¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, maio 24, 2005
 
LOUCURA E SAÚDE


Fui ver A Queda - Hitler e o Fim do Terceiro Reich - filme do cineasta alemão Oliver Hirschbiegel, que retrata os doze últimos dias de Adolf Shicklgruber Hitler, acossado no bunker da Chancelaria, no centro de Berlim. À medida que as tropas russas avançam, observa-se o agravamento da loucura do Führer, que passa a dar ordens a exércitos que não mais existem. Mesmo com a artilharia russa a centenas de metros do bunker, ainda acha que pode reverter o curso dos acontecimentos.

Por que loucura? Por uma única razão: Hitler está derrotado. Não é por ter pretendido criar um Reich de mil anos, nem por desejar a conquista de toda Europa, nem por exterminar milhões de judeus que o consideramos louco. E sim porque perdeu. Hitler se revela ensandecido em seu refúgio. Stalin - que fornecera aos nazistas o modelo dos campos de concentração, que fuzilara seu Estado Maior antes mesmo da débâcle do Reich e que mataria até o final de seus dias 20 milhões de seres humanos - emerge como herói e libertador da Europa. A conta será apresentada em Yalta: onze países europeus entregues à tirania comunista. Ninguém ousou aventar a loucura de Stalin, nem mesmo após sua morte. Pelo contrário, era visto como uma espécie de Cristo redivivo e mereceu o carinhoso epíteto de Paizinho dos Povos.

Que é então a loucura? Se analisamos a tragédia particular de Hitler, loucura é não ter seguidores. Hitler foi dos homens mais amados da face da Terra - se não o mais amado. Triunfante, era o Führer, o Condutor, e alemão algum colocaria em dúvida sua saúde mental. Derrotado, conta apenas com alguns gatos pingados para compartilhar sua morte. Em todo caso, teve mais solidariedade do que Cristo, que não teve sequer quem o ajudasse a carregar a cruz. Ora, direis, e Simão, o cireneu? Não vale. Simão foi obrigado pelos romanos a ajudar Jesus.

Antes ou depois de assistir A Queda, seria interessante dar uma olhadela em Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade), documentário de Leni Riefenstahl sobre o 6º Congresso do Partido Nacional Socialista alemão, realizado em 1934, em Nuremberg, sob a liderança de Adolf Hitler. O desfile monumental das tropas nazistas, os discursos inflamados do Führer e de seus oficiais, a crença absoluta na vitória, dão a idéia de um regime inabalável, instalado para durar mil anos. Ninguém falaria em loucura naqueles dias. Em 1935, o filme recebeu o Prêmio Nacional do Cinema Alemão e foi também premiado no Festival de Veneza. Em 1937, recebeu o Grand Prix da Exposition Internationale des Arts et des Techniques, em Paris. Durante esse período, Riefenstahl gozou dos afagos da crítica e da glória conferida às divas do cinema.

Adolf Shicklgruber Hitler era então um estadista. Em 1945, é uma fera acuada que se suicida em sua toca. Do dia para a noite, Leni Riefenstahl é banida do mundo das artes e passa a ser vista como uma cineasta do mal. O Triunfo da Vontade torna-se de repente o filme mais proibido do século passado, e só recentemente está ressurgindo em cinematecas e DVD. Mas o século todo, de ponta a ponta, jamais deixou de louvar Eisenstein, o cineasta de Stalin. O Paizinho dos Povos era saúde, redenção, o futuro da humanidade.

A multidão, este é o fator que transforma loucura em saúde e saúde em loucura. Há uma distância hiante entre o documentário de Riefenstahl e o filme de Hirschbiegel. Atrás de O Triunfo da Vontade está toda uma Alemanha unida, unânime, apoiando o Führer. Nazismo é higidez. Em A Queda, desapareceu a Alemanha unânime. Hitler está só. Nazismo vira sinônimo de loucura. A idéia de saúde transferiu-se para Stalin, o tirano vitorioso.

Fidel Castro, sem ir mais longe. Se nos anos 70 era um guerrilheiro vitorioso, empenhado em uma revolução supostamente libertadora, o poder conquistado passou a cegá-lo. Se alguém lhe disser que em quatro décadas conseguiu transformar uma ilha relativamente próspera, no segundo país mais pobre do continente, só perdendo o primeiro lugar para o Haiti, Castro o envariá incontinenti para o cárcere, como sabotador da democracia cubana. Sua loucura atingiu tal grau que enche a boca com a palavrinha grega para designar um regime ditatorial, sem eleições livres, sem liberdade de imprensa, com prisioneiros políticos torturados e com uma vigilância de seus cidadãos só comparável à da extinta KGB.

Durante longos anos, Castro viveu de gordas esmolas da finada União Soviética, sempre creditando a sobrevivência dos cubanos à formula mágica de sua "revolução". Extinta a União Soviética, secou a fonte. Os cubanos passaram a viver em um regime de quase fome. Mesmo em meio à miséria generalizada, onde o Estado se serve até mesmo da prostituição para obter divisas. Fidel, hierático, imperturbável, continua cantando loas a seu regime e o exporta como modelo para as nações.

Onde se escora esta loucura? Nos cubanos certamente é que não. Neste caso o tirano não precisaria vigiar seus prisioneiros, pois esta é a condição de quem não pode sair de onde está. Nem precisaria censurar as manifestações de pensamento, desde os jornais até a Internet. A loucura castrista tem seu suporte um pouco mais adiante. Na imprensa internacional, que sempre o louvou como libertador. Nas viúvas de Moscou, que até hoje o consideram como o Líder Máximo. Nas esquerdas européias e latino-americanas, que ainda o saúdam como herói. Neste governo brasileiro, que ainda o recebe como estadista.

Desaparecesse de repente este apoio internacional, el Comandante en Jefe se veria nu em sua histrionice e esbravejaria ensandecido, como Hitler em seu bunker. Porque el imperialismo yanque.... porque la revolución... la democracia burguesa... las fuerzas revolucionárias...la podredumbre del Occidente... enfim, o eterno ramerrão do tiranete do Caribe. Como sua morte não deve estar muito distante, e longa é a caminhada das gentes da estupidez até o bom senso, certamente morrerá em odor de santidade. Como morreu um outro insano, o aiatolá Khomeini, em cuja memória hoje se ergue uma suntuosa mesquita em Teerã. Enquanto milhões avalizarem a loucura, a loucura será sempre saúde.

Já que chegamos aqui, vamos um pouco mais adiante. Imaginemos que, num repente, desaparece o cristianismo da face da terra, com todas suas crenças e rituais. Na solidão do Vaticano, cercado por alguns acólitos, qual Shicklgruber nos porões da Chancelaria, um homem vencido e solitário balbuciará palavras misteriosas e desprovidas de significado para seus coetâneos: eternidade, onipotência, onisciência, onipresença, transcendência absoluta, anjos, a queda dos anjos, pecado original, lei moral natural, três em um, um em três, duas naturezas que não se misturam, a mãe virgem, a imaculada conceição, a transubstanciação da carne, infalibilidade, eucaristia, assunção aos céus, corpos incorruptos, inferno, paraíso, demônio, fim dos tempos, parusia, comei a minha carne, bebei o meu sangue...

Insanidade total.