¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, maio 02, 2005
 
AOS FUNDAMENTALISTAS



Em minha última crônica, escrevi que, como dizia D. Estevão Bettencourt, nem o manso Santo Agostinho levantara sua voz contra a Inquisição. Imediatamente recebi a correção de um leitor atento, lembrando que Agostinho morrera nove séculos antes.

Foi evidentemente um lapso de digitação. Tanto que a frase correta estava logo no início do artigo: "É de notar que nenhum dos Santos medievais (nem mesmo S. Francisco de Assis, tido como símbolo da mansidão) levantou a voz contra a Inquisição". Assim escreveu D. Estevão. Frase correta, mas não muito. Ocorre que São Francisco morrera nove anos antes da instalação da Inquisição. Deixei-me enlevar pela erudição de D. Estevão e errei duas vezes. Uma por distração, outra por não checar a informação do prelado.

Errar é humano e não há quem escreva, seja jornalista ou prelado, que não tenha cometido erros ao longo de seu ofício. A Folha de São Paulo, por exemplo, dedica um espaço diário para corrigir os erros de cada edição, prática que deveria ser seguida por todo o jornalismo. Agradeci ao leitor e pedi correção ao editor. O insólito veio mais tarde. E-mails e cartas cheias de gozo invadiram meu correio e a seção de Cartas do midiasemmáscara. Por exemplo:

"O senhor é um ignorante pretencioso (sic!) ou apenas um mentiroso". Ou: "A sua falta de conhecimento histórico só é ultrapassada pela vontade de denegrir a Igreja". Ou ainda: "O restante de seus argumentos são tão ou mais estúpidos que este. Reconheça que nada sabe sobre cristianismo ou qualquer religião". O tom das mensagens foi de júbilo. Cristaldo errou: a Igreja está salva. Nenhum destes leitores insistiu em desqualificar o artigo de D. Estevão, que também incorria em erro.

Meu erro foi oportuno. Trouxe à tona um núcleo duro de leitores que não só aceitam a Inquisição como a defendem. Mas reconhecê-lo parece de nada ter adiantado. Continuam chegando cartas que ignoram o texto corrigido e se apegam ao anterior. Há um tipo de leitor que preferiria a insistência no erro. Mais fácil me contestar.

Ora, caríssimos, não é um lapso do articulista que vai negar a realidade da Inquisição. Não recorri a historiadores para descrevê-la. Bebi na água da fonte, o Manual dos Inquisidores, a mais hedionda construção jurídica produzida pelo ser humano. Meu erro não muda uma letra nos propósitos de Nicolau Eymerich. Que se corrija o autor, é coisa que agradeço. Mas discuta-se o documento, em seu horror, e não uma gafe do cronista, que em nada afeta o texto todo. Isso que nem falei de outro documento, o Malleus Maleficarum (O Martelo dos Bruxos), de Jacobus Sprenger e Heinrich Kramer, que regulamenta a perseguição às mulheres na Idade Média.

Outro leitor me adverte que o samsara budista não é o inferno, é apenas a sucessão indefinida das reencarnações. Ora, há infernos e infernos, inclusive dentro da própria Bíblia. O Sheol dos judeus é a morada de todos os mortos, subterrâneo e tenebroso, mas desprovido de castigo. Já para Mateus, é o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos. No apócrifo Visio Pauli está melhor detalhado, com diferentes regiões e punições específicas para cada espécie de pecador. As gradações na idéia de inferno são tantas que Jérôme Baschet, em seu ensaio Les Justices de l'au-delà (700 pgs.), se contenta em compilar as representações do inferno na França e Itália... apenas do século XII ao XV. O samsara é um oceano a ser atravessado, uma prisão da qual se deve fugir, em suma, um estado de insatisfação e sofrimento, do qual o homem deve escapar, para chegar o mais rápido possível ao nirvana. No fundo, uma versão mitigada do inferno católico, uma espécie de purgatório.

O mesmo leitor faz uma insólita distinção entre opressões francas e hipócritas. Hipócritas seriam as ditaduras modernas e opressão franca seria a Inquisição. "No tempo da Inquisição, era possível dizer: ontem a Inquisição fez queimar X ou Y, pois era a coisa mais óbvia do mundo que cada um sabia. Em Cuba, não se pode dizer: Castro fez torturar X ou Y, sem correr o risco de ser torturado também por isso". O problema ocorreria nas ditaduras hipócritas, onde a tortura é oculta. Melhor as fogueiras da Idade Média que os porões de Castro - é o que deduzo da carta do leitor.

Penso diferente. Quando a tortura é oculta, na mente do ditador há pelo menos a consciência de que é algo hediondo e portanto deve ser escondida. Nas opressões francas - para usar a expressão do leitor - a consciência que existe é a de que a tortura é algo perfeitamente salutar, digno e justo. Os ditadores têm medo das denúncias e fazem tudo para impedi-las. Muito pior - há de convir o leitor - é um regime onde a autoridade se jacta da tortura e a apresenta como instrumento da justiça divina.

Outro leitor nega ter sido a Inquisição quem mandou Joana d?Arc para a fogueira, e sim um tribunal inglês. Ora, tenho em mãos a sentença proferida pelo bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, a quem coube intermediar o resgate da donzela por dez mil escudos franceses, a fim de ser entregue ao Vigário Geral da Inquisição da Fé no Reino de França. No encarniçamento em defender a santa instituição, o leitor assume a velha prática stalinista de maquilar a História.
Outro leitor brande um argumento de um cinismo atroz. Que a confissão obtida sob tortura devia ser confirmada por escrito pelo imputado posteriormente, sem tortura, e somente assim as eventuais admissões de culpa podiam ser levadas a juízo. Ora, quem não assinaria qualquer confissão ante a perspectiva de novos suplícios? O leitor absolve todos os torturadores do mundo, desde que estes apresentem ao torturado a confissão a ser assinada, sem torturá-lo no exato momento da assinatura.

Houve leitor que me situasse como satanista, cultor do demônio. Mereci até um trocadilho infame: Satanaldo. Isso porque, em algum momento, manifestei minha simpatia pelo personagem: Jeová é do estilo "prende e arrebenta". Satã, não. Precisa tentar, por isso faz jus ao nome de o Tentador. Mas só crê no demônio quem crê em Deus. E vice-versa. Ateu sendo, não creio nem em um nem em outro. Manifesto minha simpatia por personagens literários, entes de ficção, nada mais que isso. É a mesma simpatia que nutro por Don Giovanni, de Mozart, ou pela Carmen, de Bizet.

Não faltou é claro quem falasse no Cristaldo nazista. Isso porque teci críticas ao Papa defunto. Como se João Paulo II fosse um vice-deus, pairando acima da humanidade e acima de qualquer crítica. Temos agora um novo insulto ideológico: nazista é quem critica o Papa.

Não poucos leitores denunciam meu ódio à Igreja e ao cristianismo. Ora, não odeio instituições nem doutrinas e muito menos pessoas. Não odeio nazismo nem comunismo, da mesma forma que não odeio igreja alguma. Por uma simples razão: jamais consegui odiar qualquer coisa. Isto me lembra o auge da última campanha eleitoral à Presidência da República. Quem quer que fizesse críticas ao PT era acusado de odiar o PT. Velho cacoete stalinista. O acusado, para defender-se, atribui ao acusador um sentimento nada nobre, o ódio. Criticar torna-se então sinônimo de odiar. No auge da Guerra Fria, quem quer que criticasse o comunismo estava manifestando seu ódio à União Soviética.

Não aceito esta sinonímia. Critico comunistas, nazistas ou cristãos, sem ódio algum. De nada serve odiar a realidade. Ela existe, e ponto final. Entre estas três doutrinas, considero o cristianismo a mais perversa. A Igreja é sábia. A Inquisição foi uma péssima idéia. Melhor a noção de pecado. Instala-se uma máquina de tortura no consciente de cada fiel e a ele outorga-se a iniciativa de acioná-la. Nazismo e comunismo não chegaram a este requinte. Para dominar, necessitaram a força bruta do Estado. As máquinas de tortura eram instrumentos externos ao indivíduo, acionadas por terceiros. Não espanta, pois, que o cristianismo exista há dois milênios e que nazismo e comunismo tenham conseguido se manter no poder por apenas décadas.

Os fundamentalistas que me desculpem, mas a Inquisição é indefensável.