¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 27, 2005
 
SOLIDÁRIOS NA ESTUPIDEZ



Estranha vocação a da Casa Civil da República durante o governo do homem mais moral e ético do Brasil, conforme se autoproclama, modestamente, Luís Inácio Lula da Silva: "ninguém nesse país tem mais autoridade moral e ética do que eu". Das mãos do companheiro Daniel, passou para as mãos da camarada Estela. Ou das mãos do apparatchik Carlos Henrique às mãos da guerrilheira Vanda. Ou de Xexéu para Patrícia, como quisermos. Tudo codinome de dois mineiros, que em verdade se chamam Luiz Dirceu Oliveira e Silva e Dilma Roussef.

Como curta é memória das gentes, recordemos. José Dirceu é aquele senhor que, quando presidente do PT, recebeu uma indenização de 59,4 mil reais, concedida pela Comissão de Anistia, entidade criada no governo camarada do camarada Fernando Henrique Cardoso, com o intuito específico de recompensar regiamente os marxistas que um dia quiseram transformar o país em uma grande Cuba. O singelo mimo lhe foi conferido por ter sido obrigado a abandonar o País por onze anos, no regime militar. Esta foi a versão da Comissão.

Em verdade, o companheiro Daniel - ou Carlos Henrique - era membro do grupo terrorista MOLIPO (Movimento de Libertação Popular) e recebeu treinamento de guerrilha em Cuba. Não foi obrigado a sair do país. Saiu porque quis e à la française. Preso por sua participação em grupos de luta armada, foi trocado pelo embaixador americano Charles Elbrick, seqüestrado por outro grupo terrorista, o MR-8.

O homem que o homem mais moral e ético do Brasil escolheu para chefiar a Casa Civil, além de escapar da prisão à qual fora legalmente condenado, mediante outro crime - um seqüestro - envolveu-se ano passado em um esquema de corrupção que gerou a chamada CPI dos Bingos, devidamente sepultada pelo fiel escudeiro José Sarney, ressuscitada na semana passada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e ressepultada na mesma semana por acordo de bancadas. Hoje, mesmo destituído de seu poder no Planalto, Zé Dirceu volta ao Congresso como deputado para gabar-se de jamais ter tido problemas com a Justiça.

Envolvido em escândalo ainda mais vultoso que o dos bingos, o escândalo do chamado mensalão, o companheiro Daniel foi destituído de seu cargo pelo homem mais moral e ético do Brasil. Este mesmo homem que, por ocasião das denúncias contra o ministro Romero Jucá, da Previdência, e contra Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, afirmava urbi et "globi" que não seria pautado por manchetes de jornais nem demitiria funcionários sem sentença passada em julgado. Mal eram decorridas 48 horas da ordem de Roberto Jefferson - "saí daí, Zé, rápido" - Zé já saía. Sair por quê? Afinal, não havia sequer sido indiciado por crime algum, nem havia sentença alguma passada em julgado.

Desta vez o caldo deve ter sido mais grosso. Sem provas nenhuma em mãos, o presidente do PTB acusou o chefe da Casa Civil de chefiar um esquema de corrupção. A cúpula do PT falou em denúncias vazias e acusações sem provas. Ora, se as denúncias eram vazias e as acusações sem provas, por que o homem mais moral e ético do Brasil aceitou rapidinho a demissão do homem mais poderoso de seu governo? Vai ver que provas existem.

Após entregar a cabeça do companheiro Daniel, que faz o homem mais moral e ético da nação? Chama para chefe da Casa Civil a companheira Vanda - ou Luísa, ou Patrícia, como quisermos -, portadora de folha corrida invejável. Ou, finalmente, Dilma Roussef.

Mineira de Belo Horizonte, Dilma nasceu em 1947 e passou a militar na organização marxista Polop (Política Operária) aos vinte anos. Confirmando minha tese de que as ideologias se transmitem por via uretral, foi recrutada pelo noivo e depois marido Cláudio Galeno de Magalhães Linhares. Com as primeiras prisões, do Polop foi para o Colina (Comando de Libertação Nacional), outra guerrilha marxista. Ensinou marxismo, participou na organização de três assaltos a banco e subiu para a direção do Colina. Dados os rachas típicos das organizações de esquerda, acabou passando a militar na VAR-Palmares, liderada pelo terrorista Carlos Lamarca.

Com o marido tendo de migrar para Cuba, em um vôo seqüestrado em 1970, tornou-se companheira de Carlos Franklin Paixão de Araújo, militante da VAR, advogado e ex-deputado estadual pelo PDT gaúcho. Foi presa em 1970 e só saiu da cadeia no final de 1973. Nestes dias em que folha corrida é sinônimo de currículo, não é de espantar que Dilma hoje tenha em mãos a condução do governo do homem mais moral e ético de toda a História do Brasil.

Nos dias de sua posse, a Folha de São Paulo publicou entrevista inédita, feita em 2003, na qual Dilma reconhece os erros da opção pela luta armada e relata sua experiência como torturada. Estranha forma de reconhecer erros, já que na entrevista a novel ministra diz orgulhar-se dos ideais da guerrilha. E é com indisfarçado orgulho que a ex-guerrilheira, torturada pelos militares, narra seus padecimentos. Foi submetida a socos, à palmatória, pau-de-arara, choques elétricos. Onde? - pergunta o repórter.

- Em tudo quanto é lugar. Nos pés, nas mãos, na parte interna das coxas, nas orelhas. Na cabeça, é um horror. No bico do seio. Botavam uma coisa assim, no bico do seio, era uma coisa que prendia, segurava. Aí cansavam de fazer isso, porque tinha que ter um envoltório, pra enrolar, e largava. Aí você se urina, você se caga todo, você...

Dilma se despe e se expõe ao olhar público, inter feces et urinam, nua, indefesa e degradada. Mas como tudo vale a pena se a alma não é pequena, conclui a ex-guerrilheira, hoje ministra:

- De toda forma, eu acho que a minha geração tem um grande mérito, que é o negócio da Var-Palmares: "Ousar Lutar, Ousar Vencer". Esse lado de uma certa ousadia. A gente tinha uma imensa generosidade e acreditávamos que era possível fazer um Brasil mais igual. Eu tenho orgulho da minha geração, de a gente ter lutado e de ter participado de todo um sonho de construir um Brasil melhor. Acho que aprendemos muito. Fizemos muita bobagem, mas não é isso que nos caracteriza. O que nós caracteriza é ter ousado querer um país melhor.

É a versão tupiniquim do cogito cartesiano. Penso, logo existo - formulou Descartes, como se fosse necessário recorrer a premissa tão simplória para concluir que existia. O cogito tupiniquim é mais sofisticado: fui torturada, logo tenho razão. Lutei a luta errada. Mas se fui torturada, a razão é minha. Ora, neste país em que le fond de l'air est rouge - como se dizia na grande partouse francesa que foi 68, este exótico silogismo pega e pega forte. O companheiro Daniel e a camarada Vanda, dois celerados que arriscaram suas vidas para transformar o Brasil num inferno socialista, são tidos hoje pela grande imprensa como dois heróis remanescentes do século passado. E se assim são tidos pela grande imprensa, assim são assimilados pelo grande público. Que mais não seja, foram designados para a Casa Civil pelo homem mais moral e ético da nação.

Durante as cerimônias de transmissão de cargo, Daniel e Vanda se jogaram flores a granel. "Camarada de armas" - saudou o companheiro Daniel. Camarada Vanda mandou o elevador de volta: "Conheci meu querido companheiro de lutas há 40 anos, como líder estudantil". Como se ambos algum dia tivessem pegado em armas para defender o que quer que fosse. Dirceu e Dilma fizeram treinamento de guerrilha, isto é verdade. Dirceu em Cuba e Dilma em país que prefere não revelar. Militaram em movimentos armados, é verdade. Mas não temos notícia nenhuma de que tenham participado de combates.

A prática de assumir diferentes identidades não é imune a certas distorções psíquicas. À força de assumir biografias diferentes, o guerrilheiro passa a acreditar nas vidas fictícias que construiu e acaba assumindo uma delas. Como mentalmente ainda vivem em época anterior à queda do Muro e à dissolução da União Soviética, Dirceu e Dilma ainda crêem que pegar em armas para lutar pelo comunismo é tarefa nobre. Ao saudar a "camarada de armas", Zé Dirceu não regrediu apenas os quarenta anos que nos separam de 64. Regrediu o século e mais alguns anos que nos separam das ideologias sanguinárias do século XIX. E o homem mais moral e ético de todos os tempos do Brasil afundou-se ainda mais em suas contradições.

"O mineiro só é solidário no câncer" - dizia Otto Lara Resende. Enganou-se. Otto, cidadão mineiro, não testemunhou os alvores do século XXI. Os mineiros são solidários também na estupidez. Ou, pelo menos, estes dois.