura.

Com a morte, já tenho intimidade suficiente. Os três seres mais queridos que um ser humano tem, ela já os ceifou. Agora só resta minha vida, o que para mim será refresco. Não tenho veleidade alguma de eternidade. Aliás, considero que vida eterna deve ser algo de uma monotonia insuportável. Suponho inclusive que o mais ardente desejo de um homem que fosse eterno seria o de morrer logo.

Perdi recentemente minha mulher, a companheira que elegi em meus jovens anos e que me acompanhou por quase quatro décadas - e por mais décadas me acompanharia, não fosse a visita da Indesejada das Gentes. Em função de seu trabalho, ela tinha relações no país todo. Mal começou a morrer, surgiram grupos de oração em várias cidades, todos desejando sua pronta volta à saúde. E mais: todos acreditando que teriam suas preces atendidas pelo tal de Ser Supremo. O segredo, segundo os crentes, era manter uma disposição positiva ante a doença e ela logo retornaria à vida plena. Para mim, que aceito a morte como uma decorrência natural da vida, tais correntes me aborreciam. Mas evidentemente não podia reclamar. Todas aquelas pessoas que oravam estimavam profundamente minha mulher e, do fundo de seus corações, a desejavam de volta. Como reclamar?

Houve até quem dissesse: "Estamos gastando todos nossos créditos junto ao Poderoso". A expressão até que me surpreendeu, pois jamais imaginei que o tal de Poderoso funcionasse como uma espécie de banco. Se este alguém apostou realmente todos seus créditos, hoje deve estar falido.

As preces foram inúteis, como são todas as preces. Por ocasião de seu passamento, a visão dos crentes mudou em segundos. "Não te preocupa. Agora ela vai ter muita luz. Vai se encontrar com a felicidade". Sem falar que minha Baixinha adorada era fotófoba e não levara óculos escuros nesta sua última viagem, outra preocupação me assaltou: mas se agora ela vai ser feliz, porque vocês oravam para que ela permanecesse aqui sofrendo? Não seria um gesto de humanidade orar para que morresse logo, para que seu sofrimento se abreviasse, para se encontrasse rápido com a suposta felicidade? Pensei isto, mas nada disse. Não era o momento de questionar a falta absoluta de lógica daqueles seres que, naquela ocasião, sofriam junto comigo sua morte.

Celebrar a morte - dizem os teólogos - é celebrar um encontro, o encontro pelo qual ansiamos por toda a vida. Encontro com Deus, nosso Criador e Senhor. Assim sendo, não consegui entender essas multidões chorando junto ao Vaticano e em todas as capitais do mundo, rezando pela recuperação de Sua Santidade João Paulo II. Já quase moribundo, o coitado tentava falar às multidões, quando mal conseguia respirar. Em seu esforço desesperado para emitir algum som - desesperado e inútil, pois sua garganta perfurada por uma cânula não mais o obedecia - sua boca parecia a de um peixe estertorando fora d'água. Sua miséria física era tal, que as autoridades vaticanas pediram aos fotógrafos evitar closes de seu rosto enrijecido pela enfermidade. Orar para que permanecesse é, a meu ver, demonstração de insólita crueldade. Pois nenhum leigo ignora que, se vivo permanecesse, o papa estaria reduzido a um estado vegetal.

Com seu fascínio pelas multidões, João Paulo promoveu um show midiático, com o exibicionismo de sua morte. A morte é algo pessoal, um momento privado, que o Papa insistiu em tornar obscenamente público. Se orassem para que o homem partisse, eu entenderia. Para que se libertasse desse sofrimento insano que se abate sobre sua carcaça mortal. Sacerdote de tão santos propósitos, certamente será recebido com todas as honrarias pelo deus do qual é vice. Se até o Deus encarnado morreu, porque não morreria seu lugar-tenente?

"Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" - pergunta-se Paulo em sua Iª Epístola aos Coríntios. Não se fazem mais Paulos como antigamente. Quando a televisão nos mostra multidões choramingando a morte de Sua Santidade, vemos que ninguém mais se deixa enrolar pela fanfarronice de Paulo. Quando um católico reza para que um moribundo não morra é porque não deposita muita confiança nessas promessas do Além.

Continua o apóstolo: "Quando este corpo corruptível se tiver revestido de incorruptibilidade e este corpo mortal se tiver revestido de imortalidade, então cumprir-se-á a palavra da Escritura: A morte foi tragada pela vitória". Se assim fosse, a morte de João Paulo seria motivo de júbilo. Mas o pranto dos crentes atesta a vitória incontestável da morte.

Confesso que acho muita graça na atitude destes senhores que crêem ser a morte um encontro com o Eterno, mas na hora do Jesus-está-chamando recorrem a medicinas de ponta. "Não se deve ser mais apressado do que Deus", dizia Paneloux. Mas tampouco me parece que um cristão deva opor-se aos desígnios divinos. A menos que queiram impor a João Paulo a agonia que foi imposta a outros valiosos instrumentos de Estado, como Francisco Franco e o marechal Tito. Era preciso mantê-los vivos enquanto não se decidia quem seriam seus sucessores. E foram sendo esquartejados aos poucos, pelo encarniçamento médico.

"Ele já vê e toca o Senhor", disse ontem o cardeal Camilo Ruini. Rejubilai-vos, caríssimos. Alegrai-vos como me alegrei, quando o rosto de minha Baixinha querida pendeu para o lado, a vida abandonou seu corpo que tanto sofria e ela rumou serenamente ao Grande Nada.

Quanto a vós, católicos, o Todo-Poderoso assim o quis. Que mais não seja, mais alguns dias e tereis outro para chorar.